A
Obra rosiana e sua (s) visão (ões) de mundo: Campo geral e a Cosmogonia a partir do ponto de vista da (s)
criança (s).
(Prof.
Rafael Vespasiano Ferreira de Lima).
“A obra rosiana é
inesgotável em suas múltiplas significações e em seus diversos temas. Uma
temática que se sobressai entre tantas é a da infância, como visão de mundo. Uma
perspectiva da realidade ainda não contaminada pelas vicissitudes da fase dita
adulta da vida. Assim, Guimarães Rosa elege a infância como ponto de vista que
revela o consórcio entre o ser humano e a natureza (mundo), no qual transparece
a cosmogonia rosiana que é perceptível em todas suas obras.
Neste ensaio, portanto, trabalhar-se-á
o tema da infância como visão de mundo. A obra de Guimarães Rosa escolhida, para
servir de base ao estudo do tema, é o romance “Campo Geral”, primeira estória
de Corpo de Baile. A análise daquela
obra dar-se-á pela perspectiva de seu protagonista, Miguilim, um menino do
sertão-mundo, em consórcio com a natureza (fauna e flora), que aprende o quanto
o mundo ao seu redor é poético e belo, a partir do sofrimento, contudo, marcado
pela epifania, que constrói o seu saber sobre a vida e o mundo.
Dessa forma, o escritor
João Guimarães Rosa apresenta em “Campo Geral”, uma visão cosmogônica da vida,
pela perspectiva de uma criança, Miguilim, o qual simboliza o consórcio entre
seres humanos e o sertão. Este Sertão
é visto na obra rosiana, como um Cosmos, em que as pessoas vivem em comunhão
com os demais entes do sertão.
O crítico Ronaldes de
Melo e Souza (2008) cita a correspondência de João Guimarães Rosa com seu
tradutor italiano, na qual o escritor mineiro elucida o porquê do título da
primeira estória de Corpo de baile,
conjunto de sete narrativas, chamar-se “Campo Geral”:
A primeira
estória, (...), contém, em germe, os motivos e temas de todas as outras, de
algum modo. Por isso é que lhe dei o título de ‘Campo Geral’ – explorando uma
ambiguidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais se diz um Campo Geral ou o Campo
Geral, este Campo Geral; no singular, a expressão não existe. Só no plural:
‘os Gerais’, ‘os Campos Gerais’. Usando, então, o singular, eu desviei o
sentido para o simbólico: o de plano
geral (do livro). (SOUZA, 2008, p. 125)
O teórico Ronaldes de
Melo e Souza (2008, p. 125) afirma, então, que o título “Campo Geral” dado à
primeira estória de Corpo de baile,
tem um “sentido simbólico” no “conjunto sinfônico das sagas” enfeixadas na
citada obra. Verifica-se, assim, a originalidade do escritor Guimarães Rosa,
que por meio do inédito, inaudito (o título da primeira saga sendo usado no
singular), já antecipa o caráter original da obra inteira e o plano
arquitetônico e sinfônico de Corpo de baile.
O ensaísta Paulo Rónai
assevera que:
nos dois índices
da obra, as partes desta são ora qualificadas de poemas, ora de contos e
romances. Serão poemas, enquanto todas trazem significações subjacentes. A
distinção entre conto e romance tampouco obedece ao critério habitual da
extensão; antes corresponde a um grau maior ou menor de conteúdo lírico: ao
subordinar os primeiros ao título de ‘parábase’, o autor com esse termo da
comédia grega, adverte-nos de que é neles que se deverá procurar a sua mensagem
pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem. (RÓNAI, 2001, p.
19-20)
Ao modo dos poemas
clássicos, os mistérios da obra Corpo de
baile só são revelados aos poucos e sob um olhar atento do leitor. “A
própria unidade da obra é um deles.” “Conexões de temática, correspondências estruturais, efeitos de justaposição e
oposição integram-na, mas os leitores têm de os descobrir (sic) um a um.” (RÓNAI, 2001, p. 20)
“Campo Geral” é, assim,
também uma “saga”, vocábulo este que o escritor mineiro relaciona com sagen, “que significa dizer o inédito ou
inaudito” (SOUZA, 2008, p. 9). A saga sertaneja assume, portanto, o caráter da:
iniciação na arte
de contar estórias originais e o tema do sertão como cifra pelo simbólica do
vínculo nupcial do homem e do mundo articulam a poeticidade da forma narrativa
de Corpo de baile. Miguilim, o
protagonista de “Campo Geral”, que assume a função mitopoética de contador de
estórias inauditas, todas novas, inventadas de juízo, tiradas por inteiro de
sua cabeça, constitui o protótipo dos personagens arrebatados pelo regime de
fascinação das sagas sertanejas. (SOUZA, 2008, p. 125)
Dessa forma, o autor de Corpo de baile revela aos leitores de
sua obra cosmogônica, “almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza
ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos
vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos da nossa civilização
urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com
receptividade para o extraordinário e o milagre.” (RÓNAI, 2001, p. 17-18)
O escritor mineiro apresenta as personagens
sertanejas “em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela
doença, ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas
e buscam o sentido de sua vida.” (RÓNAI, 2001, p. 18) É o caso da protagonista
de “Campo Geral”, Miguilim que enfrenta a doença e a morte, para aprendendo
pela dor e pelo sofrimento, amadurecer e crescer espiritualmente.
Revela-se, assim, o tom original e poético de
“Campo Geral”. Uma estória que, tendo como protagonista uma criança. Miguilim
oferece ao leitor uma visão de mundo inédita, ou ainda renovada. A partir da
qual, de forma mitopoética, ao contar suas próprias estórias, Miguilim
(re)-cria e (re)-inventa o mundo à sua volta. O Sertão (com “S” maiúsculo, como sempre quis
Guimarães Rosa) é elevado a um Cosmos, de caráter universal, no qual há um
consórcio, lírico e belo, entre homens e demais seres viventes do Sertão.
A narrativa mitopoética
de “Campo Geral” mostra ao leitor a infância com um poder infinito de
encantamento e imaginação, “que transcende a inflexão inercial do espírito
subjugado pelos fatos inanimados” (SOUZA, 2008, p. 127), ou seja, o pragmatismo
da vida de subsistência do sertão transmuta-se em magia e em criatividade lírica
e cósmica.
A estória passa-se numa
região denominada “Mutum”, que para o crítico Paulo Rónai “é um recanto oculto
da roça, com seu emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e
paixões selvagens.” (RÓNAI, 2001, p.
21). “Um certo Miguilim morava (..), longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d´Água
e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No
meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de
serra.” (ROSA, 2010, p. 13). Dessa maneira:
Um certo Miguilim
morava (..), longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d´Água e de
outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio
dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra.
(ROSA, 2010, p. 13).
E, os leitores entram,
nesse cenário sertanejo:
guiados por um
menino de oito anos, nascido no próprio ambiente, e que o aceita com inteira
naturalidade. Numa reprodução mágica da visão infantil, episódios
insignificantes criam volume e acontecimentos trágicos se reduzem a meras impressões.
(RÓNAI, 2001, p. 21).
Pela perspectiva de uma
personagem infantil, marcada pelo divino, no sentido mitopoético, a criança
Miguilim conduz o leitor na apreensão do mundo, sob o viés do mágico e do
maravilhoso, os dramas dos familiares adultos de Miguilim são percebidos como
“meras impressões”. O que marca definitivamente a sua visão de mundo, no caso a
sua visão do “Sertão”, são os aspectos mitopoéticos, mágicos e maravilhosos do
Cosmos e da Vida.
O teórico Paulo Rónai
define bem como os leitores sentem-se ao penetrar nesse “Mutum” e como eles
percebem o crescimento do protagonista:
Sob nossos
maravilhados, o menino Miguilim cresce, incorpora as lições das plantas e dos
bichos, absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-se desenvolvendo dia a dia,
no meio dos segredos inquietantes do mundo dos adultos, mas impressionando-se
sobretudo com milagres que só para ele existem: o papagaio pronunciando pela
primeira vez o nome do irmão meses após a morte deste, um par de óculos dando à
vida nova dimensão e sentido. (RÓNAI, 2001, p. 21-22)
Por isso mesmo, “o tema
da infância redescoberta", para o crítico Ronaldes de Melo e Souza,
“constitui o motivo essencial da predileção do escritor pela estória de
Miguilim.”. (SOUZA, 2008, p. 126) O próprio autor João Guimarães Rosa, ainda
segundo o Professor Ronaldes de Melo e Souza, “ficcionalmente se reconhece no
menino Miguilim. Na entrevista concedida a uma prima estudante, o escritor
confessa que, desde menino muito pequeno, ‘brincava de imaginar intermináveis
estórias’, acrescentando que a sua estória predileta é a do Miguilim,
compaginada em “Campo Geral”” (SOUZA, 2008, p. 126).
Essa visão de mundo
marcada por uma criativa e inovadora forma de perceber a realidade sertaneja pode
ser teorizada a partir dos estudos do filósofo Gaston Bachelard, que propõe no
livro A poética do devaneio, uma
filosofia-poética que o escritor denomina de “Os Devaneios Voltados para a Infância”,
a qual é muito relevante para o estudo que se propõe neste ensaio. O filósofo
afirma: “quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma existência sem
limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era um devaneio
de alçar voo.” (BACHELARD, 1993, p. 94).
Essa reflexão filosófica
é emblemática para justificar o porquê de Miguilim possui uma visão original e
criativa, como se percebe na seguinte passagem de “Campo Geral”:
Dito começava a
dormir de repente, era a mesma coisa que Tomezinho. Miguilim não gostava de pôr
os olhos no escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher
assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da
coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O travesseirinho cheirava bom,
cheio de macela-do-campo. Amanhã, ia aparar água de chuva, tinha outro gosto.
(ROSA, 2010, p. 39).
Num momento de solidão e
de consequente devaneio, Miguilim põe asas à imaginação criadora, típica de uma
criança em processo de inventividade poética e que narra liricamente sua forma
de compreender e apreender o mundo ao seu redor.
A mundividência de
Guimarães Rosa baseia-se na imaginação infantil. Por isso mesmo, Miguilim é
quem percebe e apresenta ao leitor a cosmovisão rosiana. “Enquanto menino
revestido do poder transcendente da imaginação criadora, Miguilim simboliza a
inauguração dinâmica da visão liberada dos liames deterministas do logicismo
causal.” (SOUZA, 2008, p. 129). Sendo assim, o protagonista oferece uma visão
mitopoética do Sertão, como se verifica na seguinte passagem de “Campo Geral”:
(...) O coelhinho tinha
toca na borda-da-mata, saía só no escurecer, queria comer, queria brincar,
sessépe, serelé, coelhinho da silva, remexendo com a boquinha de muitos jeitos,
esticava pinotes e sentava a bundinha no chão, cismado, as orelhas dele
estremeciam constantemente. Devia de ter o companheiro, marido ou mulher, ou
irmão, que agora esperava lá na beira do mato, onde eles moravam, sozim. (ROSA,
2010, p. 28)
Nela fica evidenciada a
visão cosmogônica do escritor João Guimarães Rosa, na qual pela perspectiva de
Miguilim é mostrado ao leitor o consórcio entre o ser humano e os demais entes
do Sertão. Numa proposta mitopoética, a infância serve como mediadora para
apresentar aos leitores a cosmovisão do escritor mineiro.
Guimarães Rosa com sua
literatura mitopoética faz uso, portanto, de mitos. É o que se verifica ao
pensarmos que em “Campo Geral”, o mitologema da criança divina aparece de forma
lírica e narrativa, na figura de Miguilim. Citemos Karl Kerényi, um historiador
das religiões, que assevera: “As mitologias recorrem à figura de uma criança
divina, o primogênito do tempo primordial, em que a ‘origem’ existiu pela
primeira vez” (KERÉNYI, 2011, p. 23).
Sendo assim, a realidade
cosmogônica de “Campo Geral” tem um viés mitológico, ou no caso do escritor
mineiro, mitopoético. Pois, o consórcio entre seres humanos e demais viventes
do Sertão é mediado pela perspectiva infantil, fundamentadora e fundadora de
Miguilim. Este, de maneira original e criativa, apresenta e oferece ao leitor a
origem originária de um Cosmos, de um Sertão em constante devir poético, num
incessante brotar e germinar de Vida. No meio sertanejo, ressalte-se, contudo,
que este Sertão é universal, é que Miguilim transforma-se em uma criança
divina, não pelo viés religioso, mas num sentido mais amplo e mágico, o sentido
mitopoético.
O crítico literário Ronaldes de Melo e Souza
cita a estudiosa Hannah Arendt, ao abordar o tema da criança original. “Na
visão crítica de Arendt, (...), a chegada de uma criança divina e redentora,
(...) se compreende como ‘afirmação da divindade do nascimento’, que assegura
‘a salvação potencial do mundo’ pelo ‘próprio fato de a espécie humana se
regenerar a si própria, continuamente e para sempre’”. (SOUZA, 2008, p. 130).
Assim, fica evidente ao
fazer-se uma correlação com a obra “Campo Geral”, que o eterno devir
germinativo do Sertão é captado e apresentado pela criança Miguilim ao leitor.
Ainda citando Arendt:
a ideia de certo
modo relacionada, mas diferente, de que os homens estão equipados para a função
logicamente paradoxal de estabelecerem um novo início devido a eles próprios
serem inícios, e, portanto, iniciadores, cuja capacidade própria de iniciar
está enraizada na natalidade, no fato de os seres humanos aparecerem no mundo
devido a nascerem. (ARENDT, apud SOUZA,
2008, p. 131)
A saga de Miguilim
equivale ao sentido já aludido de sagen,
que tem na acepção germânica, o
significado de dizer o inédito, apresentar o inaudito. O escritor Guimarães
Rosa, então, para apresentar a brotação do mundo, faz isso de maneira inédita,
originalíssima, pela visão infantil de Miguilim, um ser especial, que vê as
coisas do Sertão por uma perspectiva diferenciada, como se percebe nesta
passagem de “Campo Geral”: “O garrote tourava as vacas, depois nasciam os
bezerrinhos. (...) Um porco magro, passante, demorou na porta de tulha,
esmastigando, de amarelar, um bagaço de cana. Grunhava. Devia de ser bom,
namoração.” (ROSA, 2010, p. 65)
Assim, pela visão
mitopoética de Miguilim revela-se a constante germinação do Sertão. A infância original de Miguilim propicia ao
leitor alçar um voo poético, pelo mundo sertanejo. Pois através de seus
devaneios, para nos atermos aos termos de Bachelard, é que “(...) o devaneio
nos dava liberdade. (...) Psicologicamente falando, é no devaneio que somos
seres livres.” (BACHELARD, 1993, p. 95). Ou seja, os devaneios que Miguilim
experimenta é que dava a ele (e aos leitores!), a liberdade para apreender toda
a poesia cosmogônica do Sertão.
Para Bachelard:
A imaginação
matiza desde a origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da
memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores. (...) Para reviver
os valores do passado, é preciso sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica
que é o devaneio, na paz de um grande repouso. Então a memória e a imaginação
rivalizam para nos devolver as imagens que se ligam à nossa vida. (BACHELARD,
1993, p. 99).
No intuito de confirmar o
proposto pelo filósofo Gaston Bachelard, basta citar-se a seguinte passagem de
“Campo Geral”: “Chegasse em casa, uma estória ao Dito ele [Miguilim] contava, mas estória toda nova, dele só, inventada de
juízo (...)”. (ROSA, 2010, p. 75) Percebe-se, a importância da imaginação
criadora do protagonista, que ao devanear: cria e recria o Sertão; conta e
reconta estórias. Constituindo assim o que a Professora Maria Lucia Guimarães
de Faria nos chama atenção ao referir-se à teoria bachelardiana, e que é
aplicável ao trecho acima citado da obra rosiana, pois “(...) a atividade
indissolúvel e indissociável do tríptico Imaginação-Memória-Devaneio, que, para
Bachelard, é a voz e a vocação do Imaginário.” (FARIA, 1988, p. xi).
Ou seja, ao “inventar”
estórias, Miguilim está, invariavelmente, usando o artífice criativo do
tríptico Imaginação-Memória-Devaneio. Dessa forma, literariamente, é
apresentado, de forma originalíssima e mágica, o Sertão cosmogônico de
Guimarães Rosa.
Ressalte-se que “Campo
Geral” é a estória de Miguilim, mas que “se desenvolve associada a dois meninos
excepcionais: o irmão Dito e o amigo Grivo.” (SOUZA, 2008, p. 131). Dito, ainda
para o Professor Ronaldes de Melo e Souza, “se distingue como o menino que diz
o verivérbio enunciador do conteúdo mitopoético da saga.” (SOUZA, 2008, p.
131).
E é ainda Dito que, ante
a sua morte iminente, ensina uma verdade sobre a Vida ao seu irmão Miguilim,
para que este não cultive a tristeza nem se deixe abater pelas vicissitudes do
destino. “Dito revela a Miguilim que a alegria possui o dom de exorcizar o mal
e atrair o bem” (SOUZA, 2008, p. 132):
- ‘Chora não,
Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você... ’ E o Dito também
não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados,
a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: - ‘Miguilim,
Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar
sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A
gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...’ E o
Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os
outros vieram, puxaram Miguilim de lá. (ROSA, 2010, p. 117-118).
Já Grivo é um amigo de
Miguilim, que se sobressai como o menino dotado do poder criativo da imaginação
poética e de possuir o dom de saber contar estórias originais acontecidas no
Sertão. Essas duas personagens “no conjunto mitopoético das sagas de Corpo de baile, (...) se associam como
atores privilegiados. O privilégio da atuação se verifica na função que
desempenham no entrelaçamento das estórias. Tornam-se tão representativos da
poeticidade sertaneja, que atuam como personagens recorrentes.” (SOUZA, 2008,
p. 132).
Grivo reaparece na saga
da busca poética pela origem originária da Poesia, marcada pelo letrear poético
de “Cara-de-Bronze”. Já Miguilim é visto novamente na sétima saga de Corpo de baile, “Buriti”, que finaliza
aquela obra como o Eros cosmogônico do Sertão rosiano.
Na visão mitopoética da
personagem Miguilim, o mundo de “Campo Geral” existe para apresentar e conferir
perfeição mágica ao estatuto das estórias sertanejas. “Por isso, cada vez mais
se aprofunda na assimilação compreensiva do magistério infantil do Dito,
armando-se de alegria e esperança até o dia em que o médico lhe corrige a
miopia com um par de óculos e o leva para estudar na cidade.” (SOUZA, 2008, p.
133).
Cita-se a passagem em que
é revelada uma nova visão de mundo para Miguilim: “E o senhor tirava os óculos
e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. – Olha, agora! Miguilim olhou. Nem
não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as
coisas, as árvores, as caras das pessôas. Via os grãozinhos de areia, a pele da
terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão (...).” (ROSA,
2010, p. 152-153).
Outra personagem é Aristeu
que aparece como criador de abelhas, curador de doenças e tocador de viola. Na
estória do menino contador de estórias, Aristeu surge a fim de curar a doença
de Miguilim. Este se restabelece e transparece de alegria ante o fascínio que
Aristeu despertou nele.
Dessa forma, Miguilim se
entusiasma, ainda mais, com o universo mitopoético que se apresenta ante seus
olhos e demais sentidos, num processo catártico e de renovação espiritual.
Assim, é dramatizada tanto a alegria da mundividência infantil, quanto é
representada a cosmogonia do Sertão rosiano:
Mas entravam a
pasto a fora, podia se cantar não, não espantar o gado bravo. A gente tinha de
não ser estouvado. Avançando devagarinho, macio, levando os cavalos de môita em
môita, pisavam o fofo capim, gafanhotos pulavam. Carecia de se ir em rumo da
casa do vento. – ‘Salúz, a gente não aboia? Você não toca o berrante?’ ‘- Hoje
não, Miguilim, senão eles pensam vão ganhar sal... ’ Passavam os periquitos,
aquela gritaria, bando, bando. Vaqueiro Salúz tinha de ver se havia reses
doentes, machucadas, com bicheira. (...) Gavião e urubu arrastavam sombras. Vez
em quando a gente ouvia também um gró de papagaio. O cerrado estava cheio de
pássaros. (...) Salúz e Miguilim saíam num furado, já se escutava o a-surdo de
boi. – ‘Miguilim, pois então aboia, vou mesmo fazer uma coisa só para você ver
como é...’ Aí, enquanto Miguilim aboiava, o vaqueiro Salúz desdependurou o
berrante de tiracolo, e tocou. A de ver: - ‘Eh cô!...’ ‘Huuu... huuu...’ – e a
boaida mexe nos capões de mato. (ROSA, 2010, p. 138-139).
Essa citação longa se fez
necessária para exemplificar o tom poético da saga “Campo Geral”. E, evidenciar
o caráter cosmogônico do Sertão rosiano, no qual há um consórcio entre seres
humanos e demais seres viventes do Sertão, que se relacionam num eterno devir
metamórfico e poético.
Em “Campo Geral”, a saga
rosiana é apresentada ao leitor, sob a perspectiva de uma visão renovada. É,
justamente, pela ótica infantil de Miguilim, que é simbolizado o mundo
mitopoético de Guimarães Rosa. A mundividência rosiana transparece num Sertão,
que, na realidade literária, é um Sertão Universal, um Cosmos em si mesmo. ”
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antonio
de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
FARIA, Maria Lucia
Guimarães de. Introdução. In: -. A estética concreta de Guimarães Rosa. Dissertação
(Mestrado em Teoria da Literatura). Brasília: Universidade de Brasília, 1988,
p. iii-xiii.
KERÉNYI, Karl. In: JUNG, C. G. & KERÉNYI, Karl. A criança divina: uma introdução à
essência da mitologia. Tradução de Vilmar Schneider.
Petrópolis: Vozes, 2011, p. 13-43.
RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In:
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e
Miguilim (Corpo de Baile). 11.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.
17-25.
ROSA, João Guimarães. Campo geral. In: -. Corpo de baile. Vol. 1. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010,
p. 13-156.
SOUZA, Ronaldes de Melo
e. A saga rosiana do sertão. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2008.
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