quinta-feira, 30 de março de 2017

ÁLVARES DE AZEVEDO: "Macário e Noite na Taverna: a intertextualidade entre o drama e os contos do Poeta Maldito."

ÁLVARES DE AZEVEDO


(Ensaio por Rafael Vespasiano)



INTRODUÇÃO

Macário introduz o drama faústico no Romantismo Brasileiro. A obra conduz o leitor a uma realidade incerta e conturbada. Satã, personagem fascinante, tenta seduzir Macário. O Satã azevediano, segundo a Professora Claudia Labres (2002), é um ser com um quê de encanto, cujas palavras sublimes, quase divinas, tornam-se profundas e persuasivas. Sendo persuasivo, Satã passa a ser o guia de Macário, mostrando a ele um caminho: o caminho dos heróis malditos. Estes, no Romantismo, são marcados por uma vida excessivamente passional, marcada pelos vícios, crimes, violências de todos os tipos. Uma vida romântica, portanto, excessiva. Macário constitui-se, portanto, no decorrer da obra em uma personagem maldita.
Já em Noite na taverna, Satã não se apresenta personificado, mas apresentam-se personagens marcadas pelo satânico. “Ambiente caótico, a taverna, na qual os cinco rapazes se encontram, parece ser o local propício para que o maldito se instaure.” (LABRES, 2002, p.11).
Macário e Noite na taverna são obras distintas, porém uma possível leitura é aquela, que diz que entre elas há certa continuidade. Trata-se da hipótese de ler uma como sequência da outra. Macário termina na janela de uma taverna; “a fala inconclusa de Macário a Satã pressupõe uma continuidade que não se efetiva. ‘Cala-te. Ouçamos’ (AZEVEDO, 2000, p.562), diz Macário a Satã. Ouçamos o quê? Não se sabe, não há respostas.” (LABRES, 2002, p. 11). Pois, o livro acaba, mas “ouçamos as narrativas de ‘cinco homens ébrios’ (AZEVEDO, 2000, p. 562) sentados à mesa de uma sala fumacenta, podemos deduzir. Mas onde estão essas narrativas?” (LABRES, 2002, p. 11).
Em Noite na taverna, na leitura de LABRES (2002) e CANDIDO (2006). Apesar da quebra de gêneros; Macário é um drama e Noite na taverna é um livro de contos. Porém, um inicia no cenário em que o outro acaba.



Intertextualidade:
Macário = Fausto, Goethe;
Noite na taverna = Hoffmann.
As obras se passam em locais pouco definidos, num ritmo meio alucinante, com os acontecimentos se dando de forma confusa e angustiada. Os sentimentos humanos que estão expostos e funcionam como guia das personagens, são sentimentos confusos que oscilam da revolta e violência ao amor sincero e sublime (dualismo dinâmico/binomia). “Nesse mar de sentimentos que se confundem, a melancolia se torna um aspecto constante nas personagens azevedianas.” (LABRES, 2002, p. 12).
O tom melancólico predomina na obra de Álvares de Azevedo, sobretudo na “visão entediada, contestadora, violenta e transgressora das personagens, que, em geral, são pálidas, quase sem vida.” (LABRES, 2002, p. 12).
Na obra azevediana, o erotismo aparece, ainda que de forma velada ou sugerida, mas, de qualquer forma, surge como um desejo não realizado inteiramente/plenamente, decorre daí a melancolia, gerando desilusão. Esta gera a rebeldia, vista como uma forma de evasão das personagens azevedianas. O ideal frustrado (a não realização amorosa) pode levar a três tipos de evasão: a morte, a loucura e o suicídio, estes três escapismos surgem como fim último da existência.

MACÁRIO:
Inicia-se com um prólogo, no qual a autoconsciência do poeta, denominada Puff, apresenta qual seria seu protótipo teórico de drama ideal (Teatro Inglês/Shakespeare; Teatro Grego/Eurípedes e Ésquilo; Teatro Espanhol/Calderón de la Barca e Lope de Vega).Com destaque também para os alemães Goethe e Schiller.
“A vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida, anelante, às vezes sanguenta – eis o drama.” (AZEVEDO, 2000, p. 508). (Excessividade da vida romântica).
Mistura de gêneros (drama, comédia, dialogismo). Referências: Shakespeare, Byron, Hoffmann, Poe.
O tema da obra é o mal e como este influencia a vida e o pensamento das personagens azevedianas. Dividida em dois episódios.
No primeiro episódio, quando Satã revela-se a Macário, Satã já demonstra o seu caráter de rebelde, maldito.
Em Macário é dada voz a um Satã dotado de “beleza física e interior. Apresentando um aspecto humano, o Desconhecido se mostra a Macário sem que este perceba quem ele realmente é” (LABRES, 2002, p. 57), contudo algumas características o denunciam:
Macário (comendo) – Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro. Quando a noite caía, ao subir a garganta da serra...
O Desconhecido – Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna...
Macário – Tal e qual – por sinal que era fria como o focinho de um cão.
O Desconhecido – Era eu. (AZEVEDO, 2000,  p.511-512)
O Desconhecido logo se revela um ‘mestre’ que passará a guiar Macário a um novo modo de vida. “Satã procura mostrar a seu discípulo que sua revolta não deve ser estéril, que sua melancolia não pode ser fruto de sua descrença, que sua ironia deve ir muito além do riso e que sua irreverência não pode vacilar” (LABRES, 2002, p. 58) em qualquer obstáculo.
Satã usa do próprio ceticismo para colocar em xeque a descrença e o ceticismo de Macário:
O Desconhecido – Eu sou o diabo. Boa noite, Macário.
Macário – Boa noite, Satã. (Deita-se. O desconhecido sai) O diabo! uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles... Olá, Satã! (AZEVEDO, 2000,  p. 522).
Uso da IRONIA.
O que o Satã azevediano procura mostrar a Macário, é o romantismo que este rejeita, a princípio, por ser anti-romântico (marcado pelo spleen, tédio, melancolia), contudo aos pouco vai incorporando os ensinamentos de Satã. O próprio Macário aos poucos se torna cada vez mais demoníaco, apesar de sempre “ter sido ele um indivíduo irônico, irreverente, melancólico e rebelde, esses traços se acentuam após sua proximidade com Satã.” (LABRES, 2002, p. 61).
Macário que se dizia anti-romântico (avesso ao ideal do Romantismo), torna-se, gradativamente, graças à influência de Satã, uma pessoa cada vez mais irônica, melancólica e rebelde, características do herói romântico maldito, nos moldes das personagens byronianas.
Satã oferece ao seu discípulo uma nova forma de encarar a vida, uma forma romântica, transgressora e, consequentemente, mais humana. “Dotado de uma consciência metafísica, Satã procura mostrar a Macário uma visão do absoluto, a transcendência do ser humano.” (LABRES, 2002, p. 63). Através de seu encontro com Satã é que Macário passa a conhecer melhor a si mesmo. E que o infinito e o absoluto, na verdade, estão nele mesmo. Assim, logo o pacto é firmado:
O Desconhecido – Aperta minha mão. Quero ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome.
Macário – Juro-te que não, ainda que fosses...
O Desconhecido – Aperta minha mão. Até sempre: na vida e na morte!
Macário – Até sempre, na vida e na morte!
O Desconhecido – E o teu nome?
Macário – Macário. Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e de minha mãe. Era decerto alguma libertina. Meu pai, pelo que penso, era padre ou fidalgo.
O Desconhecido – Eu sou o Diabo. Boa noite, Macário.
Macário – Boa noite, Satã. (Deita-se. O Desconhecido sai.) O Diabo! Uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles... (AZEVEDO, 2000,  p. 522)

Após o pacto firmado, Macário passa por uma noite de visões, devaneios e fantasias, depois da qual acorda com uma forte sensação de horror. A partir daí a personagem passa a assumir uma atitude romântica. A partir daquilo que “sonhou durante a noite, Macário passa a dar importância ao amor, ele que até então era completamente cético e descrente” (LABRES, 2002, p. 65), em relação ao amor idealizado:
Macário – Oh! Sim! Se na vida há uma coisa real e divina é a arte – e na arte se há um raio do céu é na música. Na música que nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da modorra da existência a alma embotada. Oh! é tão doce sentir a voz vaporosa que trina, que nos enleva – e que parece que nos faz desfalecer, amar e morrer! (AZEVEDO, 2000, p. 541).
[...]
Macário – Oh! o amor! e por que não se morre de amor! Como uma estrela que se apaga pouco a pouco entre perfumes e nuvens cor de rosa, por que a vida não desmaia e morre num beijo de mulher? Seria tão doce inanir e morrer sobre o seio da amante enlanguescida! No respirar indolente de seu colo confundir um último suspiro! (AZEVEDO, 2000,  p. 542)
Macário passa a visualizar a estética do Romantismo apenas após o acordo firmado, e gradativamente começará a incorporar o ideário do romantismo. Além do mais “o pacto com o Diabo representa um caminho para a revolta. Sendo Lúcifer um romântico em sua essência, devido ao seu caráter rebelde, nada melhor que seja no Romantismo que se encontre a ‘saída’ para os problemas da sociedade.” (LABRES, 2002, p. 65). Ou seja, o herói romântico marcado pelos signos do “maldito”, do “faústico” e do “rebelde” é uma personagem que busca enfrentar um mundo injusto e malfeito.
Satã conduz Macário a um espaço de trevas e sombras, uma espécie de inferno terreno, em que a paisagem é encoberta por uma atmosfera ao mesmo tempo mórbida e melancólica:
Satã – [...] Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada mas sombria como uma essa de enterro.
Macário – Tenho ânsia de lá chegar. É bonita?
Satã (bocej) – Ah! é divertida. (AZEVEDO, 2000,  p. 523-524).

O cenário sombrio dá aos fatos um tom de mistério. É também o espaço propício à iniciação por que Macário passará. Após a noite de angústia, o estudante tenta negar Satã, mas já é tarde demais para isso: o pacto já está firmado. E ele já é um iniciado.
Satã desaparece, mas os ensinamentos terão continuidade no segundo episódio. “Episódio esse em que se tem um salto nos acontecimentos. Macário encontra-se na Itália. Não se sabe, porém, quanto tempo depois do episódio da estalagem, como se as barreiras de tempo e espaço não fossem mais capazes de impedir seu aprendizado.” (LABRES, 2002, p. 71-72).
Macário já está em seu processo de formação, já teve seu primeiro e sofrido contato com o novo universo que se lhe apresenta. Deve ele agora desdobrar mentalmente os acontecimentos e compreender e apreender em sua profundidade os fatos.
Na primeira cena do segundo episódio se nota a transformação da personagem, que, percebendo-a, procura combate-la. “Se num primeiro momento o real desejo do estudante era viver, ainda que uma vida sem grandes ideais, cujos únicos prazeres se reduziam ao fumo, ao vinho e à mulher, tudo que deseja agora é a morte.” (LABRES, 2002, p. 72). Macário ao perceber que sonhar leva ao desejo e o desejo à ilusão e a ilusão à frustração, a personagem, então, foge da realidade, desiste de enfrentá-la, e apenas dois caminhos se mostram possíveis – a loucura ou a morte (escapismo), como formas de evadir-se da realidade que o desagrada.
No caminho de Macário, este encontra Penseroso que cisma com seus ideais românticos. Entre as duas personagens se estabelece um choque: “em um a melancolia sombria, no outro, uma melancolia angélica. Eles são opostos que se completam e o diálogo entre eles será mais um passo no aprendizado.” (LABRES, 2002, p. 72). Com Penseroso, Macário deve aprender aquilo que, entrou em conflito com suas novas descobertas e que ele ainda não assimilou direito.
Para Candido (2006), o segundo episódio “é uma espécie de friso onírico destinado a manter a tonalidade dúbia da primeira parte.” (CANDIDO, 2006, p. 16). Nela predominam dois temas, tratados de maneira dual e dinâmica: o amor sentimental e puro (Penseroso) e o amor cínico e carnal (Macário, um tanto lírico, antagônico, mas amistoso); e uma discussão sobre literatura, segundo Candido, de grande interesse crítico, mas que confere um caráter pouco teatral ao drama.
Macário é um descrente estudante, cético e que não crê no amor; anti-romântico (no que se refere ao seu desencanto sarcástico às posições nacionalistas e otimistas do Romantismo); romântico, contudo, pois é marcado pelo spleen (Byron), pelo tédio (vinho, charuto). Macário diz amar as mulheres e odiar o romantismo. Ainda no primeiro episódio, o Desconhecido (ainda Satã não se revelara a Macário) pergunta a Macário se ele é poeta, este responde que não. Macário é extremamente cético, sarcástico e marcado pelo tédio irônico. Afirma que só acredita no amor carnal/físico/erótico (fugaz/efêmero/passageiro), não acreditando no amor ideal/angelical/divino/casto. Quando firma pacto com Satã, o qual também é um romântico, dadas suas características de orgulho, de rebeldia e de maldito, que usando do seu ceticismo, faz Macário mudar e passar a tomar como atitude, uma atitude “romântica”: já que Macário passa a acreditar no amor, contudo ainda de forma irônica.
No segundo episódio, a personagem de Penseroso surge, ela é um ser “melancólico angelical”, que sonha com o amor casto/ideal; já Macário é um contraponto a Penseroso, pois aquele é um “melancólico sombrio” (LABRES, 2002). Neste segundo episódio, Macário demonstra um desejo de morrer, pois na transição do primeiro para o segundo episódio, numa atmosfera de sonhos e devaneios, Macário passou a noite junto a uma donzela pura e virgem como os anjos. Começou a amar e, a partir de então, passou a acreditar no amor puro e idealizado, além de passar a acreditar que é possível morrer de amor, ou que a não realização amorosa pode levar o indivíduo romântico à morte.
“Penseroso”, segundo Antonio Candido, “defende o sentimentalismo, o pitoresco, o otimismo social, enquanto Macário opõe a legitimidade da ironia e do ceticismo, combatendo com desencanto sarcástico as posições nacionalistas.” (CANDIDO, 2006, p. 17). Penseroso é puro, sonhador, e morre simbolicamente, para que Macário depois de um momento de revolta una-se de novo a Satã, “que é o anti-Penseroso, enquanto o próprio Macário é a frágil síntese de ambos, encarnando a suprema ‘binomia’ do bem em face do mal.” (CANDIDO, 2006, p. 17).
Após a morte de Penseroso, “ele (Satã) parece decidido a ir mais longe na instrução de Macário e o leva a uma orgia. Não para participar, mas para ver. E o drama acaba de repente, no meio de uma fala.” (CANDIDO, 2006, p. 18). Ou pelo contrário não acaba, “porque Noite na taverna, é uma sequência de Macário, cujas linhas finais são as seguintes (sendo notório o tom pedagógico de Satã)” (CANDIDO, 2006, p. 18):
Satã – Estás ébrio? Cambaleias.
Macário – Onde me levas?
Satã – A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e de vinho – que importa?
Macário – É aqui, não? Ouço vociferar a saturnal lá dentro.
Satã – Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário – Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
 Satã – Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes do Esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário – Cala-te. Ouçamos. (AZEVEDO, 2000, p. 561-562).

O drama termina aí e o leitor se pergunta: ouçamos o quê? Será justamente a sequência inicial e o cenário inicial de Noite na taverna, que Macário vai ver pela janela. Em Noite na taverna, o cenário é uma orgia onde estão, como anunciou Satã, “cinco homens numa mesa e outros deitados bêbados no chão, dormindo de envolta com mulheres.” (CANDIDO, 2006, p. 19). E o seu começo é também uma fala, “isto é, algo que se ouve, correspondendo ao imperativo da deixa final de Macário (“Cala-te. Ouçamos.”). (CANDIDO, 2006, p. 19):
“-Silêncio! moços! acabai com essas cantilenas horríveis. Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos?” (AZEVEDO, 2000, p. 565). É a fala inicial de Noite na taverna, Satã quer iniciar Macário nos aspectos da excessividade romântica. Apresenta-se a Macário “essa via feroz onde o homem procura conhecer o segredo de sua humanidade por meio da desmedida, na escala de um comportamento que nega todas as normas.” (CANDIDO, 2006, p. 19).
São fatos e sentimentos marcados pela tensão moral, pela crueldade, pela perversão e pelo crime, “que testam as nossas possibilidades diabólicas.” (CANDIDO, 2006, p. 20). O que confere às personagens azevedianas, tanto as de Macário, quanto as de Noite na taverna, um caráter de herói maldito (Byroniano), típico do Romantismo.
Satã conduz Macário a uma nova vida, evitando, inclusive, sua morte, que seu discípulo procurava insistentemente. Ao mesmo tempo em que a personagem faz descobertas que contradizem suas antigas convicções, falta a Macário conhecer o segredo do universo e de si mesmo.
“A angústia e a revolta da personagem continuarão, a viagem também. Na janela da taverna, Macário prosseguirá seu aprendizado. O livro acaba, mas a viagem não, posto que esta é interminável...” (LABRES, 2002, p. 68).
Macário é conduzido por Satã até essa janela da taverna, cuja vista, como já afirmado anteriormente, dá para uma sala fumacenta em que se encontram cinco homens ébrios, os quais segundo Claudia Labres (2002), talvez sejam Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann – “sentados a uma mesa. Macário pede a Satã que se cale para melhor ouvir o que lá dentro se passa. Satã que lhe prometera mostrar a vida, lhe dar amores e prazeres sexuais, (...), cala-se.” (LABRES, 2002, p. 73). Assim, permite a Macário que ouça as experiências de vida dos homens da taverna.
“O destino de Macário é incerto, dado o final em aberto que a obra apresenta. Não se sabe se seu fim é trágico como o do Fausto mítico ou não. Satã, porém, mostra a Macário um modo de esquecer aquilo que lhe faz mal” (LABRES, 2002, p. 73):
Macário – Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
 Satã – Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes do Esquecimento... A embriaguez é como a morte... (AZEVEDO, 2000, p. 562).

“Na impossibilidade de passar pelas águas do Letes, é na bebida que se encontra o caminho do esquecimento das coisas que fazem sofrer. O fim do maldito pode ser sofrido, porém, é no caminho do mal que encontra suas realizações.” (LABRES, 2002, p. 73). Dessa forma, Macário dá voz aos homens da taverna, seguindo o ensinamento de Satã que afirmara “Vais ler uma página cheia de sangue e de vinho.” (AZEVEDO, 2000, p. 561). Aquilo que será presenciado por Macário servirá como uma experiência, será a visão de uma vida que ele não conhece, mas que, como o próprio Satã diz, talvez seja mais fácil de ser vivenciada.
O crítico Antonio Candido (2006) propõe em seu ensaio, “A educação pela noite”, que além da ligação estrutural, há também uma ligação em termos pedagógicos entre as obras Macário e Noite na taverna:
pedagogia satânica visando desenvolver o lado escuro do homem, que tanto fascinou o Romantismo e tem por correlativo manifesto a noite, cuja presença envolve as duas obras e tantas outras de Álvares de Azevedo como ambiente e signo. E estou me referindo não apenas às horas noturnas como fato externo, lugar da ação, mas à noite como fato interior, equivalente a um modo de ser lutuoso ou melancólico e à explosão dos fantasmas brotados na treva da alma. (CANDIDO, 2006, p. 21-22).

A ‘educação pela noite’ proposta por Candido, portanto, tem a seguinte conotação ao ser aplicada à obra azevediana: como o ambiente/espaço das obras de Álvares de Azevedo é noturno, a alma da personagem azevediana, paralelamente, também é marcada pelas trevas, metáfora da melancolia sombria vivenciada pelo homem que é representado por Álvares de Azevedo em suas obras, homens marcados pelo tédio, pelo spleen, pela escuridão humana, esta simbolizada pela amargura, pelos tormentos de uma alma sofrida e dolorida.


NOITE NA TAVERNA



A localidade da taverna é indeterminada, assim como o tempo em que se passam os acontecimentos e as narrativas também é indefinido. A taverna trata-se de um mundo artificial, segundo Labres (2002), em que o mal está presente, fazendo parte de sua realidade, sendo essencial para que ela se constitua da forma que se apresenta nas obras.
A continuidade entre as duas obras pode ser observada, sobretudo, pela presença da taverna à cena final de Macário. O clima fantasmagórico que a envolve acaba por exercer duas funções: “1) manter a atmosfera fantasmagórica que perpassa Macário; 2) indiciar o tipo de narrativas que se seguirão em Noite na taverna.” (LABRES, 2002, p. 75). Se Macário termina com a personagem pedindo silêncio a Satã para que se possa ouvir o que se sucede, Noite na taverna tem início com o mesmo pedido por parte de Johann.
A professora Claudia Labres (2002) sintetiza bem o enredo:
Em uma atmosfera maldita, Noite na taverna se constrói como uma série de contos narrados pelas personagens que se encontram na taverna. Ou seja, forma-se um quadro geral, a taverna em que os cinco rapazes lançam-se ao desafio de narrarem histórias sanguinolentas, e os contos apresentam-se como narrativas (até certo ponto) independentes, que seguem a proposta inicial. Desse modo, a taverna não é o ambiente em que os acontecimentos – pelo menos não todos – se sucedem, mas o espaço em que eles serão recordados e trazidos ao presente como fantasmas do passado para continuarem aquilo que ficou inconcluso. (LABRES, 2002, p. 76).

Solfieri é o primeiro dos mancebos a narrar sua história e antes de iniciar deixa claro que tudo que será contado é realidade, uma realidade passada, mas que a lembrança rememora.
-Uma história medonha, não, Archibald? – falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. – Pois bem, dir-vos-ei uma história. Mas quanto a esta, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado.  (AZEVEDO, 2000, p. 567).

TAVERNA COMO AMBIENTE ORGÍACO:
·         TAVERNA (ESPAÇO INFERNAL)
·         FUMO – ALMA – VAGAR
·         VINHO – ÚLTIMA CEIA – IMORTALIDADE DA ALMA
·         ORGIA – COMUNHÃO COM A NATUREZA E O DEUS (ASPECTO SAGRADO TAMBÉM)
·         ENTÃO, o recordar transforma-se em um processo de busca da imortalidade da alma.
O que o rebelde deseja (e os cinco narradores das histórias de Noite na taverna o são) é tornar-se uma espécie de quase-deus e por isso torna-se um herói maldito. São, portanto, heróis rebeldes e malditos que habitam o espaço ficcional da taverna. “A taverna passa a funcionar como um espaço infernal em que os crimes cometidos e recordados pela orgia daquela ‘noite do século’ serão expostos pelas próprias personagens.” (LABRES, 2002, p. 79). Ao relembrar esses fatos, a morte e a perversão serão levadas para o interior da taverna. E, ainda, que em um espaço infernal, é na imortalidade da alma que os frequentadores da taverna depositam suas esperanças.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. In: A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. P. 13-26.

LABRES, Claudia. A poética do mal: A ficção de Álvares de Azevedo, Uma literatura sob o signo de Satã. (Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.



quarta-feira, 29 de março de 2017

(A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951): uma obra-prima premonitória do sensacionalismo midiático atual.):

(A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951): uma obra-prima premonitória do sensacionalismo midiático atual.):

(Crítica por Rafael Vespasiano).






“Obra-prima de Billy Wilder discute o sensacionalismo na imprensa através de um discurso que permanece contundente e cada vez mais atualíssimo. Durante a década de 1950, Billy Wilder foi o responsável por alguns dos maiores clássicos não só da década, mas do Cinema Mundial. Com Crepúsculo dos Deuses (1950), fez uma crítica ácida aos produtores de Hollywood; com O Pecado Mora ao Lado (1955), fez a censura ter que se desdobrar para ‘conter’ a ‘sensualidade’ espontânea de Marilyn Monroe; com Quanto Mais Quente Melhor (1959), utilizou homens vestidos de mulher que não podiam ceder aos encantos da mesma Monroe, para ironizar a máfia e sociedade. E ainda temos nos mesmos anos 50, filmes como Inferno nº 17 (1953), Sabrina (1954), Testemunha de Acusação (1957) e Se Meu Apartamento Falasse (1960).
Diretor refinado, audaz, e irônico, Wilder nunca se restringiu a gêneros ou convenções, o que se comprova pelos títulos citados acima. Sua ideia sempre foi de criar um cinema forte, comunicativo, popular, mas reflexivo e contundente, e, não apenas de obras para se assistir e esquecer.
Em A Montanha dos Sete Abutres, de 1951, Wilder causou a ira mais uma vez um caos de todo um segmento de indústria ao criticar os jornais e o modo sensacionalista de se fazer ‘notícia’. Narra a história de Chuck Tatum (Kirk Douglas), um jornalista arrogante e inescrupuloso que perde o emprego em diversos jornais de grande circulação, vendo sua carreira sem rumo o guiar até a pequena e pacata cidade do Novo México, onde arruma um emprego em um jornal discreto e correto. Sua concepção para se reerguer é que aquele emprego seja uma passagem rápida, porém, percebe a passagem do tempo e sua vida cair no anonimato.




Quando um minerador (Richard Benedict) é soterrado em uma montanha próxima dali, Tatum, de maneira sensacionalista, vê a oportunidade que precisava para voltar aos holofotes: dramatizar e prolongar a história daquele homem, fazendo daquele evento trágico mais trágico ainda, em um verdadeiro caso de comoção nacional, sensacionalismo exacerbado de todos que começam a chegar ao local, e conduzidos pela arrogância e ‘liderança’ do jornalista-herói, encarnado por um Douglas inspirado.
  Tatum finalmente conseguira o que queria: ser lido por um gigantesco público em uma grande história novamente. Mas a que preço? Tudo em A Montanha dos Sete Abutres remete ao pior do ser humano: egoísmo, manipulação, o particular ao invés de se atender primeiramente aos interesses da sociedade e humanidade.

Kirk Douglas garante à Tatum um ar de ironia que o perseguirá por todo o filme. Inigualável, sua atuação chama a atenção de todos os espectadores ao longo dos tempos desde a feitura desta obra-prima clássica e premonitória. ”



(KIRK DOUGLAS: TRÊS OBRAS-PRIMAS: TRÊS GRANDES ATUAÇÕES DO CENTENÁRIO ATOR)

(KIRK DOUGLAS: TRÊS OBRAS-PRIMAS: TRÊS GRANDES ATUAÇÕES DO CENTENÁRIO ATOR):





(Crítica por Rafael Vespasiano):


Spartacus (Spartacus): Stanley Kubrick, 1960:



Um dos maiores épicos produzidos em Hollywood e mais um feito genial, do gênio Stanley Kubrick. As cenas das batalhas são magníficas. Kirk Douglas interpreta um gladiador, Spartacus, que existiu na realidade da história do Império Romano, e lidera uma revolta dos gladiadores (que eram escravos dos nobres romanos, treinavam e lutavam até a morte do oponente na arena). A revolta toma proporções gigantescas e provoca forte repressão do Império; o final é inesquecível! Kubrick realmente era um gênio da Sétima Arte e um perfeccionista, o que percebemos em todos seus filmes, mas em "Spartacus", isso é intensificado e claríssimo, ao percebemos que ele consegue a melhor atuação de Douglas das que conheço. Kirk, como manda a personagem e o diretor, com certeza exigiu, consegue que o ator seja o mais intenso e visceral possível em sua interpretação. Uma performance histórica para o cinema mundial.


Glória feita de sangue (Paths of glory):  Stanley Kubrick, 1957:




 O filme se passa durante a Primeira Grande Guerra e Stanley Kubrick aproveita a história do seu filme -, (polêmica, pois, para encobrir o erro logístico, um comandante francês manda punir três soldados, com execução sumária, estes três soldados servindo como bodes expiatórios do erro estratégico daquele comandante) -, para criticar os horrores da guerra, mostrando que a guerra é inútil, só traz malefícios e todos saem derrotados. E Kirk Douglas interpreta um comandante bastante sensível e humano, que começa a perceber a inutilidade da guerra e esbanja talento em uma Grande atuação!

Sede de viver (Lust For Life): Vincente Minnelli, 1956:




“Dirigido por Vincente Minnelli, o filme retrata o drama da vida e obra de Vincent Van Gogh, se tornando um clássico que enfatiza os dramas de consciência de Van Gogh (numa interpretação única de Kirk Douglas) e os conflitos internos, com os outros artistas, com o meio social e com a crítica da arte da época, pois sua arte era visionária, de vanguarda, antecipando o Impressionismo, quanto à qualidade estética, antes do movimento eclodir nos fins do século XIX, na França.

 Douglas interpreta um pintor marcado pela a agonia e o sofrimento mental, tortuoso de sua mente. Durante todo o filme, Van Gogh, mantém um diálogo com seu irmão, Theo, com quem tem um laço de afetividade muito intenso. Muitos tormentos são representados no filme, que mostra sempre um Van Gogh, totalmente imergido em seus pensamentos, crédulo e fiel as suas verdades, o que o insere num mundo de solidão e infelicidade, o qual Douglas imprime veracidade e dramaticidade.”



quinta-feira, 16 de março de 2017

(GRAND PRIX, JOHN FRANKENHEIMER, 1966): (“A ANTECIPAÇÃO DO FIM DA ERA GLORIOSA DA F1”)

(GRAND PRIX, JOHN FRANKENHEIMER, 1966):

(“A ANTECIPAÇÃO DO FIM DA ERA GLORIOSA DA F1”):



“O cineasta John Frankeheimer é marcado de fato por obras-primas, basta citar os seus primeiros filmes para o cinema, destaque é o investimento na direção de atores em O Homem de Alcatraz, O Trem e em O Segundo Rosto, obras-mestras com toda certeza. O cineasta expressou junto a uma das melhores equipes técnicas cinematográficas da época, em Grand Prix, 1966, com um realismo expressivo, tecnológico, técnico, formal e contando com grandes atuações de um grande e magistral elenco em perfeita sintonia e grandes atuações, bem dirigido pelo excelente diretor supracitado, mais um clássico de sua cinematografia.
Frankenheimer e sua turma provavelmente não sabiam, mas, quando filmavam, estavam apreendendo o automobilismo num instante de transição. Testemunhavam o fim de uma era romântica e gloriosa da Fórmula 1 e do automobilismo como um todo, na qual os pilotos também eram mecânicos e responsáveis diretos pela fabricação de seus carros de corrida. O que faziam os pilotos correrem em um misto de amadorismo e profissionalismo era o amor pela velocidade, superação dos seus próprios limites psicológicos e físicos, o que é bem ressaltado no roteiro do filme em questão. Por outro viés da história, desenvolve o nascimento de um novo período, marcado de profissionalíssimo sistêmico, marcado pelos patrocinadores sedentos, capitalistas e desejosos de vender qualquer tipo de produto, sem se importar com ‘seus’ pilotos fantoches, e, sem se importar com o destino das vidas dos automobilistas. É o que representa a equipe japonesa Yamura (Toshiro Mifune) que ressalta mais ainda este aspecto de 'transição' da Fórmula 1, com seu piloto Aron (James Garner) supercompetitivo, mas ambicioso ao extremo da ética.

Vale destacar também as subtramas amorosas que dão maior realismo maior e densa profundidade dramática a este filmão de múltiplas facetas.”.



Últimos Sonetos, de Cruz e Sousa. "Vida obscura": ESTUDO do poema. Mais coletânea de poemas do livro.

Coletânea e estudos sobre Últimos Sonetos, de Cruz e Sousa. Seleção, organização e estudo por Rafael Vespasiano Ferreira de Lima.




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Vida obscura


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

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Estudo:

Os sonetos póstumos do último livro de Cruz e Sousa adotam um teor "mais reflexivo, filosófico. É uma poesia de enunciação de ideia, sem o construtivismo e o arranjo sintático ousado de Broquéis." (RICIERI, 2007, p. 79, nota de rodapé 2). 
Por isso mesmo são poemas mais conhecidos e populares do escritor catarinense. Pois, são, justamente, em virtude disso menos herméticos e obscuros.

Em "Vida Obscura": 
O eu-lírico/poeta é visto como um escritor maldito e marginalizado pela sociedade, desprezado por esta: "Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,/Ó ser humilde entre os humildes seres./Embriagado, tonto dos prazeres,/O mundo para ti foi negro e duro.". O eu-poeta viveu a vida preso "a trágicos deveres", alcançando o domínio do "saber de altos saberes", permanecendo "mais simples e mais puro". 
O poeta é um visionário, sensível às mínimas suscetibilidades do ser e da sociedade, mas vive à margem e repudiado pela sociedade, em especial, pelo público leitor e pela crítica literária contemporânea à poesia simbolista finessecular. Pois eram considerados escritores ilógicos e herméticos, alheios ao cosmopolitismo do século XIX, como propõe Francine Ricieri, no seu prefácio à sua Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira (2007, p. 13-37).
No soneto "Vida obscura", o eu-lírico-poeta é apresentado como um ser: "Magoado, oculto e aterrador, secreto,/Que o coração te apunhalou no mundo.". 
Porém, o poeta em seu "suspiro" final demonstrou que realmente carregou uma "cruz infernal" que "prendeu-te os braços" e, no fim de sua existência obscura o seu "suspiro como foi profundo!". Com direito a um ponto de exclamação, para ressaltar o sentimento de marginalização e desprezo pela sociedade.
Contudo, o ‘eu’ ao perecer alcança um momento de epifania e de elevação transcendental, que transfigura sua dor num momento de catarse poética, que ressalta sua simplicidade e humildade, mesmo tendo altos saberes e uma visão privilegiada da Vida. Os quais eram transpostos para os poemas e mesmo desprezado e apunhalado pelo mundo, tornou-se "mais puro" e transfigurou sua Dor em transcendência poética.
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 Coletânea:


Eternidade retrospectiva


Eu me recordo de já ter vivido,
Mudo e só, por olímpicas Esferas,
onde era tudo velhas primaveras
E tudo um vago aroma indefinido.

Fundas regiões do Pranto e do Gemido
Onde as almas mais graves, mais austeras
Erravam como trêmulas quimeras
Num sentimento estranho e comovido.


As estrelas, longínquas e veladas,
Recordavam violáceas madrugadas,
Um clarão muito leve de saudade.

Eu me recordo d'imaginativos
Luares liriais, contemplativos
Por onde eu já vivi na Eternidade!



Alma mater


Alma da Dor, do Amor e da Bondade,
Alma purificada no Infinito,
Perdão santo de tudo o que é maldito,
Harpa consoladora da Saudade!

Das estrelas serena virgindade,
Caminho do rosais do Azul bendito
Alma sem um soluço e sem um grito,
Da alta Resignação, da alta Piedade!

Tu, que as profundas lágrimas estancas
E sabes levantar Imagens brancas
No silêncio e na sombra mais velada...

Derrama os lírios, os teus lírios castos,
Em Jordões imortais, vastos e vastos,
No fundo da minh'alma lacerada!


A grande sede


Se tens sede de Paz e d'Esperança,
Se estás cego de Dor e de Pecado,
Valha-te o Amor, ó grande abandonado,
Sacia a sede com amor, descansa.

Ah! volta-te a esta zona fresca e mansa
Do Amor e ficarás desafogado,
Hás de ver tudo claro, iluminado
Da luz que uma alma que tem fé alcança.

O coração que é puro e que é contrito,
Se sabe ter doçura e ter dolência
Revive nas estrelas do Infinito.



Revive, sim, fica imortal, na essência
Dos Anjos paira, não desprende um grito
E fica, como os Anjos, na Existência.



Condenação fatal


Ó mundo, que és o exílio dos exílios,
Um monturo de fezes putrefato,
Onde o ser mais gentil, mais timorato
dos seres vis circula nos concílios.

Onde de almas em pálidos idílios
O lânguido perfume mais ingrato
Magoa tudo e é triste como o tato
De um cego embalde levantando os cílios.

Mundo de peste, de sangrenta fúria
E de flores leprosas da luxúria,
De flores negras, infernais, medonhas.

Oh! como são sinistramente feios
Teus aspectos de fera, os teus meneios
Pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!









Demônios


A língua vil, ignívoma, purpúrea
Dos pecados mortais bava e braveja,
Com os seres impoluídos mercadeja,
Mordendo-os fundo injúria por injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,
Dor de danados, dor do Caos que almeja
A toda alma serena que viceja,
Só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos
Demônios maus que os venenosos frutos
Morderam com volúpia de quem ama...

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,
Anões da Dor torcida e cancerosa,
Abortos de almas a sangrar na lama!

Na Luz


De soluço em soluço a alma gravita,
De soluço em soluço a alma estremece,
Anseia, sonha, se recorda, esquece
E no centro da Luz dorme contrita.

Dorme na paz sacramental, bendita,
Onde tudo mais puro resplandece,
Onde a Imortalidade refloresce
Em tudo, e tudo em cânticos palpita.

Sereia celestial entre as sereias,
Ela só quer despedaçar cadeias,
De soluço em soluço, a alma nervosa.

Ela só quer despedaçar algemas
E respirar nas amplidões supremas,
Respirar, respirar na Luz radiosa.



Espasmos...


Alma das gerações, alma lendária
Que tens tanto de Hamlet, tanto de Ofélia,
A candidez da rórida camélia
E as lágrimas da Sede hereditária.

Alma dormente, tumultuosa, vária,
Acorde de harpa misteriosa e célia,
Virgindade selvagem de bromélia,
Alma do Eleito, do Plebeu, do Pária.

És a chama do Amor, negro-vermelha,
De onde rompeu a fúlgida centelha
Que a Flor de fogo fez gerar no Dante.

Com teus espasmos e delicadezas,
Nervosas e secretas sutilezas
Enches todo este Abismo soluçante!





No seio da Terra


Do pélago dos pélagos sombrios,
Cá do seio da Terra, olhando as vidas,
Escuto o murmurar de almas perdidas,
Como o secreto murmurar dos rios.

Trazem-me os ventos negros calafrios
E os soluços das almas doloridas
Que têm sede das terras prometidas
E morrem como abutres erradios.

As ânsias sobem, as tremendas ânsias!
Velhices, mocidades e as infâncias
Humanas entre a Dor se despedaçam...

Mas, sobre tantos convulsivos gritos,
Passam horas, espaços, infinitos,
Esferas, gerações, sonhando, passam!













Anima mea


Ó minh'alma, ó minh'alma, ó meu Abrigo,
Meu sol e minha sombra peregrina,
Luz imortal que os mundos ilumina
Do velho Sonho, meu fiel Amigo!

Estrada ideal de São Tiago, antigo
Templo da minha fé casta e divina,
De onde é que vem toda esta mágoa fina
Que é, no entanto, consolo e que eu bendigo?

De onde é que vem tanta esperança vaga,
De onde vem tanto anseio que me alaga,
Tanta diluída e sempiterna mágoa?

Ah! de onde vem toda essa estranha essência
De tanta misteriosa Transcendência
Que estes olhos me deixa rasos de água?!





Ser dos seres


No teu ser de silêncio e d'esperança
A doce luz das Amplidões flameja.
Ele sente, ele aspira, ele deseja
A grande zona da imortal Bonança.

Pelos largos espaços se balança
Como a estrela infinita que dardeja,
Sempre isento da Treva que troveja
O clamor inflamado da Vingança.

Por entre enlevos e deslumbramentos
Entra na Força astral dos Sentimentos
E do Poder nos mágicos poderes.

E traz, embora os íntimos cansaços,
Ânsias secretas para abrir os braços
Na generosa comunhão dos Seres!



Sexta-Feira Santa


Lua absíntica, verde, feiticeira,
Pasmada como um vício monstruoso...
Um cão estranho fuça na esterqueira,
Uivando para o espaço fabuloso.



É esta a negra e santa Sexta-Feira!
Cristo está morto, como um vil leproso,
Chagado e frio, na feroz cegueira
Da morte, o sangue roxo e tenebroso.

A serpente do mal e do pecado
Um sinistro veneno esverdeado
Verte do Morto na mudez serena.

Mas da sagrada Redenção do Cristo,
Em vez do grande Amor, puro, imprevisto,
Brotam fosforescências de gangrena!



Clamor supremo


Vem comigo por estas cordilheiras!
Põe teu manto e bordão e vem comigo,
Atravessa as montanhas sobranceiras
E nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!
Vem, resoluto, que eu irei contigo
Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,
Só tendo a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo
Da Terra e transfigura em astros lodo,
O próprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,
Alma de eleito, Sentimento eleito
Para abalar de lado a lado o mundo!








A Morte


Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.


Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando...



Só!


Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;



Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito,

Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro...

Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!


Fruto envelhecido


Do coração no envelhecido fruto
É só desolação e é só tortura.
O frio soluçante da amargura
Envolve o coração num fundo luto.

O fantasma da Dor pérfido e astuto
Caminha junto a toda a criatura.
A alma por mais feliz e por mais pura
Tem de sofrer o esmagamento bruto.

É preciso humildade, é necessário
Fazer do coração branco sacrário
E a hóstia elevar do Sentimento eterno.

Em tudo derramar o amor profundo,
Derramar o perdão no caos do mundo,
Sorrir ao céu e bendizer o Inferno!
Êxtase búdico


Abre-me os braços, Solidão profunda,
Reverência do céu, solenidade
Dos astros, tenebrosa majestade,
Ó planetária comunhão fecunda!

Óleo da noite, sacrossanto, inunda
Todo o meu ser, dá-me essa castidade,
As azuis florescências da saudade,
Graça das graças imortais oriunda!

As estrelas cativas no teu seio
Dão-me um tocante e fugitivo enleio,
Embalam-me na luz consoladora!

Abre-me os braços, Solidão radiante,
Funda, fenomenal e soluçante,
Larga e búdica Noite Redentora!


Assim seja!


Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu Sentir latente.

Morre com alma leal, clarividente,
Da crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus, brandido
Como um gládio soberbo e refulgente.

Vai abrindo sacrário por sacrário
Do teu sonho no Templo imaginário,
Na hora glacial da negra Morte imensa...

Morre com o teu Dever! Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que descansa
Desdenhando de toda a Recompensa!



Renascimento


A Alma não fica inteiramente morta!
Vagas Ressurreições do Sentimento
Abrem já, devagar, porta por porta,
Os palácios reais do Encantamento!

Morrer! Findar! Desfalecer! que importa
Para o secreto e fundo movimento
Que a alma transporta, sublimiza e exorta,
Ao grande Bem do grande Pensamento!

Chamas novas e belas vão raiando,
Vão se acendendo os límpidos altares
E as almas vão sorrindo e vão orando...

E pela curva dos longínquos ares
Ei-las que vêm, como o imprevisto bando
Dos albatrozes dos estranhos mares...
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOUSA, Cruz e. Últimos sonetos. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.

RICIERI, Francine (Seleção e notas). Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional: Lazuli Editora, 2007.