sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams: (Tensão sexual e familiar)

Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams:
(Tensão sexual e familiar)
(Resenha por Rafael Vespasiano).


"Tennessee Williams faz parte dos grandes nomes do teatro estadunidense do século XX, junto a Edward Albee, Arthur Miller e Eugene O´Neill. A tradutora Beatriz Viégas-Faria cita o teórico e escritor (e amigo de Williams) Gore Vidal, que afirma que em Um bonde chamado desejo, o dramaturgo o confidenciou que “ele [Williams] era incapaz de escrever uma história que não tivesse pelo menos uma personagem pela qual ele sentisse desejo físico.” (VIÉGAS-FARIA, 2010, p. 10).

E, justamente, em Um bonde chamado desejo, o cunhado da personagem Blanche DuBois, Stanley Kowalski, é visto por aquela como um homem bruto, um trabalhador braçal, um verdadeiro ‘animal’ truculento. Mas são essas características animalescas e/ou brutas e antissociáveis que desperta o desejo sexual de Blanche pelo marido de sua irmã.

Viégas-Faria mais uma vez cita Vidal para afirmar que este “ressalta a importância de Kowalski tendo como personificado um objeto de desejo sexual que inaugurou na história dos Estados Unidos o reconhecimento de um fato: a luxúria feminina.” (Ibidem, p. 10).

Williams botou em discussão na América, dos anos 40/50 -, a peça foi publicada em 1947-, o debate sobre um tabu da sociedade norte-americana: sim, as mulheres desejam sexualmente os homens!

Em termos sociológicos mais amplos, Um bonde chamado desejo, é um espelho da sociedade estadunidense decadente, que é personificada pela protagonista DuBois, uma mulher muito bonita, que retorna à casa de sua irmã, Stella, pois suas economias e terras no sul dos EUA foram vendidas, hipotecadas, enfim, perdidas, em sua ânsia de ter tudo do bom e do melhor, em termos de roupa, perfumes, etc., mas os gastos não condiziam com os rendimentos da herança e da fazenda herdadas dos pais, e com a falência da economia sulista americana. Dubois desesperada e à beira da loucura, vai ao encontro de sua irmã, casada com Stanley, na cidade de New Orleans (diga-se de passagem várias notações teatrais fazem registro durante a peça, de shows musicais de jazz que estão ocorrendo simultaneamente à ação da trama, mostrando assim o nascimento daquele estilo musical tipicamente estadunidense; o jazz e seus primeiros acordes são mostrados sutilmente e vagamente, pelo dramaturgo. Dando mais um tom de melancolia à uma obra já merencória e decadente, tendo para a tragicidade.

A tensão que se cria entre o refinamento de DuBois e a grosseria do cunhado, reflete-se no campo sexual, primeiro ele exerce fascínio sexual sobre ela, depois é ela que cria um jogo de sedução para cima de Stanley; ao final os dois estão tensos e presos na mesma armadilha sexual, numa tensão sexual mútua, os dois se desejam sexualmente de forma recíproca.

Com isso, vem a ruína da família quando a irmã de Blanche, Stella, percebe que aquela está colocando o seu lar em perigo e humilhando o seu marido, mas este, agora, é presa fácil para DuBois, e, Stella percebe isso, que ele está sexualmente enredado pela sua irmã. Não há lugar para amor, carinho e sensibilidade em nenhum momento do enredo da peça de Williams, nem, no início entre Stanley e Stella (a relação dos dois já era conflituosa e arruinada), nem entre Dubois e Stanley, pois aqui a tensão se desenvolve em agressões mútuas, verbais e, até, físicas, mesmo sendo um homem agredindo uma mulher. Polêmica para a época não foi isso, mas o fato de DuBois destruir moralmente, fisicamente e agredir verbalmente e fisicamente um homem forte e brutal.    

 Dessa forma, o machismo, o patriarcalismo dos anos 40/50 da sociedade americana do início século XX, é posto em xeque e contestando discursivamente, verbalmente e fisicamente. A peça de Tennessee Williams é uma bomba de polêmicas e de desconstrução do discurso machista em que só o homem pode sentir desejo sexual e dominar a parceira. DuBois prova o contrário.

Contudo, o final acomoda o casal Stanley e Stella, em seu lar, e Stella enganada pelo marido, se ver forçada a expulsar a irmã DuBois de sua casa, de maneira forte, perturbadora e trágica. De certa forma, o machismo prevalece, mas leva um bom chute nos colhões."


"P.s.1: a peça estreou na Broadway, em 1947, com direção de Elia Kazan. Este diretor levou a peça para o cinema, no ano de 1951, com roteiro do próprio Williams e, utilizando o mesmo ator da peça de 47, a saber: Marlon Brando, este iniciava a construir uma carreira em Hollywood sólida e tornar-se-ia um mito do cinema em todos os tempos. Antes só fizera um filme, Espíritos Indômitos, já mostrando a que veio. Mas foi com o diretor Kazan que se consolidou no mercado cinematográfico norte-americano.

P.s.2: Kazan detonou, tempos depois, alguns colegas, ao entregar estes artistas para o Macarthismo, perseguição de uma autoridade política americana contra os artistas dos EUA comunistas (ou não!) que tinham contatos com quem o era, ou simplesmente concordavam com algumas coisas do comunismo. Cadê a liberdade de expressão, USA?

P.s.3: Marlon Brando foi dirigido por Kazan também no filme Sindicato de Ladrões, pelo qual Brando ganhou o Oscar de Melhor ator.

P.s.4: Elia Kazan tem bons filmes, mas pisou na bola, contudo sua obra fílmica ainda tem obras maravilhosas, como: Boneca de Carne, A luz é para todos, etc.

P.s.5: Quem viveu Blanche Dubois, no filme, de 1951, foi a excelente atriz Vivien Leigh. Que trava um verdadeiro duelo de interpretações, tal qual é proposto na peça original de Tennessee Williams. Quem sai ganhando? o espectador, pois dentro da peça/filme/trama, a decadência e o desfecho é de tragicidade para todas as personagens, alguns mais, outros menos. O filme foi lançado no Brasil com o título de Uma rua chamada pecado. Mas o título do livro, da peça original de Tennessee Williams é: UM BONDE CHAMADO DESEJO."

 REFERÊNCIA BILBIOGRÁFICA:


WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2010.  

ESCRITOR FRUSTRADO: "O AMANUENSE BELMIRO", de CYRO DOS ANJOS.

ESCRITOR FRUSTRADO

O AMANUENSE BELMIRO

CYRO DOS ANJOS

(resenha por Rafael Vespasiano).


Romance memorialístico de Cyro dos Anjos. Obra-prima deste autor. O livro é narrado em primeira pessoa, o que ressalta o caráter mnemônico do romance. O narrador-protagonista é Belmiro, um funcionário público frustrado, que aos 38 anos de  idade,  começa a refletir sobre sua vida, fazendo anotações em um diário que inicia.

Belmiro percebe que não fez nada de relevante em seus 38 anos de vida, ele rememora fatos de sua infância e adolescência e, mescla tais relatos com ocorrências de seu dia-a-dia. Belmiro é um ser racional; tal racionalidade faz com que sua vida interior (reflexões em fluxo de consciência e notas no diário) esmague de tal forma sua vida exterior, que esta fique estagnada e suas relações interpessoais são quase nulas, a vida profissional não progride e também não existe vida amorosa e/ou afetiva.

Belmiro, na verdade, tem anseio e desejos de ser escritor, mas não toma atitude e coragem para lutar por esse desejo, por esse dom, falta atitude moral e força de vontade, mais uma vez se esmaga e se embrutece na burocracia (burrocracia) de um escritório. Suas qualidades literárias são tolhidas em um emprego que não significa nada para ele.

Seu diário serve como uma espécie de romance que Belmiro escreve dentro do romance maior de Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, um romance dentro do outro – uma característica de metalinguagem. De certa forma, ao escrever tal diário, ele redige algo que extravasa seus dons literários, mas só para si. Porém, guarda isso com e para ele tão somente, frustrando-se mais ainda.

O diário não é um romance ao pé da letra, está mais para um diário pessoal, do seu dia-a-dia no escritório, no boteco com os colegas e sobre suas parcas relações sentimentais, familiares e amorosas. Mas o diário se torna um protótipo de romance, pois Belmiro tem qualidades literárias que poderiam ser aproveitadas e leva-lo a ser de fato um escritor, porém, a sua acomodação no trabalho emburrecedor e embrutecedor do escritório, a burocracia e as relações interpessoais pouco desenvolvidas, tornam Belmiro um ser solitário, tolhido, esmagado pela massa burrocrata, se torna um frustrado escrevente e copista; além de sua frustração como pessoa e como escritor marcarem e pontuarem a sua vida. Vida? Enfim, um ser derrotado e completamente frustrado é o resumo da existência de Belmiro. Uma belíssima obra memorialística do romancista mineiro Cyro dos Anjos.



p.s.: amanuense: sinônimo de escrevente, copista.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

TABU: O PASSADO E O PRESENTE: (rememoração fantasiosa).

TABU: O PASSADO E O PRESENTE

(rememoração fantasiosa)

Tabu, filme de Miguel Gomes, Portugal, 2012.

(crítica por Rafael Vespasiano).


"O cineasta português Miguel Gomes realiza uma das obras-primas do século atual. Tabu, fotografado em preto-e-branco, por vários motivos, eis alguns: ressaltar as emoções e expressividade das personagens; realçar o valor da rememoração que permeia todo o enredo do filme, etc.

Gomes afirma que a escolha do título é uma homenagem ao cineasta alemão, do início do século XX, F. W. Murnau, que filmou uma película com o mesmo título.  No filme de Murnau, na sua fase americana, o “tabu” é o relacionamento de um homem branco com uma índia.

Outra homenagem de Miguel Gomes ao diretor alemão é o nome da personagem principal do filme daquele, a qual se chama Aurora. Outro nome de filme de Murnau, na sua fase americana. No filme deste, uma femme fatale arrasa a vida de um homem e seu estável casamento.

Todas essas influências são transpostas para Tabu, do português Miguel Gomes, de maneira funcional, na estética, de acordo com o enredo proposto para o filme, não são meras referências gratuitas, de fato, Miguel Gomes soube beber das tradições cinematográficas de Murnau, para realizar um filme ímpar.

O filme é marcado por um narrador (a voz é do próprio diretor), que norteia o vai-e-vem entre passado e presente, nas rememorações, da segunda parte; pois, o filme é dividido em duas partes: a primeira, Paraíso Perdido e, a segunda, Paraíso; a primeira se passa no presente da narração fílmica. Com a personagem Aurora já bastante idosa, doente e saudosista, e suas saudades e memórias são sempre interpretadas como “loucuras da idade avançada”, porém, são metáforas fantasiosas sobre o seu passado, que será desvelado, na segunda parte.

O filme é lento, contemplativo, melancólico, contudo essas características não prejudicam o andamento da narrativa, num roteiro enxuto e reflexivo. O nome da personagem principal, Aurora, é bastante sintomático, pois o filme vai do presente para o passado (por meio da memória), a Aurora, - no “presente”, no “Paraíso Perdido”, na primeira parte da história, que se passa em Portugal -, é uma personagem merencória e o tom do enredo é de melancolia, e, na verdade, “o presente” é crepuscular e, não uma “aurora”. Uma “aurora” que é “crepuscular”? Paradoxal?! Mas uma metáfora belíssima. Para comprovar isso, tem que se assistir ao filme.

Ao voltar ao passado, na segunda parte, “Paraíso”, que se passa no continente africano, Moçambique, colônia portuguesa, que lutava naqueles idos pela independência da metrópole (neocolonialismo).  Vemos Aurora vivendo feliz, no “paraíso”, com o marido, até o surgimento de um aventureiro.

Nessa rememoração, nesse grande flashback, há ausência de diálogos, tal quais os filmes silenciosos do início do século XX. O narrador é quem pontua os fatos e os sentimentos em off. Os atores têm que demonstrar as habilidades, as quais os artistas de filmes mudos tinham que mostrar os seus sentimentos e a sua expressividade, por meio dos gestos e do corporal das suas personagens, na Era do Cinema Silencioso. Aqui a maior homenagem aos filmes de Murnau, no sentido cinematográfico do filme de Miguel Gomes. Os atores do filme Tabu, 2012, fazem isso primorosamente bem, eles dialogam, mas os sons das falas não chegam ao espectador. Criando suspense e curiosidade neste. E um efeito estético belíssimo, baseado na sugestão e nas notações narrativas dadas pelo narrador.

Destaque, por fim, na verdade, ao prólogo do filme, uma narrativa fantástica e fantasiosa, que é marcada por um crocodilo, um caçador e uma mulher morta. Esse prólogo é fundamental para entender as fantasias criadas por Aurora na primeira parte do filme e que se explicam na segunda parte, quando da rememoração explanadora desta parte, que é o passado definindo o presente de Aurora.


Excelente filme! Recomendadíssimo."

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P.s.: Murnau dirigiu Nosferatu, até hoje um dos clássicos do horror, o primeiro filme do Drácula, nos cinemas; com atuação hipnótica de Max Schreck, como o Conde Orlok, pois Murnau não tinha os direitos autorais da família de Bram Stocker, para o Conde Drácula, por isso improvisou. 
E fez um dos melhores filmes do, "Drácula", em todos os tempos, não só dentro do Expressionismo Alemão.


domingo, 26 de outubro de 2014

Moby Dick, Herman Melville: (a vingança obsessiva).

Moby Dick, Herman Melville

(a vingança obsessiva)

(resenha por Rafael Vespasiano)

“Moby Dick publicado, em 1851, e, que foi escrito pelo norte-americano Herman Melville, é um romance detalhista que tem como objetivo declarado pelo “autor implícito”, - este se apresenta na figura do narrador-testemunha Ismael, - o de narrar e descrever a pesca baleeira realizada pelos estadunidenses durante o século XIX.

O descrever em excesso pelo narrador faz que o romance tenha certa lentidão e repetição de informações. Levando-o a parecer muito com os romances naturalistas-científicos do século XIX, à maneira de Zola, o escritor francês de Germinal.

Contudo, o romance de Melville tem um quê de Romantismo atrasado, isso porque se trata de uma narrativa de aventura marítima, com tons místicos e exóticos, típicos do Romantismo de capa-e-espada, só que no caso de Melville transpostos para o mar e para a caça às baleias. O romance tem um tom também de pessimismo, pois a obra esboça desde o princípio do narrar e do descrever os primeiros momentos da personagem principal, Capitão Ahab, um destino final da mesma, que já se prefigura e se mostra fardado ao trágico.

 Segundo Otto Maria Carpeaux, Herman Melville “tinha escrito alguns bons romances da vida marítima, (...), para cair depois em esquecimento completo (...)” (CARPEAUX, 2011, p. 1895). Ainda de acordo com Carpeaux:

Por volta de 1920, (...), redescobriram Melville. Conservaram-se-lhe sempre fiéis alguns leitores românticos, gostando da sua obra como documento do tempo em que os veleiros americanos navegavam pelo Pacífico, antes de a guerra civil acabar com a marinha mercante dos Estados Unidos. Agora se descobriu nesse romântico ‘atrasado’ um grande poeta épico e nas aventuras do capitão Ahab contra a baleia, em Moby Dick, a epopeia do espírito de aventura americano. (Ibid., p. 1895).

Talvez hoje, século XXI, sua obra seja anacrônica e politicamente incorreta, visto a forte tendência à extinção das baleias, promovida justamente pela caça predatória dos séculos XVIII e XIX e, que continua ainda hoje por certos países como o Japão. Tal fato é constantemente denunciado em documentários e reportagens. Sem contar a luta de diversas ONG´s contra esse tipo de caça; e, inclusive, hoje se recrimina muito até os parques aquáticos onde as baleias se apresentam como artistas, mas porquê se descobriram os maus-tratos a que elas são submetidas.

No romance temos detalhes naturalistas da caça baleeira de então. Já nas figuras exóticas dos arpoadores Dagu, Tashtego e Quiqueg, defrontamos com o que por outro lado remete a um romantismo, como afirmou Carpeaux “atrasado.”. Os imediatos Strubb e Flashk são figuras tragicômicas. E o primeiro imediato Starbuck é o único que desafia a autoridade do capitão Ahab.

Ahab está em busca de vingança contra a baleia branca Moby Dick, que lhe arrancara a perna em outra viagem baleeira. O capitão do navio Pequod promove uma nova viagem de caça baleeira, pelo menos a priori, aparentemente, para os sócios donos do veleiro e para a tripulação; - só já distante da costa em pleno oceano, o Capitão Ahab revela o verdadeiro objetivo da viagem, que não se trata de uma simples caça baleeira, mas de uma vingança mortal.

Carpeaux assevera que o escritor Melville é um revoltoso contra “o calvinismo novo-inglês (...).” (Ibid., p. 1896). E que em várias passagens de suas obras encontram-se “numerosas alusões nos seus romances demonstram a sua curiosidade e vastos conhecimentos filosóficos e literários, sobretudo da literatura elisabetana e da romântica.” (Ibid., p. 1896).

O crítico Otto Maria Carpeaux afirma que o estilo de Herman Melville é marcado pela “veemência lírica”. E assevera que “Moby Dick, [é uma] obra antivitoriana porque a vitória cabe, no desfecho, ao espírito do Mal. O romantismo de Melville, (...), não é, porém, autêntico (...)” (Ibid., p. 1896).

As pretensões de Herman Melville são “grandiosas” e “também foi desmesurado seu sucesso póstumo, devido, em parte considerável, (...), ao desejo dos norte-americanos de possuir um grande poeta épico.” (Ibid., p. 1896).

Porém, suas intenções, na maioria das vezes, ficavam atrás das realizações propriamente ditas, “menos, talvez, nas novelas curtas e em Billy Budd, baseado em experiência trágica.” (Ibid., p. 1896). Sua documentação é “quase de um naturalista; Moby Dick é um manual da pesca das baleias. Isso o aproxima de Zola (...)” (Ibid., p. 1896). Melville, também “era um romântico ao quais as circunstâncias exteriores e interiores impuseram o realismo” (Ibid., p. 1896).

Ou seja, que se ressalte o escritor norte-americano é marcado por um “realismo-científico”, nos termos de Jakobson, portanto, um autor naturalista, pois se preocupa em classificar e dissecar as baleias e as suas diversas espécies. Toda essa descrição notadamente naturalista. Mas, também um “romântico atrasado”, pelo exotismo de certas personagens e pelo tom aventuresco da obra.

Também é importante notar o tom bíblico que marca a obra, referências ao profeta Jonas, segundo a Bíblia, aquele fora engolido e regurgitado por uma baleia; tem-se a presença de uma personagem no início da obra de nome Elias (um dos profetas bíblicos), que prenuncia o desfecho da viagem do navio Pequod. Sem contar o narrador-testemunha, Ismael, também uma personagem bíblica, que narra à obra inteira, na primeira pessoa. E o narrador também se dirige ao leitor de forma direta, criando uma identificação entre ele e o leitor-; Ismael é onisciente de tudo que se passa a bordo e do que acontece e acontecerá; e de como terminará a viagem e qual será o destino do Capitão Ahab e da sua tripulação, da qual Ismael também faz parte.

Vale a pena ressaltar também a mistura dos gêneros na obra, pois em muitos momentos os capítulos de Moby Dick se iniciam com notações teatrais, dessa forma a obra faz uma miscelânea poética dos gêneros narrativo (épico), dramático e também lírico (nas cantigas dos marinheiros).
Para Carpeaux, enfim, Moby Dick é uma:

epopeia dos esforços inúteis da humanidade contra as forças da Natureza talvez a primeira obra de literatura universal em que no centro dos acontecimentos não está colocado o homem, mas a realidade objetiva das forças extra-humanas do mar, do Destino como peso material. Contra esse inimigo só vale a atitude cervantina. (Ibid., p. 1897).

A obra é, portanto, “um símbolo da escravização do homem pelo destino: expressão simbólica do dogma puritano da predestinação (...)”. (Ibid., p. 1897).”.



  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MELVILLE, Herman. Moby Dick. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, volume III. São Paulo: Leya, 2011. p. 1895-1897. 

“Quando o paciente é o médico”/ Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes. / (crítica por Rafael Vespasiano).

“Quando o paciente é o médico”

Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes.
(crítica por Rafael Vespasiano)


"Um filme que me impactou bastante foi "Era uma vez eu, Verônica", de Marcelo Gomes; com uma estupenda atuação da Hermila Guedes. E o W. J. arrebenta como o pai da Verônica do título.
A protagonista é uma mulher independente, médica recém-formada, sem planos de casar, curte o sexo e ponto. Uma mulher que é... mulher, porra! Porém, passa por uma crise existencial, da qual do jeito que sair dela, determinará o rumo da sua vida e do seu pai. A relação entre os dois é de uma cumplicidade quase que em extinção nos dias de hoje. Verônica é uma personagem que vive os dilemas da idade, o futuro profissional começa a se desenhar, na sua residência em psiquiatria.
Mas, ela é que é a verdadeira paciente. O filme ainda reflete um pouco sobre as questões do Recife do século atual, melhor explorado no "O Som ao redor", de Kléber Mendonça Filho. E retrata o caos que é um hospital público no Brasil, imagine no Nordeste! E o descaso para com os pacientes de transtornos mentais. Filme forte, mas de valor inquestionável!
O cinema nacional merece respeito e não preconceito de nós mesmos (o cinema brasileiro de todos os tempos, inclusive de algumas chanchadas e pornochanchadas), com exceção do gênero novo, do século XXI, no Brasil, que são as comédias besteirol produzidas pelo Globo Filmes, a “Globo chanchadas”, que são porcarias.
 Apesar de a produtora das Organizações Globo ainda produzir alguns dramas bons, principalmente, quando der liberdade criativa a diretores autorais e com produção independente; aí a Globo Filmes entra, apenas, como uma mera segunda ou terceira produtora associada, o resto do filme é independente, é cinema de guerrilha que faz o cinema nacional brilhar. Sempre o foi assim.

Recentemente o filme Trash, coprodução anglo-brasileira, dirigida por Sthepen Daldry, o mesmo diretor de Billy Elliot, O Leitor, As Horas, etc.; filmada no Brasil, tendo como protagonistas os excelentes atores Wagner Moura e Selton Mello; o filme ganhou o prêmio máximo do júri popular entre 18 produções, no prestigiado Festival de Roma, em 2014, na semana passada."

sábado, 25 de outubro de 2014

O popular e o erudito em Cobra Norato, de Raul Bopp

O popular e o erudito em Cobra Norato, de Raul Bopp:

"COBRA NORATO", de 
RAUL BOPP

(resenha por Rafael Vespasiano)

“Raul Bopp é um poeta gaúcho, que, geralmente, é “encaixado” no Grupo Paulista do Modernismo Brasileiro, em sua Primeira Geração, fazendo parte dos movimentos Pau-Brasil e da Antropofagia.
Com Cobra Norato, de 1931, cujo tema vem do fundo popular, Raul Bopp compõe, na linha do "primitivismo" da década de 1920, um dos mais belos poemas inspirados pelo Movimento Antropofágico.
Neste poema, Bopp inclui dramaticidade e um fundo épico-mitológico nas selvas amazônicas, valendo-se de verso livre, elementos do folclore e da fala regional, em um ritmo telegráfico.
O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas”, isto é, as terras do “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: partida/iniciação/retorno.
Pela força de suas descrições, pelo lirismo que informa o poema, pelo seu aproveitamento das raízes populares, é um documento de valor definitivo do nosso Modernismo. Trata-se também da primeira fase da antropofagia, por isso Cobra Norato é de um nacionalismo exacerbado, que visava destruir da cultura estrangeira imposta ao Brasil. Tanto que o poema faz uso da linguagem popular, infantil, africana e tupi-guarani, ressaltando a criação de uma linguagem poética/literária tipicamente brasileira.
Cobra Norato é um livro de poemas que propunha renovar e modernizar as Letras Brasileiras; no poema, em questão, Bopp (re)conta as supostas origens da Amazônia, a Gênese desta, simbolizada pela figura de Cobra Norato, que é uma lenda oral e mítica da amazônia sobre a criação daquela região. Poemas interessantes, nos quais o poeta “brinca” com as palavras, cria outras, etc.
O livro, “Cobra Norato”, faz parte do movimento modernista brasileiro de tratar dos temas populares e “primitivos” da cultura popular do país. Geralmente, aproximo aquele livro de poemas, de Raul Bopp, às obras “Martim Cererê”, de Cassiano Ricardo e “Macunaíma”, de Mário de Andrade; os dois primeiros em verso e, “Macunaíma”, em prosa; três livros que deram novos rumos à Literatura Brasileira.

Um livro importante, portanto, para compreender o início do Movimento Modernista no Brasil.”

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

BANGUÊ, de JOSÉ LINS DO REGO:
A substituição de um poder opressivo por outro sistema social também opressivo

(resenha por Rafael Vespasiano)


José Lins do Rego é um romancista da Segunda Geração Modernista Brasileira, que vai de 1930 até 1945 - uma geração marcadamente regionalista -, vale citar outros autores como: Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Jorge Amado, esses três citados, assim como Lins do Rego, são regionalistas nordestinos e, há também outro, porém, gaúcho, que é, justamente, Érico Veríssimo.
Mas, não se pode ficar preso, entretanto a esses rótulos e classificações estanques das obras e dos autores. Faz-se necessária a análise diegética de cada obra de cada autor. Vejamos Banguê, de José Lins do Rego:
José Lins do Rego divide, ele próprio, sua obra em três ciclos, o da cana-de-açúcar, o do cangaço e o memorialista, essa divisão foi acatada pela crítica literária brasileira. Contudo, o primeiro e o terceiro ciclos se entrelaçam. "Banguê" pertence ao ciclo da cana-de-açúcar, junto com "Menino de Engenho", "Doidinho", esses três formam a "trilogia inicial" da obra de Lins do Rego, aquele ciclo é concluído com "Moleque Ricardo" e "Usina".
"Banguê" é a terceira parte da trilogia citada, precedida por "Menino de Engenho" e "Doidinho", nessa ordem. Essa trilogia mostra a vida de Carlinhos, desde sua infância, mostrada em "Menino de Engenho", vivida no engenho de seu avô, o velho Zé Paulino, o engenho deste chama-se Santa Rosa, o qual está em pleno funcionamento e esplendor; em "Doidinho", Carlinhos vai estudar em um colégio interno, depois de um tempo foge dele e volta para o engenho de seu avô.
E, em "Banguê", Carlinhos está com 24 anos de idade e formado em Direito. Carlinhos acompanha o declínio e morte de seu avô. Aquele assume o comando do Engenho Santa Rosa, porém não consegue evitar seu declínio e acaba vendendo-o para a Usina São Félix; nesse acontecimento do enredo está representada a decadência dos engenhos de açúcar tradicionais, que são substituídos pelas usinas açucareiras, portanto, o poder dos Senhores de Engenho é substituído pelo dos usineiros.
 Poder exercido até hoje, e preste atenção o leitor, que o livro é de meados do século XX e já estamos no século XXI, continuando o sistema/política do coronelismo até hoje, só mudando de mãos, dos senhores de engenho para as dos usineiros, fato evidenciado por esse romance em questão, ou seja, os "coronéis" passam a serem os usineiros, e não mais os senhores de engenho.
Carlinhos sempre teve uma visão crítica negativa em relação a situação de poder demasiado de seu avô como "coronel", em relação à exploração, miséria e péssimas condições de sobrevivência dos trabalhadores do engenho Santa Rosa, mas quando assumiu o comando deste não fez nada para mudar a situação e reconhece isso, a sua própria impotência ante os fatos. Até no amor por uma mulher casada, Maria Alice, foi fraco, impotente e frustrado para mudar a situação a seu favor.
Sua vida toda foi marcada pela frustração e impotência reconhecidas por ele próprio, em suas memórias narradas em primeira pessoa, nessa brilhante "trilogia" de José Lins do Rego.




P.S.: "Banguê" é um termo, que é sinônimo de “engenho de açúcar”.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

TETRALOGIA DA INCOMUNICABILIDADE:
(A atualidade de uma obra, do século XX, que se mostra cada vez mais real, nesse mundo virtual do século XXI).
(crítica por Rafael Vespasiano).

Bem vou falar em breves linhas da Tetralogia da Incomunicabilidade, do cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Começo pedindo desculpas aos internautas, pois não tenho um texto específico formulado sobre o primeiro filme da Tetralogia, “A AVENTURA”. Assisti ao filme há alguns anos, precisaria revê-lo para escrever sobre o mesmo. Já os outros três filmes da proposta fílmica do diretor italiano, as críticas já foram escritas no início dos anos 2000 e revistas em 2014, para publicação no Blog.
O que posso adiantar sobre “A Aventura”, é que tem a mesma atriz dos outros três filmes, Monica Vitti. Que desaparece numa ilha e se passa a procura-la, mas o diretor não está preocupado, como possa sugerir o título do filme, em realizar uma película de investigação do paradeiro da personagem, tanto que depois de algum tempo o seu desaparecimento torna-se apenas pretexto para a crise existencial que se revela nas personagens e a falta de diálogo entre as mesmas. A investigação aqui é existencial de cada personagem, suas crises existenciais, a falta de sentido e a falta de vontade em lutar para estabelecer comunicação-diálogo com as outras personagens. A Incomunicabilidade já se faz presente desde o primeiro momento e seguirá em todos os filmes da tetralogia.
As histórias, roteiros são únicos, ou seja, não continuam de um filme para outro, como a trilogia d´O Poderoso Chefão, de Francis Ford Copolla, por exemplo. A questão não é enredo e história, que muda de filme para filme, personagens mudam, outras tramas são enfocadas. Mas todas permeadas pela premissa-mestra da tetralogia, a ideia que o cineasta quer desenvolver a Incomunicabilidade contemporânea, pós-moderna.
A tetralogia é dos anos 60 do século XX, mas tão atual. Basta ver os debates, de 2014, em especial no segundo turno para o cargo de Presidente do Brasil, não há debate de propostas, mas afrontas, acusações, ruídos na comunicação das ideias e propostas para a construção de um país melhor e mais igual, independente de quem for eleito. Pois, a comunicação e troca de ideias em um debate presidencial é fundamental, pois o eleito (a) pode aproveitar, por que não as ideias do adversário quanto eleito, já que reconhece que no debate construtivo, a ideia daquele vai ao encontro de seu plano de governo e é só acrescentar e aprimorar. Não é vergonha ou demérito nenhum. É comunicação dialogada!

Antonioni já discutia isso há alguns anos...


A Noite, filme de Michelangelo Antonioni:
(crítica por Rafael Vespasiano)


Uma verdadeira obra-prima do cinema intimista de Michelangelo Antonioni, segunda parte da famosa e dita "Trilogia da Incomunicabilidade", formada além de "A Noite", por "A Aventura" e "O Eclipse". Com "A Noite", Michelangelo Antonioni ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, em 1961, com uma direção primorosa e com atuações magníficas de Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau e Monica Vitti! O casal vivido por Mastroianni e Moreau está passando por uma crise no seu relacionamento amoroso, além de cada um está vivendo uma crise existencial particular. Têm-se também momentos muito melancólicos e angustiantes, mostrando o vazio existencial dos dois, muito bem explorado pelo diretor através de tomadas onde o silêncio contemplativo é total e vale mais que mil palavras. O casal embarca numa longa noite, onde terá que resolver todos os seus problemas de relacionamento entre si e consigo mesmos, para acontecer isso, terá que se comunicar coisa difícil, nesse filme, dada a alta incomunicabilidade entre os dois. Obra-Prima do cinema intimista e reflexivo mundial! Antonioni é um verdadeiro gênio!


O Eclipse, filme de Michelangelo Antonioni:
(crítica por Rafael Vespasiano)

Michelangelo Antonioni e mais uma obra-prima de sua filmografia, "O Eclipse" é a terceira e última parte da célebre "Trilogia da Incomunicabilidade", iniciada com "A Aventura", seguida de "A Noite" e concluída com "O Eclipse". Neste filme, mais uma vez, o silêncio contemplativo é a personagem principal e fundamental do filme. As personagens não conseguem se expressar, comunicar, verbalizar ou demonstrar seus verdadeiros sentimentos, escondidos no fundo do coração, pela incomunicabilidade, tão típica do ser humano contemporâneo.
Direção magistral e excepcional do mestre da Sétima Arte, Antonioni. Atuações marcantes de Monica Vitti e Alain Delon! Esse filme ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, junto com "O Processo de Joana D´Arc", de Robert Bresson. No mesmo ano, 1962, "O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, clássico do cinema brasileiro, que ganhou o prêmio máximo de Cannes, a Palma de Ouro. Portanto, nesse ano foi exibido filmes espetaculares, basta citar apenas esses três.


Deserto Vermelho, filme de Michelangelo Antonioni:
(crítica por Rafael Vespasiano)

Antonioni dá sequência em Deserto Vermelho à Trilogia da Incomunicabilidade (formada por A Aventura, A Noite e O Eclipse). Assim, Deserto Vermelho compõe, na verdade, o que acabou ficando conhecida como a TETRALOGIA DA INCOMUNICABILIDADE, idealizada pelo cineasta ímpar italiano, Michelangelo Antonioni.

 É mais uma vez uma reflexão sobre questões existenciais, envoltas numa atmosfera de amargura, solidão, melancolia e angústia, protagonizada de novo por Monica Vitti. O silêncio é mais importante que mil palavras/diálogos, o silêncio já diz tudo, comunica o que não se comunica entre as personagens, por dificuldades nas relações interpessoais e sentimentais, e por causa da crise existencial das principais personagens. Ótimo desfecho para que se pretendia uma Trilogia, virou Tetralogia atualíssima e, infelizmente, atemporal!
“UM BRASIL (IN)-VIÁVEL: MAS A ESPERANÇA NÃO MORRE”

“CRONICAMENTE INVIÁVEL”

(CRÍTICA do FILME “CRONICAMENTE INVIÁVEL”, de SÉRGIO BIANCHI, por Rafael Vespasiano).


“Sérgio Bianchi deve ser persona non grata para os governos brasileiros, tanto de direita, quanto de esquerda, porque ele é um crítico social imparcial, faz ficção com tom documental. Expõe as mazelas do Brasil sem dó nem piedade de ninguém, seja governo, povo, sociedade, espectador, artista, intelectual, etc. Todos são atacados, não há mocinhos nem bandidos, mas brasileiros, na maioria das vezes, trambiqueiros e que querem se dar bem à custa dos outros: individualismo no pior sentido. Para o cineasta o Brasil é inviável politicamente, economicamente, socialmente, etc. Tão atual esse filme de 2000, para 2014: nesse período de eleições, em que estamos no momento de qual é o melhor para votar em presidente, se isso existe numa democracia plausível. O filme ataca tudo intelectualidade mesquinha, classe burguesa média interesseira e alienada, passividade do povo brasileiro, seja rico ou pobre, preconceito contra nordestinos, contra índios, contra imigrantes, migrantes, negros, gays, etc. Atual? Sim! O filme mostra as cinco regiões do Brasil por meio de crônicas e personagens que transitam entre elas. Ainda há a exposição do MST, dos sem teto, a reflexão sobre essas minorias, a dos mendigos e pedintes; a fome, a carvoaria, trabalho escravo e infantil; falta de escolaridade; estudo, de maneira geral; povo sem condições de criticidade; o extermínio indígena pelos europeus; a escravidão; o trabalho doméstico dos negros humilhados, de diversas formas, pelos patrões; mas existem personagens conscientes das mazelas sociais brasileira, porém, ou são passivas, ou falam da boca para fora, mas não se preocupam em fazer sua parte, ativismo político e social jogado para escanteio, ora um personagem que parte para o enfrentamento com o patrão e se fode, nas garras da polícia, que protege o bom burguês, né? Alta sociedade, classe média, submundo, rincões do país são explorados habilmente nessa obra-prima de Sérgio Bianchi. A personagem que parecia o intelectual engajado, ativista e correto... Bem, vejam o filme! Tem ainda a crítica ao tráfico de órgãos e ao tráfico de gente, bebês recém-nascidos vendidos para estrangeiros. Elenco maravilhoso: Betty Goffman; Daniel Dantas; Cecil Thiré; Umberto Magnani; Dira Paes; Dan Stulbach; Zezeh Motta, Zezé Polessa; Pereio; Cosme dos Santos, etc. Outros filmes que Bianchi detona a hipocrisia e o status quo da sociedade brasileira (não sei como ele ainda recebe incentivos culturais e cinematográficos das leis de incentivo à cultura e ao cinema do governo, seja de direita, seja de esquerda!, pelo menos não tem censura, já é alguma coisa.), são: Maldita Coincidência (à época da Ditadura Militar, 1979), A Causa secreta (baseado no conto machadiano), Quanto vale ou é por quilo?, Os Inquilinos, retratando a violência urbana brasileira do século XXI, e o mais recente que está circulando por festivais e ganhando prêmios, o filme de 2013, Jogo de Decapitações, que já está em exibição no Canal Brasil, da NET, 150. Recomendo esse cineasta por sua coragem, seu estilo único e arrojado, belos roteiros de crítica social imparcial e por seus filmes realmente serem esteticamente ótimos e reflexivos para mudar o Brasil. Para melhor, lógico! Pelo menos apesar de sua imparcialidade, no filme em tela, Cronicamente Inviável, Bianchi termina o mesmo com uma cena epifânica e de tom esperançoso, de quem menos se espera uma visão de otimismo e esperança.”   
(POR) DENTRO DA CASA
(Crítica do filme Dentro da casa, de François Ozon, por Rafael Vespasiano)

“Dentro da casa” é um filme do cineasta francês François Ozon, película esta que tive o prazer de ver recentemente. Trata-se de uma obra excelente e que reflete e discute muitos aspectos da pós-modernidade. Como o voyeurismo, por exemplo.
Nesse caso, um estudante secundário e de classe baixa (Claude) consegue entrar na casa que ele observava de fora e não tinha acesso a ela, pois não era amigo do colega de escola, que mora nessa residência com o pai e a mãe. Claude planeja uma forma de entrar na casa; isso se dá ao começar a travar relações com o colega, no intuito de dar dicas e ajudar na disciplina de Matemática, a qual o colega demonstra muitas dificuldades para tirar uma nota boa. Dessa forma, Claude consegue entrar na casa.
E consegue “observar” o interior da mesma; aos poucos o voyeurismo vai num crescente, que pode trazer consequências terríveis. O que move o filme, na verdade, são as redações que Claude escreve e entrega ao professor de Literatura do colégio. No começo este professor está entediado e sem perspectiva profissional e sentimental. Porém, Claude vem preencher essa lacuna, pois o professor começa a achar, lendo os escritos de Claude, que com os seus conselhos, o pupilo poderia se tornar um bom escritor. Aqui temos outra reflexão sobre ficção e realidade e suas inter-relações.
Pois o que Claude escreve são observações voyeurísticas da realidade que ele observa na casa de classe média; o Professor não percebe que nos escritos existe muito pouco de ficção e muito de realidade, na verdade, apenas relatos do vivido pela família e o “intruso”. E as complicações nas relações e na história começam a se desenrolar.
O tanto de ironia que transparece nos escritos de Claude é que confunde o Professor, este pensa tratar-se de estilo de escrita de Claude, mas aqui temos mais um caso de tentativa de desestabilizar um ambiente familiar em harmonia e questões de classe social e desigualdade – Claude é de classe baixa, a família que ele tem “acesso” é de classe média –, há certo rancor por parte de Claude pelo fato dele vim de uma classe inferior (baixa) e ter sua família desestruturada.
Tudo isso são reflexões fílmicas de uma realidade nossa. O momento que vivemos que segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, é marcado por uma “modernidade líquida”, fragmentada e consumista. E, portanto, o filme discute temas que estão nesse rol de reflexões pós-modernas: voyeurismo; inveja e ciúme; valor da arte; relevância das artes (Literatura e Artes Plásticas); desigualdade social; reflexão sobre o fazer literário; famílias desestruturadas; falta de sentido na vida, etc.
O filme em nenhum momento julga as personagens, isso cabe ao espectador, se é que nossa função nesse caso seja julgar as personagens do filme. O roteiro faz referência ao livro Madame Bovary de Gustave Flaubert, talvez aí a explicação (e a sugestão do diretor) de não julgarmos aquelas. E a referência ao filme de Pasolini (Teorema) também não é gratuita, pois o filme de Ozon mostra um “intruso” a tentar desestabilizar um lar, mesmo que não conscientemente a princípio.

Um filme bem escrito e dirigido, com boas atuações, merece ser visto. 

sábado, 18 de outubro de 2014

A Pós-Modernidade cada vez mais atual e consolidada: a teoria de Lyotard, nos anos 60, era visionária, hoje é realidade (virtual).

A condição pós-moderna - Jean-François Lyotard:

(resenha por Rafael Vespasiano)


O filósofo francês  Lyotard propõe a ruptura entre a Era Moderna e a Era Pós-Moderna , pelos idos de 1968. Tal fato deve-se à deslegitimação do saber/conhecimento e sua transmissão/ensino. Esta deslegitimação é a base da "fundação" da pós--modernidade, para o estudioso.

Analisar-se-á essa questão em dois momentos, primeiro as marcas das duas Eras históricas e a transição entre elas e, em segundo lugar, as marcas exclusivas da pós-modernidade, para Lyotard.

Na Idade Moderna, o saber era constituído por dois relatos, o primeiro, o relato especulativo, filosófico; o outro, o relato emancipatório do cidadão, o qual visa sua inserção na sociedade/humanidade, sempre pautado pela justiça, ética e moral de suas ações e atitudes.

Nessa era, dava-se a legitimização do saber filosófico/científico, justamente devido ao fato do conhecimento ser feito ora pelo relato de caráter especulativo, ora pelo relato de caráter emancipatório. No primeiro, a especulação do saber era filosófico e ocorria no âmbito das academias universitárias. No segundo, o saber filosófico/científico servia como emancipação da sociedade (Humanidade), pois era utilitário ao progresso do Estado-nação, sempre observando a ética, a moralidade e sendo justo para a sociedade, a priori.

A união desses dois relatos (especulativo e emancipatório), na modernidade, legitima o saber científico/filosófico como forma de progresso social, do Estado e da nação. Constituindo, assim, uma espécie de continuum entre o saber especulativo e o saber emancipatório, esta é a condição moderna, da modernidade.

Porém, na Idade Contemporânea, fim dos anos 60, do século XX, por volta de 1968, numa sociedade pós-industrial e numa cultura pós-moderna (Pós-Modernidade, ou, segundo o sociólogo polonês Bauman, Modernidade Líquida), aqueles dois relatos mais a questão do saber encontram-se deslegitimados. Essa deslegitimação do saber é a condição pós-moderna da sociedade contemporânea, originando, assim, a Pós-Modernidade, conforme apontam os estudos do filósofo Lyotard, em seu livro A condição pós-moderna.

A Pós-Modernidade é baseada no sistema econômico do Capitalismo, num consumismo desmedido e num individualismo exacerbado e fragmentário. O saber agora não é mais especulativo e/ou de uso para o qual o Estado e a nação progridam de forma justa e emancipatória e igualitária.

A ciência e o saber amplificaram-se e dividiram-se em várias subciências e sub-saberes (informática, robótica, internet, etc.) e ainda são poucos os países que dominam essas novas ciências (tecnologias); o saber meramente especulativo (filosófico) e o saber de caráter emancipatório caíram em desuso, estão deslegitimados e dissociados, em contrapartida, valorizam-se as tecnologias da informática e da robótica.

Na Pós-Modernidade, o saber científico/tecnológico, com suas novas técnicas (informática, robótica, tecnologia da informação) servem como forma de dominação/opressão, ou seja, os países que as detêm, acabam por dominar os outros Estados.

Os países desenvolvidos, portanto, dominam a Geopolítica Pós-Moderna, justamente pelo fato de possuírem as técnicas mais modernas de informação, robótica, informática. Essa é, não por acaso, a condição pós-moderna, que leva à dominação de poucos países sobre muitos outros Estados subdesenvolvidos ou em processo de desenvolvimento, os quais não detêm as técnicas novas de informação.

Sendo assim, os paíes que possuem as tecnologias mais avançadas nas áreas da informática, da informação e, lógico, no âmbito da tecnologia bélica, por conseguinte exercem um domínio e uma influência sobre e na sociedade pós-moderna.

Portanto, a desvinculação entre o saber especulativo (filosófico/acadêmico) e o saber emancipatório (progresso ético e justo do Estado-nação); o Capitalismo consumista e individualista; a fragmentação das relações sociais, na sociedade pós-industrial; e, o avanço tecnológico (informática, robótica, tecnologia bélica, tecnologia da informação), por parte de poucas nações (não interessadas em partilhá-lo) com os outros países. Esses três fatores geraram uma condição de deslegitimação do saber científico, pois o saber especulativo e o saber emancipatório, na modernidade,  conforme foi afirmado anteriormente,  estavam legitimados; a partir da dissociação (e demais fatos já arrolados antes) entre os saberes, a deslegitimação do saber tornou-se evidente e, fez surgir uma nova condição, a condição pós-moderna do saber, segundo Lyotard, de caráter individualista, fragmentário, consumista, capitalista e no qual só o crescimento econômico interessa, mesmo que os outros países tenham que ser subjugados, dominados ou invadidos.

É esquecida, na Pós-Modernidade, a cidadania como forma de crescimento humano, educativo e social, em contrapartida valoriza-se o valor econômico das coisas (e das pessoas) e até da educação, portanto, na Era Pós-Moderna glorifica-se o “Ter” e é esquecido o “Ser”.

Por exemplo, no tocante à Educação, não importa mais o “saber”, a verdade científica/filosófica, o que vale mesmo é o desempenho/performance e o lucro que o saber pode gerar. Por isso, quem tem o saber técnico/científico, detém a autoridade e o poder decisório. “Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder.” (LYOTARD, Jean-François, A condição pós-moderna, 2006, p. 83.)

As implicações da Pós-Modernidade nas artes, como a Literatura, por exemplo, verifica-se na interdisciplinariedade, ou seja, um romance pode referir-se a outras áreas do conhecimento como a Filosofia, Sociologia, Antropologia, História, Psicologia, etc.; reflete-se também na intertextualidade, uma mesma obra pode referir-se a várias outras de vários autores diferentes, ou a outras obras do mesmo autor; além disso, as obras literárias pós-modernas são fugidias, fluidas, “vazias”, visto o esvaziamento e liquidez dos sentimentos e vínculos sociais, sentimentais, amorosos, familiares, fraternos, afetivos.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.