sábado, 29 de fevereiro de 2020

(Possuídas Pelo Pecado, Jean Garret, Brasil, 1976)


(Possuídas Pelo Pecado, Jean Garret, Brasil, 1976):

Possuidas Pelo Pecado (1976)

“Possuídas pelo Pecado é um filme de Jean Garret que além de diretor escreveu também o roteiro ao lado de Ody Fraga, assim como fizeram no thriller Excitação, também lançado em 1976. Em Possuídas pelo Pecado, tem-se uma história sobre a podridão dos capitalistas, como o Dr. Leme (Benjamin Cattan) que é um burguês alcoólatra, abusivo e dominador, que gosta de promover festas regadas a álcool e muito sexo. Inclusive a primeira cena é elucidativa para o que veremos em tela, a câmera percorre vários cômodos da sua chácara, onde está ocorrendo uma orgia, a cena é até bem filmada e divertida, ao mostrar o desbunde de várias situações engraçadas.
O Dr. Leme é casado com Raquel (Meyre Vieira), porém separados e vivendo em casas diferentes, já que ele a culpa por ela não ter dado filhos a ele para que fossem seus herdeiros, no legado de sua imensa fortuna, já ela o acusa de ser alcoólatra e só dar importância, desde o início do casamento às bebidas e de sempre a ter traído. Ela tem um caso amoroso com o fiel motorista do Dr. Leme, André (David Cardoso), sem aquele o saber. Os dois amantes têm o plano de forjar um acidente para o capitalista e assim ficarem com a herança dele destinada a Raquel.
    Na chácara o sórdido Leme humilha, usa e maltrata duas secretárias-amantes, Jussara (Zilda Sedenho) e a também alcoólatra Anita (Helena Ramos, em uma excelente atuação), que é abusada constantemente pelo Dr. Leme, inclusive em uma das cenas mais interessantes do filme é humilhada num chiqueiro, que lembrou Pocilga, de Pasolini, em retratar a sordidez e perversidade dos burgueses quanto os que estão abaixo nas hierarquias sociais. Por isso, uma reflexão importante no filme de Garret é a dança das cadeiras na sociedade, ora uns em uma posição mais privilegiada, ora outros em uma posição desfavorável.
Têm-se diálogos interessantes no roteiro de Garret e Fraga, por exemplo, quando, em outras palavras, o Dr. Leme em um diálogo é chamado de monstro por uma das suas secretárias e ele afirma sou mesmo, porém o dinheiro me dar esse direito me dar esse direito.  Em outro diálogo Jussara fala ao pintor Marcelo (Agnaldo Rayol) que pode ser uma mau-caráter, porém prefere o ser a viver em uma situação pior socialmente da que vive. Estes diálogos servem como ironia dos roteiristas às relações perversas que ocorrem na sociedade capitalista.
No filme ainda temos duas personagens importantes para a trama, Dorinha (Nicole Puzzi, em início de carreira), como a filha ambiciosa e desinibida da empregada Isaura (Ruthinea de Moraes).
Enfim, o filme retrata e ressalta realisticamente e até com boas doses de ironia a perversidade e a corruptibilidade que existem nas relações humanas em uma sociedade capitalista. ”

domingo, 23 de fevereiro de 2020

(A Mãe e a Puta, França, 1973, Jean Eustache): (A natureza humana desnuda-se)


(A Mãe e a Puta, França, 1973, Jean Eustache):
(A natureza humana desnuda-se):


“A Mãe e a Puta é um filme composto essencialmente por diálogos, mas não de maneira excessiva, é dialogado como é a vida -, ou como esta deveria ser -, Jean Eustache não apresenta estripulias em termos de efeitos especiais, por exemplo, porém presenteia os espectadores com roteiro e diálogos extremamente inteligentes, perspicazes e demasiadamente humanos.
O filme em uma de suas reflexões contempla as transições amorosas: o relacionamento de Alexandre (Jean-Pierre Léaud) e Gilberte (Isabelle Weingarten) já deteriorado; a relação de Alexandre e Marie (Bernadette Lafont), sua companheira, este casal que supostamente tem um relacionamento aberto; e, o início da relação amorosa entre Alexandre e Veronika (Françoise Lebrun). Ele é um chauvinista, ciumento, de tamanha intransigência em seus pensamentos e com falas às vezes grandiloquentes, em que demonstra cinismo, crueldade, melancolia e desesperança ante a Paris, França, do Pós-68, em um certo confronto entre o Idealismo do final da década de 1960 e a constatação do início da década seguinte de que as coisas não mudaram tanto assim para a sociedade em geral, talvez aqui valha a citação irônica que a personagem de Alexandre faz em referência ao filme de Elio Petri, A Classe Operária Vai ao Paraíso. 
Em uma cena interessantíssima, a personagem de Léaud está ouvindo um disco de Edith Piaf e folheando um volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, neste romance temos uma reflexão sobre a passagem do Tempo e questões relativas a memória. Nesta cena do filme de Eustache há um paralelo entre a obra literária e a canção cantada por Piaf no que se refere a questão da “memória involuntária” e dos amores já vividos por Alexandre, deixando Gilberte para o passado e passando a se relacionar com Veronika.
Alexandre vive de maneira ociosa pelos cafés parisienses sempre a flertar com diversas mulheres até que conhece Veronika, uma enfermeira aberta em suas relações amorosas. A partir de então o cineasta-roteirista Eustache desenvolve com ternura, lucidez e até momentos de loucura as relações de Alexandre-Marie-Veronika. Os locais em que as cenas se passam são os próprios cafés de Paris, os apartamentos e os edifícios antigos, os restaurantes e as ruas da cidade. Em uma cena em que Alexandre fala das “transições” dos filmes do cineasta Murnau, estamos em uma própria “transição, entre os trens para o campo e do outro lado a cidade de Paris, e o casal Alexandre e Veronika ao centro em um restaurante, a cena inclusive marca a transição do fim da relação entre Gilberte e Alexandre e o início da dele com Veronika. Temos, assim, uma espécie de parábase, metaficção, metafilme, em que uma personagem, no caso, indiretamente, reflete sobre a própria arte, assim Alexandre parece dar voz ao realizador Jean Eustache. 
Em outra cena memorável a personagem interpretada por Léaud se “desnuda” sem óculos escuros olhando para a personagem de Veronika, olhando diretamente para a câmera, enfim a “desnudar-se” para todos, depois coloca os óculos escuros em atitude de recolhimento.
Nas relações amorosas de Alexandre temos três personagens femininas: Gilberte, a pudica; Marie, a companheira, uma espécie de esposa, para amar o seu companheiro apesar de tudo; e, Veronika, a mulher que vive sua vida sem se preocupar com que os outros pensam quanto à sua sexualidade, a que a sociedade machista chama de “puta”.
No filme diferente do que se poderia imaginar não há improvisação nas falas por parte dos atores, mas é tão natural como elas se desenvolvem, como os diálogos se desenrolam tão críveis, quanto à própria vida. Enfim, a obra é tão humana, em sua contemplação sobre as relações amorosas, em sua reflexão sobre a condição e a natureza do ser humano, tais quais as canções de Edith Piaf que tocam no filme. ”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

(Excitação, Brasil, 1976, Jean Garret): (Thriller claustrofóbico brasileiro)


(Excitação, Brasil, 1976, Jean Garret):
(Thriller claustrofóbico brasileiro):   



“Excitação é um filme brasileiro dos anos 1970, mais precisamente de 76, dirigido por Jean Garret e com roteiro dele em parceria com Ody Fraga. Estes dois cineastas sempre abusaram de nudez, cenas de sexo e violência, contudo realizaram até que alguns bons filmes nas décadas de 70 e 80, que foram críticas para nosso cinema, excetuando o início dos anos 1990, nos quais o cinema nacional quase não existia. Outra curiosidade sobre Garret e Fraga é que eles dirigiram também fitas pornô, às vezes sob pseudônimos.
Neste Excitação temos um bom exemplar brasileiro de um filme do gênero de terror, um thriller claustrofóbico que apesar de alguns defeitos tais como a edição bastante falha e as atuações dos atores extremamente mecânicas, com exceção da personagem interpretada por Flávio Galvão. Quanto às qualidades temos uma trilha sonora marcante e apavorante que sugestiona o terror das estranhas visões de Helena (Kate Hansen), a fotografia excepcional do também cineasta, um dos maiores do país, Carlos Reichenbach que nos presenteia com cenas em que os aparelhos domésticos e as máquinas parecem tomar vida própria, nestas cenas temos também bons efeitos especiais.
Helena e Renato (Galvão) são um casal que vai morar em uma casa de praia no litoral de São Paulo que guarda mistérios em relação ao seu passado. Helena tem problemas nervosos, com estranhas visões e delírios com máquinas domésticas que se ligam sem que ninguém as estejam usando. As cenas de closes em seus olhos dilatados e excitados pelos delírios visuais são muito bem-feitas. Já Renato é um engenheiro eletrônico (prestem atenção no nome de seu computador, que ele tem em sua empresa na capital paulista!) que confia na exatidão das máquinas, na racionalidade e perfeição que elas propiciam à sociedade. Talvez os computadores sirvam como espécies de projeções, ora de Renato, no que se refere à razão, ora como projeções de Helena, no que concerne aos delírios, à imaginação e à loucura.
O roteiro de Ody Fraga e Jean Garret apresenta certa previsibilidade em algumas reviravoltas e também certas cenas risíveis, porém, mesmo assim o filme se sustenta. Excitação, enfim, é um terror, um thriller misterioso dirigido por Jean Garret com estilo e que demonstra que o Brasil é capaz sim de fazer bons filmes em qualquer gênero e em qualquer época. ”

domingo, 16 de fevereiro de 2020

(Johanna D´Arc of Mongolia, Alemanha Ocidental, França, 1989): (Diálogo entre culturas)


(Johanna D´Arc of Mongolia, Alemanha Ocidental, França, 1989):
(Diálogo entre culturas):
  

“A cineasta alemã Ulrike Ottinger realiza este interessante Johanna D´Arc of Mongolia (Alemanha Ocidental, França, 1989), nomeado ao Leão de Ouro do Festival de Berlim, de 1989, filmado também durante o ano da Queda do Muro de Berlim, sendo talvez este fato histórico um interessante paralelo para com a obra da diretora, pois seu filme entre outras coisas trata e aborda a troca de culturas, o cosmopolitismo, sem barreiras ou fronteiras marcadas por pré-conceitos culturais.
Quatro mulheres de diferentes nacionalidades estão em um trem da Transiberiana e elas começam a interagir entre si. Uma é a especialista na cultura da região Lady Windermere (Delphine Seyrig, atriz de filmes como Muriel e O Ano Passado em Marienbad, ambos dirigidos por Alain Resnais); outra é a professora secundária alemã Mueller-Vohwinkel (Irm Hermann, que foi dirigida por Rainer Werner Fassbinder em diversos filmes tais como: O Medo do Medo e As Lágrimas Amargas de Petra von Kant); outra dessas mulheres é a mochileira francesa Giovanna (Ines Sastre) e, por último, tem-se a  personagem da cantora norte-americana da Broadway Fanny Ziegfeld (Gillian Scalici). Elas também interagem com algumas outras personagens o cantor alemão Mickey Katz, dois oficiais russos e as irmãs Kalinka, que formam um trio musical bem divertido.
Porém, todas as personagens masculinas são deixadas de lado, quando apenas as mulheres tomam o trem da Transmongol, depois de quase uma hora de filme bem marcada e em uma cena de transição aparece, finalmente, a princesa guerreira mongol Ulan Iga, a qual serve de paralelo com a Joana D´Arc da História europeia, as viajantes são a partir daí mantidas apenas em parte como reféns, mas muito mais são tomadas como hóspedes pelas mongóis nômades.
 O filme, então, passa para uma segunda parte, mudando de ambiência e também passa quase que completamente a ser filmado em externas, diferente da primeira parte que foi marcada por cenas filmadas internamente nos vagões de trens. Agora a história sem pressa e sem ser narrada muito por meio de fatos encadeados, mas apenas episódicos, começa a se desenrolar nas estepes mongóis. Procurando ressaltar a troca de experiências, a amizade inusitada que surge entre culturas diferentes, mostrando que é possível o diálogo, a interação sem pré-conceitos de culturas aparentemente inconciliáveis. ” 

sábado, 15 de fevereiro de 2020

(Dias de Outono, Japão, 1960, Yasujirô Ozu): (Contemplando o cotidiano em seus encantos)


(Dias de Outono, Japão, 1960, Yasujirô Ozu):
(Contemplando o cotidiano em seus encantos):

“Ayako – “Romance e casamento são coisas diferentes...”.
É uma das frases ditas por esta personagem em um excelente diálogo em um café, entre ela e seu “tio” Mamiya, quando ele tenta convencê-la a casar. E por aquela frase e por outros diálogos o espectador será apresentado a um dos principais debates do filme: o casamento arranjado. Por sinal o roteiro de Kôgo Noda (habitual colaborador do cineasta) e do prórpio Yasujirô Ozu, baseado no romance de Ton Satomi, é excelente e propõe ótimas oportunidades para os espectadores contemplarem e refletirem sobre questões pessoais e interpessoais envolvendo: casamento, relação mãe e filha, viuvez, amizade, memórias, entre outras. Este é o filme Dias de Outono dirigido pelo mestre japonês Ozu, de 1960, o seu antepenúltimo filme de uma carreira de 56 créditos como diretor.
Ozu em boa parte de sua filmografia se propôs a discutir as questões familiares sem se preocupar em demasia com a narrativa e a trama em si, mas as reflexões levantadas em suas obras, deixando bastante tempo para quem assiste aos filmes se concentrar na ambiência, na contemplação e nos questionamentos propostos, exemplos disso são: Os Irmãos e Irmãs Todas (1941) e Era uma Vez em Tóquio (1953). Ozu também diversas vezes trabalha os mesmos temas em obras diferentes, ou melhor realiza variações sobre a mesma temática, já que é possível estabelecer relação deste Dias de Outono com um clássico dele intitulado Pai e Filha, de 1949, com roteiro também em parceria entre Noda e Ozu. Neste a questão girava entre um pai viúvo e sua filha, que não queria casar para não abandonar seu pai sozinho, já no filme de 1969, é a vez de uma filha e sua mãe viúva em similar situação. Dessa forma, se confirma o que muitos críticos de cinema dizem dos grandes cineastas e artistas em geral, que realizam sempre obras sobre os mesmos temas, somente realizando recriações, porém sempre com um novo vigor artístico e sempre com aura de genialidade.
Yasujirô Ozu explora ainda um Japão do pós-Segunda Guerra Mundial, recuperando-se após a destruição ocasionada pela Guerra, o figurino reflete o vestuário ocidental a ser usado no país, além de costumes do Ocidente geral sendo adotados no país asiático. Além disso, o filme confronta as gerações mais velhas e mais novas.
O filme é belo e contemplativo em mostrar com cuidado e apuro na fotografia colorida a relação entre mãe e filha, de extremo companheirismo e cuidados de uma para com a outra, Akiko, a mãe (Setsuko Hara) e a filha Ayako (Yôko Tsukasa), atrizes habituais dos trabalhos de Ozu dão uma aula de atuações comedidas e serenas, das quais o cineasta se vale para com toda calma do mundo e sem presa mostrar a que a rotina e o cotidiano familiar têm os seus encantos. ”

Hotel do Norte, França, 1938, Marcel Carné: (Tragicomédia da classe trabalhadora parisiense)


Hotel do Norte, França, 1938, Marcel Carné:
(Tragicomédia da classe trabalhadora parisiense):

“A Bastilha? Eu sei o que foi a Bastilha. Ela caiu e o que mudou?
Nesta frase enunciada pela personagem Raymonde (Arletty) em um diálogo com um dos seus amantes temos um exemplo de uma questão muito bem apresentada no filme Hotel do Norte (Marcel Carné, dos excelentes Os Visitantes da Noite, O Boulevard do Crime, Trágico Amanhecer, para citar alguns), de 1938, sobre a classe trabalhadora em Paris, antes da Segunda Guerra Mundial. Os trabalhadores no filme aparecem levando vidas fatalistas, meramente banais em suas desilusões diárias e sem esperanças de melhorias.
O filme começa com um casal chegando ao Hotel do Norte, em uma belíssima tomada silenciosa, eles se hospedam no hotel com o intuito do duplo suicídio. Porém, algo acontece e o roteiro a partir daí, com a condução do cineasta Carné, nos leva a conhecer os motivos que o fizeram chegar a este ponto. Somos apresentados a um outro casal, Raymonde e Edmond, ela é uma prostituta e ele é um vigarista enigmático. No Hotel do Norte, os conflitos se desenrolam entre vários trabalhadores lutando pelo pão de cada dia, entre algumas diversões, ilusões, vãs expectativas e amores frustrados, enfim a vida passa ante nossos olhos destes seres um tanto quanto marginais.
Um paralelo interessante entre este filme e outro dirigido por Marcel Carné, Trágico Amanhecer de 1939, é o uso de um quarto-apartamento específico para desenvolver seus dramas de consciências. No filme de 39, a personagem interpretada por Jean Gabin rememora fatos que o levaram a cometer um assassinato. No filme de 1938, o Hotel e arredores é o espaço para o observar dos dramas pessoais, das relações interpessoais e a tragicomédia da classe operária.  As questões trágicas, cômicas, ou seja, a própria tragicomédia acompanha quase toda a filmografia de Carné, e em Hotel do Norte é bastante evidente tal aspecto.
O último plano é também realizado com maestria pelo cineasta que o relaciona ao primeiro plano, só que agora com um diálogo e uma trilha musical. Grande filme de Carné. ”

sábado, 8 de fevereiro de 2020

(Face a Face, Ingmar Bergman, 1976): (Um tour de force pela alma humana)


(Face a Face, Ingmar Bergman, 1976):
(Um tour de force pela alma humana):

“Como em quase toda sua filmografia, o cineasta Ingmar Bergman analisa e disseca psicologicamente suas personagens, estas servem como simulacros da vida humana e das relações interpessoais. A direção de Bergman quase sempre impecável aliada aos seus roteiros coesos, universais e atemporais promovem um verdadeiro tour de force pelas profundezas da psique humana.
Face a Face, de 1976, é mais um exemplo magistral do exposto até aqui. Jenny (Liv Ullmann, estupenda em mais uma obra dirigida pelo realizador sueco) é uma pessoa que como qualquer outra vive suas contradições, a eterna dualidade dinâmica dos seres humanos: ora com traços de sensatez, ora não; em alguns momentos lúcida, em outros tantos momentos, desvairada; algumas vezes cordial, outras nem tanto; ora sã, outras tantas ensandecida. Tudo isso está cada vez mais à prova quando ela acaba por iniciar sua busca de autoconhecimento. Jenny forçosamente a inicia para tentar se encontrar consigo mesma e, posteriormente, com os outros, pois é imperioso esse re-conhecer-se, já que algumas questões em sua vida pessoal, profissional e familiar foram questionadas e colocadas à prova por outros e em especial por si mesma. Reforçando que a jornada da protagonista quase nunca a confronta com outras personagens e-ou situações, são poucas as vezes que isso acontece.
Jenny é uma psiquiatra, casada e que vai passar uns tempos na casa dos avós, quando o esposo viaja para um congresso e a filha vai para um acampamento de férias. A partir daí inicia-se sua ressignificação como pessoa, não antes de ir à beira da loucura, mas que se faz tão necessária para entender-se. Jenny sente-se solitária e abandonada por todos, devastada psicologicamente, em depressão, ela passa também a questionar a importância da família e a presença e a iminência da morte.
Todos esses questionamentos humanos e reflexões existenciais, a busca da personagem Jenny em reencontrar-se, ou seja, a sondagem psicológica será realizada através de um roteiro estupendo de Bergman e por sua direção magistral no uso das cores e da montagem. O filme tem duas partes bem distintas ou bem destacadas de 1h cada, a primeira os fatos do enredo em si e a segunda a viagem onírica em busca de si mesma. Essa questão da divisão fílmica não é marcada por capítulos ou marcas do gênero, porém pelo uso das cores, na primeira são usadas cores sóbrias (bege e marrom), na segunda cores vivas (vermelho, predominantemente); quanto à montagem, fotografia em planos mais abertos com poucos closes na primeira parte, já na segunda tem-se o  uso do close preferencialmente nas cenas, nas quais Jenny é filmada em zoom in, com a câmera bem próxima de sua face, ressaltando as expressões do rosto da personagem e todos sentimentos e sensações que está vivendo e pelas quais está passando, em seu tour de force.
O fotógrafo é mais uma vez Sven Nykvist, colaborador habitual de Bergman, ele preenche a tela com sombras, isso se reflete no cenário e na captação da face de Jenny, especialmente nos momentos de maior angústia e dor, os olhos de Ullmann estão totalmente cobertos pela escuridão. Bergman, alternando sonho e lucidez, sanidade e loucura, realidade e delírio, conduz o espectador nesta sondagem da alma humana sempre em vertigem. De tudo isso, percebe-se a universalidade, a atemporalidade dos filmes de Bergman.
Face a Face, o filme, em sua última cena, acaba mais uma vez ressaltando as nossas incertezas; nós, espectadores somos deixados à deriva em nossa maior angústia, qual seja, o nosso eterno e amargurado confrontar-se. Enfim, a “face a face” começa. ”

Adoniran: Meu Nome é João Rubinato: (Um documentário sobre o boêmio vespertino)


Adoniran: Meu Nome é João Rubinato
(Um documentário sobre o boêmio vespertino):

“O documentário é antes de tudo um veículo para enaltecer, rememorar e até certo ponto venerar miticamente o malandro Adoniran Barbosa, o “boêmio vespertino” da megalópole paulistana. O filme, desde o início, propõe uma viagem sobre os meandros de sua vida pessoal. Porém, com excessivo didatismo e sem preocupações em analisar a obra do sambista no cenário da música nacional.
O interesse é, justamente, nos seus causos de malandro e apreciador de boas doses de álcool, nas suas personas de cantor-compositor, radialista, humorista e ator, com profundo didatismo e linearidade e com excessivo uso do “mostro e conto” do diretor Pedro Serrano e dos entrevistados.
Um ponto forte do documentário é a questão da figura mítica por trás da pessoa de João Rubinato, a sua própria persona Adoniran Barbosa, que se sobrepõe sobre aquela. Não se sabe nunca se Adoniran está contando a “verdade” sobre as origens de suas canções ou não, ficção e realidade se misturam em suas entrevistas e depoimentos. E até os entrevistados que conviveram com ele têm suas próprias versões.
Mais uma vez, ressalte-se que nenhuma reflexão o espectador terá sobre o seu fim decadente, sobre os contrates e oposições entre o samba de Rio de Janeiro e São Paulo, nem sobre as questões da música popular e erudita. Apesar de ao fim do filme ser apresentada uma narração mal desenvolvida de um depoimento do intelectual Antonio Candido.
Outra questão solta no documentário pelo diretor Pedro Serrano e mal elaborada e discutida é a questão da figura poética do “palhaço triste”, do “clown, que já vimos na história do cinema em filmes como “Ironia da Sorte”, dirigido por Victor Sjöström e estrelado por Lon Chaney, de 1924, ainda temos as figuras lendárias do Carlitos de Chaplin e do “palhaço que não ri” de Buster Keaton. Já na Literatura Brasileira temos um poema simbolista de Cruz e Sousa que ilustra metaforicamente muito bem esta questão:
ACROBATA DA DOR
“Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! reteza os músculos, reteza
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço. ”                  (Publicado no livro Broquéis (1893).)                                                
Enfim, o filme em que pese suas boas intenções e alguns pontos positivos apresenta falhas gritantes, mas serve como introdução para a obra deste magistral poeta-musical do Brás e do Bexiga, da São Paulo em transformação pelo progresso em des-progresso da década de 1930, do século passado, um artista feliz-triste em seu Samba poético-trágico. ”