terça-feira, 21 de abril de 2020

(O Lobo do Mar, Jack London, 1904):


(O Lobo do Mar, Jack London, 1904):
“É melhor reinar no inferno do que servir no céu. ”
(Paraíso Perdido, Milton).


“O Lobo do Mar, publicado originalmente no ano de 1904, é mais do que um romance de aventura, em alguns momentos de extrema habilidade do romancista Jack London, desfilam na obra páginas de aguçada análise psicológica, em que são estudadas as condições humanas num microcosmos de embrutecimento das relações humanas.
Ghost é uma embarcação náutica de caça às focas, que desperta receio e medo àqueles que ouvem falar nela e em seu tirânico capitão Wolf Larsen; os que já fazem parte da tripulação vivem em uma ambiência de pavor e constante atrito nas relações com os companheiros de escuma, porém nunca levantam a voz para as atrocidades cometidas por Larsen. Até o momento do resgate de um náufrago, Humphrey van Weyden, um jovem intelectual, com pretensões a escritor. A partir deste momento, aos poucos, em momentos de crescente tensão psicológica, as coisas começam a tomar outros rumos.
O confronto entre as duas personagens principais é o melhor do livro. Os antagonistas Wolf Larsen e van Weyden iniciam um verdadeiro duelo em tentar convencer o outro do que falta ao outro, ou do que está escondido no outro, buscando que o outro revele a outra face de sua personalidade, até então adormecida.
Logo no primeiro momento em que um marinheiro está sendo maltratado e este estando à beira da morte, Humphrey percebe que o capitão da escuna se vale dos abusos físicos contra os seus comandados como forma de manter o controle de todos e de todas as situações em sua escuna. Larsen em nenhum momento perde o controle da situação, sua força física é enorme e entre outros atributos de caráter, seu poder de persuasão sobre os outros é gigantesco, evitando tentativas de confrontação a seu poder e nem um motim, por ora é vislumbrado.
Larsen apesar de tudo isso é uma autodidata formando intelectualmente na solidão de suas leituras de Darwin, Nietzsche, Spencer, Johnson, Poe, Shakespeare, Milton, entre outros clássicos científicos, filosóficos e literários ingleses e estadunidenses, leituras, contudo deformadas no embrutecimento e na violência cotidiana que vivenciou e vive no seu microcosmos, a escuna de caça à focas, Ghost.
Um verdadeiro lobo de seus homens, física e psicologicamente os maltrata e os domina, quer ser um demiurgo de seu microuniverso, o Diabo mandando em seu reino, daí a leitura de Milton ser tão cara para Larsen, para ele a lei do mais forte é o que vale. Até que a partir do resgate de Humphrey, a tomada de consciência de Wolf, aos poucos e de maneira trágica que seja, vai acontecendo, pois ele confrontado com os ideais humanitários e intelectuais do jovem burguês van Weyden, percebe outro lado de sua personalidade até então não manifestada.
Humphrey contudo aos poucos transforma-se em outro, o Hump da escuna Ghost, que aos poucos percebe que nem só de leituras, de estudos e da tentativa em redigir seu almejado livro, se resume a vida. Hump torna-se também forte fisicamente e capaz de proezas de coragem e ousadia, transforma-se também em um ser pragmático, cético, violento, às vezes até com rompantes para cometer o assassínio. Surge, ainda uma outra personagem, Maud Brewster, uma jovem náufraga, resgatada também pela escuna Ghost e que confere novas motivações e perspectivas à obra, torna-se interesse amoroso de Hump, e interesse intelectual deste e também de Wolf Larsen. A tensão é aumentada cada vez mais e irrompe em fatos que ninguém pode controlar humanamente, e nem deliberadamente contornar no primeiro momento em que surgiram.  
O romance é filosófico no aspecto do embate entre dois homens tão diferentes e tão semelhantes em suas idiossincrasias, os dois antagonistas aos poucos tornam-se complementares um ao outro, os dois têm bondade e maldade, ódio e simpatia, e todos os outros opostos da natureza humana, que se complementam dinamicamente. Dessa forma ao fim e ao cabo do romance tem-se a ideia do sentimento de compaixão, mesmo em meio à tragédia final. Contudo o trágico é simultaneamente o início esperançoso de duas vidas unidas pelo amor, na tessitura do próprio romance, O Lobo do Mar.

(Jack London). 

Trechos do romance na tradução de Daniel Galera:

"Acredito que a vida é uma confusão - ele respondeu de imediato. - É como um levedo, um fermento, uma coisa que se move e pode continuar se movendo por um minuto, uma hora, um ano ou cem anos, mas que no fim vai parar de se mover. Os grandes devoram os pequenos para que possam seguir se movendo, os fortes devoram os fracos para manter sua força. E quem tem sorte devora mais e se move por mais tempo. Isso é tudo. (...)"

"- O homem é inconstante como os ventos e as correntes marítimas. Impossível adivinhar o que ele vai fazer em seguida. Quando você começa a achar que o conhece, quando começa a vê-lo com bons olhos e põe as velas pra vento a favor, ele dá uma volta na sua frente, entra rasgando e arrebenta tudo."

"- Ele nunca filosofou sobre a vida - acrescentei.
- Não - respondeu Wolf Larsen, com um indescritível ar de tristeza. - E ele é mais feliz assim, deixando a vida em paz. Está ocupado demais vivendo a vida para pensar nela. O meu erro foi ter um dia aberto um livro."

"(...) Apesar de minha esperança e fé na humanidade terem conseguido sobreviver às críticas demolidoras de Wolf Larsen, ele tinha operado algumas transformações menores em minha pessoa. Tinha aberto para mim o mundo real, que sempre me causara receio e sobre o qual eu pouco sabia. Eu estava aprendendo a observar mais de perto a maneira como a vida era vivida, a reconhecer que existia o que se pode chamar de fatos do mundo, a emergir do reino da mente e das ideias e a atribuir certos valores às fases concretas e objetivas da existência."

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
LONDON, Jack. O lobo do mar. Tradução: Daniel Galera. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

(Pânico no Ano Zero, Ray Milland, EUA, 1962): (“Não deve haver um fim, mas um (novo) começo”):


(Pânico no Ano Zero, Ray Milland, EUA, 1962):
(“Não deve haver um fim, mas um (novo) começo”):

Frankie Avalon, Ray Milland, Richard Bakalyan, Neil Burstyn, Joan Freeman, Jean Hagen, Rex Holman, and Mary Mitchel in Panic in Year Zero (1962)

“Pânico no Ano Zero é dirigido e estrelado pelo astro Ray Milland, lançado em 1962, no auge da Guerra Fria entre EUA e URSS, trata-se de um dos primeiros filmes pós-apocalípticos a questionar como seria a Humanidade nos primeiros dias, após a queda da primeira bomba atômica.
Sem se preocupar com mirabolantes efeitos especiais, até por se tratar de um filme-B produzido pela companhia cinematográfica comandada por Roger Corman, e sem abordar o roteiro pela perspectiva governamental ou dos exércitos das grandes potências, a história tem como ponto de vista uma pequena e tradicional família de Los Angeles, que tinha ao início do filme um simples propósito de acampar.
Ao sair de LA, a família chefiada por Harry (Milland) se depara no retrovisor do carro com que parece ser um raio, a pergunta que vem é simples: será que vai chover? Até o momento posterior em que surge o tão temido cogumelo nuclear, agora resta lutar pela sobrevivência no caos que irrompe. Nos primeiros momentos, após o apocalipse atômico, a Humanidade se desespera, buscando soluções imediatistas, instintivas de sobrevivência, tais como estocar mantimentos, saquear os outros, entre outras atitudes não-civilizadas.
Outro questionamento que surge é o do isolamento social total, Harry busca se isolar com sua esposa e seus dois jovens filhos, para assim proteger sua família, dos saques que surgem, dos assassinatos e da desordem que imperam a partir de então, em uma área de camping distante e pouco movimentada. Em uma metáfora interessante se deparam com pinturas rupestres que remontam à Idade Antiga da civilização. Pois não seriam os momentos que a Humanidade está vivenciando nesta altura do filme, senão os (novos) primórdios da (nova) civilização, após a hecatombe atômica? Ou seja, a ideia não de um fim, mas de um (novo) começo? 
Destaque para mais uma atuação segura de Milland, premiado como melhor ator por Farrapo Humano, de 1945, de Billy Wilder, e destaque no hitchcockiano Disque M para Matar, 1954. O astro hollywoodiano sempre interpretou personagens decadentes e amorais, mas a partir dos anos 1960 começou a interpretar pais de família dedicados em proteger a moral e a segurança de seus familiares, é o caso deste filme em análise, em que Ray Milland vive Harry um pai obcecado em proteger os seus parentes próximos, mesmo que para isso tome atitudes que condena e odeia, que causa nele um drama de consciência.
Este drama de consciência é ampliado por sua esposa Ann, que é uma personagem que faz um contraponto às atitudes de Harry, é uma espécie de voz que tenta conscientizar o esposo para ter mais altruísmo para com o restante da sociedade e não apenas para com seus familiares mais próximos.
Pânico no Ano Zero conta ainda com uma boa trilha sonora jazzística assinada por Les Baxter, que confere dinamismo ao filme em alguns momentos de tensão do roteiro escrito por Jay Simms e John Morton, baseado em dois contos de Ward Moore. 
As reflexões se somam em um filme-B que nos surpreende positivamente. Um thriller e clássico filme de ficção-científica, que fez muito sentido para seus espectadores nos anos 1960 e ainda nos faz hoje, nesta releitura em tempos difíceis da Pandemia da Covid-19, em 2020, pois o que questionamos atualmente senão: como retornar e retomar à normalidade, após debelada a Pandemia?”

sábado, 4 de abril de 2020

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

Le lit de la vierge (1970)

O Leito da Virgem não é uma história bíblica do Novo Testamento, nem uma obra sobre Maria, Jesus ou Deus, mas um filme de Philippe Garrel sobre as origens, o tudo e o nada do ser humano, o começo e o fim da Humanidade, ou seja, o meio que é vida antes da morte que é passagem para o Nada onde Tudo se inicia...
Esta circularidade é perceptível quando o filme de Garrel começa com a cena em que Jesus nasce no leito de Maria numa ponte sobre o mar, ele já nasce assustado e horrorizado perante o caos da Humanidade envolta em guerras, destruição, ruínas e crimes, buscando ouvir a voz de seu pai, Deus, a qual ele não consegue ouvir. Maria tenta acalmá-lo e o manda em sua missão: redimir a humanidade. Porém, será que ela o ouvirá? Ou ele não está pronto para ser ouvido? Pois, o que se percebe é um movimento duplo: a Humanidade está perdida e Jesus o está tão perdido quanto, em sua insegurança, imaturidade, em seu abandono, em sua solidão, em sua depressão.
Maria (Zouzou) e Maria Madalena (também interpretada por Zouzou) são faces da mesma mulher, a mãe-virgem e a amante-prostituta -, (talvez uma proximidade com o cineasta Jean Eustache, amigo de Garrel e uma das influências para seus filmes, guardando as devidas peculiaridades de cada diretor e de cada obra, cita-se A Mãe e A Puta, dirigida por Eustache, em 1973, que tanto em aspectos temáticos quanto em aspectos técnicos, tem similaridades e particularidades com este filme garreliano e outros de sua lavra) -, faces da mesma moeda, portanto duplos do “Bem-e-do-Mal” e do Divino-e-do-Profano”.
Filmado em um preto-e-branco-scope terrivelmente e assombrosamente solitário e angustiante O Leito da Virgem sugere o caos humano, as ruínas das relações interpessoais, a alteridade em frangalhos diante e meio a crimes e guerras de todos os tipos, espalhadas junto a todos os tipos de males, quando da cena em que a Caixa de Pandora é aberta por Maria Madalena, ou será que foi aberta por Maria?
Outra cena emblemática dá-se quando Maria Madelena, ou talvez Maria, está grávida e Jesus se abandona nas profundezas do mar revolto, abandonado desta forma, sua amante ou mãe, ou as duas, e seu filho, da mesma forma que fora abandonado por seu pai, Deus. Dessa maneira o filme é circular pois começa e termia, para iniciar de novo com: nascimento, morte, abandono...
Mítico também é o espaço e o tempo em que ocorrem as ações um tanto quanto episódicas da obra garrelina, espaço e tempo indeterminados, dando um caráter parabólico, porém pessimista e solitário da Humanidade, um teor atemporal, universal destes seres humanos tão horríveis em sua beleza criadora e destrutiva ao mesmo tempo. O leito do nascimento é também o leito da morte...
A cruz de Jesus e também dos cineastas, dos artistas em geral, é saber da incompreensão de seus atos e das suas obras, o abandono e a solidão, não são somente de Jesus, porém de Garrel e de todos os artistas por consequência, e, enfim, de todos nós-humanos. ”