sábado, 4 de abril de 2020

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

Le lit de la vierge (1970)

O Leito da Virgem não é uma história bíblica do Novo Testamento, nem uma obra sobre Maria, Jesus ou Deus, mas um filme de Philippe Garrel sobre as origens, o tudo e o nada do ser humano, o começo e o fim da Humanidade, ou seja, o meio que é vida antes da morte que é passagem para o Nada onde Tudo se inicia...
Esta circularidade é perceptível quando o filme de Garrel começa com a cena em que Jesus nasce no leito de Maria numa ponte sobre o mar, ele já nasce assustado e horrorizado perante o caos da Humanidade envolta em guerras, destruição, ruínas e crimes, buscando ouvir a voz de seu pai, Deus, a qual ele não consegue ouvir. Maria tenta acalmá-lo e o manda em sua missão: redimir a humanidade. Porém, será que ela o ouvirá? Ou ele não está pronto para ser ouvido? Pois, o que se percebe é um movimento duplo: a Humanidade está perdida e Jesus o está tão perdido quanto, em sua insegurança, imaturidade, em seu abandono, em sua solidão, em sua depressão.
Maria (Zouzou) e Maria Madalena (também interpretada por Zouzou) são faces da mesma mulher, a mãe-virgem e a amante-prostituta -, (talvez uma proximidade com o cineasta Jean Eustache, amigo de Garrel e uma das influências para seus filmes, guardando as devidas peculiaridades de cada diretor e de cada obra, cita-se A Mãe e A Puta, dirigida por Eustache, em 1973, que tanto em aspectos temáticos quanto em aspectos técnicos, tem similaridades e particularidades com este filme garreliano e outros de sua lavra) -, faces da mesma moeda, portanto duplos do “Bem-e-do-Mal” e do Divino-e-do-Profano”.
Filmado em um preto-e-branco-scope terrivelmente e assombrosamente solitário e angustiante O Leito da Virgem sugere o caos humano, as ruínas das relações interpessoais, a alteridade em frangalhos diante e meio a crimes e guerras de todos os tipos, espalhadas junto a todos os tipos de males, quando da cena em que a Caixa de Pandora é aberta por Maria Madalena, ou será que foi aberta por Maria?
Outra cena emblemática dá-se quando Maria Madelena, ou talvez Maria, está grávida e Jesus se abandona nas profundezas do mar revolto, abandonado desta forma, sua amante ou mãe, ou as duas, e seu filho, da mesma forma que fora abandonado por seu pai, Deus. Dessa maneira o filme é circular pois começa e termia, para iniciar de novo com: nascimento, morte, abandono...
Mítico também é o espaço e o tempo em que ocorrem as ações um tanto quanto episódicas da obra garrelina, espaço e tempo indeterminados, dando um caráter parabólico, porém pessimista e solitário da Humanidade, um teor atemporal, universal destes seres humanos tão horríveis em sua beleza criadora e destrutiva ao mesmo tempo. O leito do nascimento é também o leito da morte...
A cruz de Jesus e também dos cineastas, dos artistas em geral, é saber da incompreensão de seus atos e das suas obras, o abandono e a solidão, não são somente de Jesus, porém de Garrel e de todos os artistas por consequência, e, enfim, de todos nós-humanos. ”

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