sábado, 21 de setembro de 2019

BACURAU (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Brasil-França, 2019):


BACURAU (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Brasil-França, 2019):

Bacurau é um filme excelente, porém não perfeito, mas apesar de alguns defeitos, é uma obra muito boa e necessária para ser vista e revista. Não diria que é o melhor trabalho de um dos diretores, Kleber Mendonça Filho, pois Bacurau é dirigido também por Juliano Dornelles. Quanto aos trabalhos anteriores de Kleber Mendonça Filho destaco lógico os longas O Som ao Redor (2012), seu primeiro longa-metragem, cuja sinopse é: “A vida numa rua de classe-média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença desses homens traz tranquilidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira, uma reflexão sobre história, violência e barulho” (retirada do site Filmow). Aquarius (2016), seu segundo longa (e para mim seu melhor trabalho até o presente momento de sua carreira), cuja sinopse é: “Clara, 65 anos de idade, é uma escritora e crítica de música aposentada. Ela é viúva, mãe de três filhos adultos, e moradora de um apartamento repleto de livros e discos no Bairro de Boa Viagem, num edifício chamado Aquarius. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia” (sinopse do site Filmow). E também entre seus curtas-metragens destaco uma pequena obra-prima, Recife Frio (2009), sinopse “a cidade brasileira de Recife, que já foi tropical, agora é fria, chuvosa e triste, depois de passar por uma desconhecida mudança climática” (retirada a sinopse do site já citado).
Mas voltemos a Bacurau: trata-se de um filme marcado pelo realismo mágico, além de ser uma alegoria distópica de uma cidade, Bacurau, lutando contra o capitalismo nocivo e predatório, lutando contra o desenvolvimento tecnológico e capitalista, porém usando as tecnologias a sua maneira, bem própria e particular. Bacurau tenta resistir a invasão estrangeira, ao poder político local, todos dizimadores do bem-estar coletivo e comunitário da cidade de Bacurau.
Além disso temos várias metáforas, reflexões implícitas ou explícitas no roteiro: ora o confronto nordeste X sudeste-sul, interior X capital, opressores X oprimidos, maioria X minoria. O filme aborda também temáticas de preconceito e opressão contra os mais desvalidos, as minorias, enfim é uma obra que trata de vários temas que são variações de um mesmo tema geral, qual seja: a política de opressão aos já tão oprimidos e desvalidos dos meios tecnológicos capitalistas. Bacurau torna-se uma ode à luta contra qualquer forma de opressão e dominação, seja que de qual matriz opressiva seja, que visa dominar uma população, comunidade, de qualquer maneira, mesmo que isso seja feito pela própria aniquilação da comunidade ali instalada, incrustada na memória há tempos até mesmo imemoriais.
Uma das leituras para esta problemática é o “entre-lugar”, que é a cidade de Bacurau, sitiada, isolada, por forças mais “desenvolvidas” tecnologicamente falando, assim estas forças seriam o “lugar”, de qual fala o teórico Homi K. Bhabha, em seu livro O Local da Cultura, em o escritor contrapõe as forças de dominação dos colonizadores (o “lugar”) e o local dos dominados, colonizados, o “não-lugar”. Bacurau, portanto, nessa distopia que é a obra fílmica de que se trata estaria na posição de “entre-lugar”, lutando contra a dominação dos mais fortes tecnologicamente e também se contrapondo contra a barbárie.    
Um dos diálogos mais sintomáticos do filme é quando dois forasteiros chegam à cidade de Bacurau e a forasteira pergunta na vendinha local: “- quem nasce em Bacurau é o quê? ” A qual é respondida de pronto por uma criança: “ – É gente! ”. Sempre, portanto, a questão identitária é abordada, levantada pela obra, visto que esta é uma das emergências do século XXI em termos de pauta ideológica e, portanto, política, ainda mais em um país, Brasil, que está dividido política e ideologicamente.
Talvez aqui temos o maior problema de Bacurau: ou o filme é uma mera obra de faroeste violenta, visto que em algumas cenas temos violência em demasia, até mesmo desnecessariamente filmadas e colocadas na edição final? Ou o filme estaria mais para uma obra política que reflete as questões atuais de um Brasil fragmentado ideológica e politicamente? Ou as duas coisas.
Estas ambiguidades talvez só sejam resolvidas num futuro um pouco mais distante quando possamos rever este filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com mais isenção do momento atual em que vivemos, tão caloroso nos debates, ou seja, com mais distanciamento crítico, com a passagem do tempo, que talvez nos faça refletir melhor na recepção de tal obra que se faz tão urgente e necessária, como é Bacurau, para os rumos do nosso cinema e também para nossa política, por que não?
Já que a vida imita a arte. E o cinema sempre é uma manifestação de cidadania, portanto o cinema de qualidade é sempre uma manifestação política.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A Importância da Memória e da Preservação do Cinema Brasileiro


A Importância da Memória e da Preservação do Cinema Brasileiro

(Por Rafael Vespasiano)

O tema de hoje é de suma importância que seja a preservação do Cinema, em especial dos originais dos filmes antigos, matrizes diversas ou cópias que o tempo nos legou, clássicos ou de importância como marcos históricos e cronológicos. Aqui neste espaço, por enquanto, nos deteremos no âmbito do Cinema Brasileiro.
A tarefa é gigantesca ainda mais quando os problemas do Brasil, além de todos que perpassam os tempos no país, Saúde, Educação, Segurança Pública, etc., são mais gritantes ainda na Cultura e nas Artes em geral, Literatura, Teatro, Música, e lógico no Cinema. Ainda mais que desde sempre as Artes nacionais sofreram com o descaso das instituições públicas e políticas, sejam de quais orientações ideológicas sejam, em alguns momentos mais ou menos, com maiores ou menos incentivos ao cultural.
Imaginem então nos primórdios do Cinema nacional! Quando existia um preconceito ainda maior, incentivos menores e pior foi a preservação dos originais dos filmes brasileiros durante a passagem do tempo. Mais surreal fica a situação ao pensarmos que no período moderno não ocorreram guerras no Brasil, no que se refere às Primeira e Segunda Grandes Guerras, ou seja, não formos bombardeados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como países tais quais Japão, Alemanha, Itália, França, etc.
Não estamos nem abordado temas como censura, problemas nas filmagens ou produção (em geral com as distribuidoras e os produtores) nem citando insatisfações dos cineastas, nem ao menos detalhando casos de cinematografias emergentes de países da África, da Ásia, do Oriente Médio, da Oceania. Pois aí a questão se assemelha inclusive a do Brasil, já que se trata realmente da preservação e cuidados para com a manutenção do já escasso e precioso material cinematográfico.
Passemos a discorrer mais a miúde sobre a filmografia considerada perdida ou em vias de sê-lo no Brasil. A lista brasileira é, infelizmente, extensa e tem milhares de títulos considerados desaparecidos desde 1898, ano zero da produção cinematográfica no país.  Assim, é importante frisar que qualquer fotograma relativo ao período 1898-1909 não sobreviveu ao tempo e a má preservação dos originais. Não se tem esperança de encontrar qualquer material para a maior parte deles. Porém, às vezes acontecem agradáveis surpresas do aparecimento de fragmentos ou até o conjunto completo de obras há muito tidas como definitivamente perdidas. As mais lamentadas ausências giram quase sempre em torno de obras ficcionais tidas como importantes histórica ou esteticamente. Dessa forma integram tais listas títulos como Paz e Amor (1910), de José do Patrocínio Filho, Barro Humano (1929), de Adhemar Gonzaga, Favela do Meus Amores (1936), de Humberto Mauro, Moleque Tião (1943), de José Carlos Burle, Destino em Apuros (1953), de Ernesto Remani, Cruz na Praça (1959), de Glauber Rocha, e Surucucu Catiripapo (1973), de Neville D’Almeida.
O jornalista e pesquisador Carlos Augusto Brandão, do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (RJ), leva a questão da preservação para a questão da identidade cultural. Seria com ela que lutaríamos e resistiríamos à colonização cultural, por isso para Brandão, ser função do Estado preservar essa identidade cultural. Ele afirma que 70% dos filmes nacionais perdidos foram feitos antes de 1960. Brandão alerta ainda que, se um país não preserva sua memória, outra memória ocupa o espaço, porque não existe lugar vazio na cultura.
Citamos mais acima o cineasta pernambucano José Carlos Burle (1910-1983) com o perdido Moleque Tião, estrelado por Grande Otelo, daquele filme já ouvirmos relatos maravilhosos de que assistiu ao filme à época. Burle, cineasta hábil colocou nos cinemas um tema polêmico, no ano de 1949, o filme Também Somos Irmãos, também protagonizado por Otelo. Aquele filme, inclusive, está em vias desaparecer. A única cópia tem rugas visíveis da passagem do tempo.
É de se admirar o quanto o cinema é audacioso e vanguardista na abordagem de questões que são polêmicas. O cinema é um espaço privilegiado de liberdade e transgressão. O diretor Luiz Carlos Burle e o roteirista Alinor Azevedo (1914-1974) usaram maravilhosamente no filme em questão, produzido pela Atlântida, que foi um estúdio que ficou mais conhecida pelas Chanchadas, comédias-musicais populares recordes de público a cada lançamento em nossos cinemas à época.
O longa dramático Também Somos Irmãos foi o 27º filme na carreira de Grande Otelo (1915-1993) e, justamente, o que o içou à fama. O filme aborda o tema espinhoso, necessário e, infelizmente, ainda urgente: o preconceito racial, além de outros temas como a ascensão social, o amor que não respeita fronteiras, o interesse espúrio – seja o econômico, o social ou de qualquer favorecimento – em detrimento do bom caráter, isso tudo nos provoca questionamentos e reflexões respeitáveis e muito atuais.
Para entendermos o impacto de um filme, sua importância e o quanto ele é indício da mentalidade de sua época, temos que tentar vê-lo com o olhar daquela época, ainda mais no caso do filme em questão, já que é verdade que a trama talvez seja rocambolesca demais, apesar de não exibir um final tão feliz assim. Não é fácil ao cinema afastar-se das convenções de época, mesmo para o inteligente Burle. Aliás, no Brasil daquele momento, reproduzi-las já era proeza e coragem. O filme ainda mostra uma cultura que, como sabemos, sempre apregoou de modo quase patológico a inexistência de racismo no país.  
Por isso, temos que tentar voltar no tempo, verificar seus costumes, suas normas sociais e prestar atenção nos rastros que constam na película daquela época. Mais do que os aspectos técnicos, recursos tecnológicos e a forma de condução do produto/filme no âmbito mercadológico, os valores e os questionamentos que ali são abordados são indícios. E nisso a película dá um show de nuances a serem analisadas.
A história é sobre dois irmãos negros, Renato (Aguinaldo Camargo) e Miro (Grande Otelo) que são criados numa mansão na Tijuca por um casal abastado, juntamente com sua filha biológica Marta (Vera Mendes). Ao crescerem são rejeitados e vão morar numa favela. Renato estuda direito e se torna um advogado, Miro vira vagabundo, orgulhosamente, com um nível de crítica social avassaladores que não economiza nas suas considerações, e é dado a pequenos ganhos e traquinagens. Renato continua a ter contato com Marta, que se tornou uma mulher culta e pela qual é apaixonado secretamente. Porém Marta se apaixona pelo galã cafajeste Walter (Jorge Dória). Nesse contexto Renato e Walter se desentendem e o pior acontece. O mote do filme é como as questões se desenrolam, a abordagem da nobreza de caráter, o que é amor, de fato, e o que se espera, naturalmente, das pessoas – as surpresas e as decepções.
Tudo isso sendo abordado num período pós-guerra e entre governos de Getúlio (Dutra era o Presidente na época). Numa época em que fazer cinema era difícil e caro, ainda mais que nos dias atuais! Falar desses temas numa época em que a sala de cinema era 100% de todo o público que consumia filmes, e não era tão popular. Outros presentes espetaculares que a película nos lega é ver Agnaldo Rayol (Hélio) em sua primeira aparição no cinema, com apenas 11 anos, cantando divinamente, e Jece Valadão em início de carreira, além de Ruth de Souza, recentemente falecida.
Também Somos Irmãos está disponível em plataformas online para assistir e baixar legalmente, e multimídias outras. “É um telecinado, fiel ao estado da cópia, o trecho carrega suas rugas históricas: riscos, manchas, instabilidades, alguns saltos causados pelos fotogramas perdidos, pulsação. O som, trôpego, parece sussurrar e lutar para se ouvir. Mas há beleza nesta triste situação do filme: na sua luta para sobreviver, já no aniquilamento do tempo, ele ainda luta em mostrar, em ser visto, em se notar, enfim, em ser cinema. ” (Paulo Santos Lima, com alterações minhas).
E concluo: Viva o Cinema Brasileiro!

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Mormaço (Marina Meliande, Brasil, 2018): Caos, O Rio é um Caos, Caos!


“Mormaço” é um filme que gera desconforto e estranhamento ao espectador. “Mor-ma-ço” é uma sensação, ou seja, não conseguimos tocar, é meio difícil de definir em palavras, mas, sentindo-o, não temos dúvidas, de dizer “estamos com muito mormaço”. Título bem escolhido pela diretora Marina Meliande, para dar ao seu longa-metragem de estreia solo, pois dirigiu em duo com Felipe Bragança a Trilogia “Coração de Fogo”, que reúne filmes sobre juventude, alegria, raiva e utopia no início do século XXI.  “A Fuga, a Raiva, a Dança, a Bunda, a Boca, a Calma, a Vida da Mulher-Gorila” (2009), “A Alegria” (2010) e “Desassossego (Filme das Maravilhas) ” (2010).



O filme “Mormaço” (2018) possui elementos de ficção e de documentário, com toques “fantásticos”, para representar o desconforto nascido de um inabitável Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016. A cineasta apresenta uma tessitura fílmica -, (por meio de uma fotografia, direção de arte, e em especial, por uma incrível trilha sonora, que sugerem o desconforto, o incômodo) -, que é uma verdadeira sinestesia que há anos acompanha os habitantes do caos conhecido como Rio de Janeiro.
A protagonista é Ana (Marina Provenzzano), defensora pública que batalha para impedir a remoção dos últimos moradores da Vila Autódromo, comunidade da zona oeste transformada em inimiga da Prefeitura pela recusa do grupo em deixar suas casas por conta das obras para o evento esportivo. Mas ao mesmo tempo, Ana está sendo ‘removida’ do apartamento em que vive, junto com outros moradores de outros apartamentos do mesmo edifício, por uma imobiliária para que esta construa um hotel em seu lugar.
A personagem principal descobre uma marca na pele e a partir de então passa a agir de forma cada vez mais estranha e animalesca, a Vila Autódromo vai perdendo cada vez mais casas, e a atmosfera construída é de incômodo, de desconforto, sem soluções fáceis, sem apresentar soluções não-traumáticas para resolver o caos pessoal e o caos citadino.
 Há um engajamento político que dialoga com o excelente “Era o Hotel Cambridge” (2016), de Eliane Caffé nas sequências da Vila Autódromo que misturam atores e moradores, em um retrato docu-drama da desapropriação da Vila. Há outro diálogo com o filme “Aquarius” (2016), de Kleber Mendonça Filho, no prédio que vai se esvaziando deixando sozinha Rosa (Analú Prestes), como a personagem Clara de Sônia Braga firme em sua decisão de não negociar. Quando das desapropriações, Ana dispara: "Não sei se quero que você se sinta melhor" e "O que você faz quando não está desalojando pessoas?". 


Meliande não cita nomes, mas todos sabem quem são os vilões, e sua grande proeza é realizar um filme extremamente politizado e verídico usando drama, suspense e fantasia. Por isso a frase de Ana faça tamanho sentido: "Só tem monstro nesta cidade".



sábado, 4 de maio de 2019

A Morte do Caixeiro Viajante (1949) – Arthur Miller: As angústias de um caixeiro viajante


A Morte do Caixeiro Viajante (1949) – Arthur Miller: As angústias de um caixeiro viajante:

Biografia de Arthur Miller:




Arthur Miller (1915-2005) foi um dramaturgo norte-americano. Autor de "A Morte de um Caixeiro Viajante" e "As Feiticeiras de Salem". Um dos principais autores do teatro norte-americano contemporâneo.
Arthur Miller nasceu em Nova Iorque, Estados Unidos, no dia 17 de outubro de 1915. Filho de imigrantes judeus e poloneses, seu pai era empresário do ramo têxtil. Estudou jornalismo na Universidade de Michigan.
Em 1949, recebe o Prêmio Pulitzer, o prêmio dos críticos de teatro de Nova Iorque e os três prêmios Tony, com a peça A Morte de um Caixeiro Viajante. Em 1953 apresenta a peça As Bruxas de Salem, encenada no Brasil com o nome As Feiticeiras de Salem.
Em sua obra, faz uma crítica contundente à sociedade de seu país. Destaca-se também por protestar contra a falta de liberdade de expressão e a perseguição a comunistas no período do macarthismo. Em 1956, com as investigações sobre atividades subversivas promovidas pelo governo dos Estados Unidos, Miller depõe no Comitê de Atividades Antiamericanas e recusa-se a delatar intelectuais que participam de reuniões comunistas.
Em junho de 1956 casa-se com a atriz Marilyn Monroe, ao se separar de sua primeira esposa Mary Slattery, com a qual era casado desde 1940. Em 1960, escreve o roteiro do filme Os Desajustados para Marilyn. Em 1961, separa-se de Marilyn.
Os Desajustados foi dirigido por John Huston, em 1961.  
Roslyn Taber (Marilyn Monroe) é uma mulher sensível, que está se divorciando. Gay Langland (Clark Gable) é um cowboy frio, que passou a vida pegando cavalos e mulheres divorciadas. Ela não aceita a captura de cavalos selvagens para virarem comida de cachorro, enquanto que ele não vê nada demais. No meio de tudo isto nasce uma paixão entre os dois.
Arthur Miller faleceu no dia 10 de fevereiro de 2005.




Willy Loman é um caixeiro viajante, velho, mais que velho, cansado, sem ninguém para conversar, perto do fim de sua existência, que não realizou seus sonhos, nem os mais pequenos. Willy sempre foi um homem comum de classe média, por isso, como todo norte-americano do pós-Segunda Grande Guerra acreditava nas receitas do sonho americano, quais sejam: que a América é a terra das oportunidades; no poder das amizades que a profissão propiciava, e, por fim, percorrer o mesmo trajeto traçado por centenas de homens que começaram do nada, e, que por seu esforço pessoal puderam alcançar grandes posições nos escalões dos negócios e da política.
Willy tem 34 anos de profissão e passa a perceber que o sistema comercial se tornou tão impessoal, individualista, que desapareceram os antigos vínculos de estima entre vendedor e clientes. Willy solitário, agora, querendo fincar raízes, morrendo pouco a pouco, está prestes a enlouquecer.
O passado e o presente se confundem dentro de sua mente, dessa forma duas peças desenrolam-se às nossas vistas, uma é o angustiante momento atual do protagonista, e a outra que corresponde às suas reminiscências. Esta segunda peça é expressa cenicamente através de flashbacks, que permitem aos espectadores tomarem ciência dos porquês do momento presente da família Loman.
No passado: Willy era um homem vitorioso para a família, para a sociedade e para si próprio. Tinha um carro espetacular, com o qual percorria os EUA, fazendo sua clientela, para a qual não vendia apenas seus produtos, mas também segurança, simpatia, retidão. Willy tinha tudo: Linda, sua esposa, era bonita, jovial, solícita, que o adora, e absorve todas as alegrias e dores de sua família. Os filhos Biff e Happy eram um sucesso, em especial Biff porque era campeão de futebol americano do colégio. Enfim, Willy orgulhava-se de representar para a família e para a sociedade a imagem de um cidadão exemplar.
Porém, no momento presente: ele se sente ridículo, passa a perceber que as pessoas riem dele, os clientes antigos morreram, e tudo lhe parece marcado por uma melancolia, por uma secura nas relações, e não há possibilidade de se firmar uma amizade, estabelecer uma conversa. Enfim, Willy não aceita o próprio fracasso.
O que se percebe do seu comportamento é que o sonho americano de sucesso e grandes realizações se transfigurou em um grande pesadelo de solidão, de amarguras e angústias.
 A peça de Miller possui diálogos ágeis, técnicas modernas do teatro do século XX, com uso dos flashbacks, além do uso de efeitos sonoros, com temas musicais personalizados para algumas personagens, em especial para o protagonista Willy Loman.

sábado, 13 de abril de 2019

PANORAMA DOMINGOS OLIVEIRA


PANORAMA DOMINGOS OLIVEIRA:

(28 de setembro-1935-23 de março-2019) - 83 anos:



- Cineasta, diretor de teatro, roteirista, dramaturgo e ator; falecido no dia 23 de março, Domingos Oliveira era um homem das Artes e para as Artes. “São as obras artísticas, as obras de autor, que elevam a importância social e econômica das atividades culturais. E abrem os mercados externos”, ele afirmou. Celebrar sua memória e sua obra, é valorizar, portanto, a relevância da arte como identidade cultural e artística para qualquer sociedade e qualquer nação.
Pelas realizações de sua carreira, que os números podem ajudar a entender a dimensão de seus feitos – em mais de 60 anos de profissão é diretamente vinculado a mais de 130 títulos encenados, tendo escrito mais de 20 peças, dirigido mais de 50, tendo realizado algumas traduções e dirigido 22 longas-metragens – entre eles uma obra-prima do cinema brasileiro chamada Todas as Mulheres do Mundo (1966), filme que o lançou, assim como também sua esposa, à época, a atriz Leila Diniz. Mas, mesmo assim, Domingos continuará sendo um eterno e bom mistério, que nos cabe sempre procurar decifrá-lo por meio de suas obras.

- FILMOGRAFIA (20 filmes, 2 inéditos): como diretor:

1966 – Todas as Mulheres do Mundo
1968 – Edu Coração de Ouro
1969 – As Duas Faces da Moeda
1970 – É Simonal
1971 – A Culpa
1975 – As Deliciosas Traições do Amor
1977 – Vida Vida: “Os caseiros” (episódio)
1979 – Teu Tua
1998 – Amores
2002 – Separações
2004 – Feminices
2005 – Carreiras
2008 – Juventude
2008 – Todo Mundo tem Problemas Sexuais
2012 – Primeiro dia de Um Ano Qualquer
2012 – Paixão e Acaso
2014 – Infância
2016 – Barata Ribeiro, 716 (BR716)
2017 – Os 8 Magníficos (inédito)
2019 – Aconteceu na Quarta-Feira (inédito)
* 4 filmes televisivos; episódios para duas séries de TV;

- Todas as Mulheres do Mundo (1966):
Paulo (Paulo José) é um jornalista boa vida que passa a maior parte do tempo paquerando as belas mulheres das praias cariocas. Certo dia, esse sedutor acaba encontrando o verdadeiro amor, ao conhecer Maria Alice (Leila Diniz) uma jovem professora e noiva do amigo Leopoldo (Ivan de Albuquerque). Apaixonado por ela, ele enfrenta o dilema de desistir de todas as mulheres do mundo para viver com uma só.

-  Edu Coração de Ouro (1968):
Edu Coração de Ouro é uma comédia bastante reflexiva sobre a vida de um playboy, brilhantemente vivido por Paulo José, o Edu do título. Trata de questões como: a alienação de certa parcela da juventude dos anos 60, que se mantinha fora da discussão sobre questões políticas (à época a Ditadura Militar estava implantada no Brasil desde 1964); a vida fácil dos playboys do RJ, que vivia às custas do dinheiro da família e não ligava para os estudos ou trabalho, mas só para diversão e farras; trata também de relações amorosas, ora ‘líquidas’ (cf. Zygmunt Bauman) (no caso de Edu), ora mais “consolidadas” (no caso do amigo do protagonista).

- Amores (1998): com Priscilla Rozenbaum.
Domingos Oliveira é um intelectual por natureza e um diretor-ator-escritor completo. O filme Amores é recheado de referências a outras obras, livros, filmes, etc., mostrando seu conhecimento em várias áreas, o que deixa o filme melhor e mais atrativo, lembrando por diversas vezes os filmes de Woody Allen, Domingos segundo alguns críticos de cinema seria o “Allen Brasileiro”. Amores mostra as relações interpessoais, sentimentais, familiares, sexuais, etc. Todos (ou quase todos) os sentimentos humanos são mostrados no filme, sem o diretor se intrometer ou ser parcial quanto a eles, estes são apenas mostrados e, o espectador que tire suas conclusões.

- Feminices (2004): com Priscilla Rozenbaum.
O cineasta utiliza neste filme sua dose habitual de humor leve ao realizar uma crônica da mulher contemporânea, Domingos Oliveira criou o que ele mesmo chama na abertura do filme de “uma experiência, uma brincadeira, um quase-documentário”. Para o cineasta, a forma de atingir o geral é lidando com o particular, nesta infinita transição do universal para o particular, e, do particular para o geral, dessa forma, ele foca a sua história num grupo etário e social (atrizes de 40 anos) e acaba falando do universal.
* Cf. A Peça Confissões de Mulheres de 30.

- Carreiras (2005): com Priscilla Rozenbaum.
É fácil perceber a tensão, o temor e a ansiedade da atriz. A Laura de Carreiras está incrivelmente ‘arrasando’ e arrasada em cena, uma verdadeira avalanche de emoções, sentimentos e paixões. Sob a mira da lente digital do diretor de fotografia, Dib Lutfi, Priscilla Rozenbaum (viúva de Domingos) passa mais da metade dos 72 minutos de Carreiras contracenando com um telefone.

- Juventude (2008): com Domingos Oliveira, Paulo José, Aderbal Freire Filho.
Entre as lembranças de juventude está a primeira vez que estiveram juntos, quando foram selecionados para a peça A Ceia dos Cardeais, encenada na escola. Assim como no texto do português Júlio Dantas, os três amigos se reúnem e contam seus segredos amorosos mais íntimos uns aos outros. Juventude é um dos filmes mais felizes e simpáticos da safra do cinema nacional da década de 2000. Juventude é lindo, a tessitura complexa deste roteiro, de autoria de Domingos, cria diversas camadas para que estes homens assumam e ultrapassem a queda de suas muitas crenças pela vida – como diz o diretor em off no início, deixando para trás a psicanálise, o marxismo, a revolução e a razão. Só sobrou o amor, a emoção.

- Todo Mundo tem Problemas Sexuais (2008): com Priscilla Rozenbaum.
Filme que ao mesmo tempo é teatro, ou seria o contrário, de qualquer forma um continuum entre teatro-cinema; peça-roteiro (a origem é justamente uma peça teatral escrita e montada pelo próprio Domingos Oliveira). Esta é mais uma característica dominguiana o diálogo entre Teatro e Cinema, pois aparece em vários outros filmes seus.
Nenhuma outra parte do filme é tão divertida quanto a final, no epílogo em que Pedro Cardoso interpreta, nada mais, nada menos, do que o pênis, o falo: uma situação que veio do teatro e costuma, literalmente, levar a plateia às lágrimas, de tanto chorar de rir. Em várias sequências, Domingos Oliveira intercala cenas da montagem de um esquete com trechos de apresentações teatrais da mesma situação, o que dá um interessante e hilariante diálogo entre as artes, um dialogismo ímpar, um dialogismo dominguiano.

 - Infância (2014): com Fernanda Montenegro.
Infância conserva aquela que é a melhor característica do diretor, roteirista, dramaturgo: o amor por seus personagens. Mesmo quando os mostra em contradição, em atitudes pouco edificantes, ele nunca os julga nem expõe. Pelo contrário, tece em torno deles uma aura de carpintaria teatral delicada, que revela sua humanidade, sua conexão com toda a humanidade, capaz de despertar a identificação com o público, pelo humor, pela ternura, até mesmo pela compaixão.
Assim como fez Federico Fellini em Amarcord, as recordações verdadeiras se misturam com as versões poéticas do passado. E por entre os fantasmas que evocam as imagens do tio histérico, do odioso primo mais velho e da copeira tentadora sobressaem as figuras dominantes da mãe e da avó – a matriarca da família, insuportável e, ao mesmo tempo fascinante.

- Barata Ribeiro, 716 (BR716) (2016):
Carinhoso e também contundente e mordaz, BR 716 é o retrato da juventude daquele tempo (anos 60), o panorama de um Rio de Janeiro que já não existe mais. Entre diálogos e longas divagações, outra marca registrada do estilo de Domingos Oliveira nos é apresentado caminhos que foram interrompidos por alguma coisa que estava fora da percepção daquelas personagens, sendo que todas essas personagens são o próprio Domingos Oliveira, metaforicamente.
Pois, entre festas felizes e intermináveis, com muitas bebedeiras, nas quais seus amigos passam mais tempo no tal apartamento do que em suas próprias casas, Felipe (Caio Blat) transita por entre eles num dominguiano (já  temos um adjetivo para qualificar a obra do grande artista) tom de melancolia por não conseguir terminar de escrever seu primeiro romance, ou será um roteiro de cinema, ou uma peça de teatro, nem o próprio protagonista Felipe o sabe, ou seria Domingos que ainda não sabia que estava construindo seu roteiro para o filme Barata Ribeiro, 716.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Ilha dos Cachorros (Isle of Dogs, Alemanha-Estados Unidos da América, 2018): alegoria canina.


Ilha dos Cachorros (Isle of Dogs, Alemanha-Estados Unidos da América, 2018): alegoria canina.



“Wes Anderson (diretor de excelentes filmes como “Os Excêntricos Tenenbaums” (2001), “Moonrise Kingdom” (2012), “O Grande Hotel Budapeste” (2014), entre outros) realiza mais um original, criativo e inventivo filme, a animação “Ilha dos Cachorros” que retrata um mundo em que os cachorros são perseguidos pelo clã dos Kobayashi que odeiam os cães e adoram os gatos e, que passa a promover o extermínio sistemático dos peludinhos, a começar pelo exílio deles para uma ilha inóspita, a ‘Ilha do Lixo’.
Um grande elenco de astros dá voz a várias personagens de maneira bem criativa e consistente em suas interpretações para contar esta alegoria que atravessa o Japão desde a época dos samurais até chegar a um presente de ditadura, conspiração do governo, tentativa de extermínio de uma raça-espécies, higienização forçada da sociedade, construção bélica (robótica, armas de destruição em massa), etc. Tudo isso em âmbito alegórico do mundo canino em conflito com o mundo humano, que, contudo, serve como metáfora dos conflitos humanos, entre países e nações através de guerras sem tratativas de paz e conversas diplomáticas.
 Ou seja, trata-se de uma crítica aos nossos líderes que somente em último caso pensam na diplomacia, na conversa e no diálogo preferindo o eterno guerrear, pois esta metáfora do filme do cineasta Anderson não se refere apenas aos tempos que estamos vivendo, mas à Humanidade como um todo através dos tempos.
Um roteiro literalmente original de uma animação (que não foi a primeira na carreira do cineasta, Wes Anderson também dirigiu “O Fantástico Sr. Raposo” (2009)), para todas as idades, bastante reflexiva, que pode ser interpretada em um nível de entretenimento em maior ou menor grau, porém sem desprezar seu nível mais geopolítico e filosófico, ou lógico nos dois âmbitos. ”

sexta-feira, 29 de março de 2019

Benzinho (Gustavo Pizzi, Brasil-Uruguai-Alemanha, 2018): Belo Cotidiano.


Benzinho (Gustavo Pizzi, Brasil-Uruguai-Alemanha, 2018):



“Um belíssimo filme do atual cenário do Cinema Brasileiro contemporâneo é este oportuno trabalho de Pizzi, “Benzinho” que aborda uma família de classe média brasileira, em que todos os membros são importantes para o roteiro -, que foi escrito pelo próprio diretor Gustavo Pizzi (“Riscado”, “Me Chama de Bruna”) em conjunto com a atriz que vive a protagonista da história, Karine Teles -, porém a mãe-esposa-irmã-amiga-mulher Irene se sobressai em um roteiro sensível e poético em sua poesia do cotidiano.
Irene casada com Klaus (Otávio Müller) vive a expectativa da emancipação do filho Fernando (Konstantinos Sarris); vive também com três filhos e às voltas com sua irmã vivida por uma inspirada Adriana Esteves (“Canastra Suja”), a personagem de Esteves, Sônia sofre um relacionamento amoroso conflituoso com o marido (César Troncoso, “O Banheiro do Papa”).
O roteiro não tem estripulias e o diretor consegue se atém ao essencial de poeticidade do dia-a-dia, do corriqueiro, do supostamente banal, onde residem justamente o lirismo de “Benzinho”. Com este ‘diminutivo’ o título já expressa um tom de carinho aos entes familiares mais queridos de Irene. Pode-se fazer um paralelo com a Literatura Brasileira, em especial com os poemas do pernambucano Manuel Bandeira, o escritor que tão bem conseguiu revelar poesia do cotidiano pessoal do eu-lírico e, do social do nosso país, em especial do estado de Pernambuco.
Diálogos interdiscursivos à parte -, o que ressalta, por sinal, a importância de “Benzinho” no cenário do Cinema Brasileiro contemporâneo e do mundo -, já que fez sucesso de crítica e de público por onde passou, inclusive no Festival de Sundance em 2018; sendo cotado, inclusive, para representar o país no Oscar 2019, sendo preterido pela comissão julgadora brasileira que optou pela obra “O Grande Circo Místico”, de Cacá Diegues, como nosso representante oficial.
“Benzinho” é uma obra ímpar, enfim, do cinema nacional, que merece todos os louvores, seja pela direção cuidadosa, pelo roteiro lírico do cotidiano de uma família tipicamente brasileira da classe média, pelas atuações de um elenco afinado e bem dirigido, com destaque para Karine Teles primando com uma interpretação linda, naturalista e inspirada. ”

sexta-feira, 22 de março de 2019


Um Casal Perfeito (Robert Altman, 1979)



Trata-se de um filme de miscelânea de gêneros: drama, comédia, romance, musical (trechos musicais, não um musical strictu sensu), enfim uma tragicomédia seria a melhor definição para a obra do cineasta Robert Altman.
Alex e Sheila se conhecem através de uma agência de encontros e desde o primeiro encontro somam desencontros, idas e vidas no início de um relacionamento tumultuoso, trágico e cômico, mas a relação é sempre manejada pelo roteiro com bom-humor, sarcasmo, ironia e muita música, ora ‘clássica’, ora ‘popular’ da banda do nome sugestivo “Mantendo-os fora da rua”.
Alex é membro de uma família grego-estadunidense retrógrada, principalmente na figura do patriarca retrógado; Sheila divide um apartamento com a banda em comunidade. É um choque para ambos conheceram as ‘famílias’ do outro, as duas são aberrações, bizarrices para Sheila em relação à família de origem grega de Alex, e este vê a família ‘alternativa’ de Sheila como aberração.
Ao fim do filme temos a melhor sequência-cena do filme, na qual o início do filme se une ao final em um roteiro se não perfeito, ao menos atrativo, e o ‘casal perfeito’ é imperfeito na perfeição dos acasos da vida. O ‘casal perfeito’ formado por Alex e Sheila, por fim, é reverberado em um outro casal, denominado nos créditos finais do filme como ‘um casal imperfeito’, que aparece em seis cenas e serve de espelho das relações do casal-protagonista.   



Perto do Coração Selvagem - Clarice Lispector: romance, 1943: epifanias.


- Perto do Coração Selvagem - Clarice Lispector: romance, 1943:

- Em seu romance de estreia, a autora ora desvela ao leitor o mundo interior da protagonista Joana, ora a contempla de fora, o mundo externo de Joana, alternando dessa forma dois tempos: o da infância, na qual a personagem interroga o mundo, os seres, as coisas e, um tempo atemporal, intemporal, ou fora do tempo, ou seja, a eternidade, no qual Joana vive um casamento com Otávio, com quem Joana nunca nutriu a ilusão de ser completa, pois o marido é sempre visto como um estranho.
-  A Incompletude, a Inquietude são sensações que perseguem Joana desde sua Infância, sua inadequação primordial. O “Selvagem” do título será percebido, interpretado aos poucos pelo leitor justamente como esta inquietação de Joana ante o mundo e a coisas, ou melhor ante a si mesma, o seu mundo interior, a sua personalidade interrogativa e inquisidora; esta sua visão de mundo ‘selvagem’ (metáfora) de ver o (s) mundo (s): e a própria selvageria que é viver o mundo interior e o mundo exterior. Basta para percebemos que uma de suas epifanias 'Vive-se e Morre-se' (lição do Professor), capítulo: ... O  Banho... (Primeira Parte), sugere justamente esta selvageria do nosso viver, inquieto e incompleto em Busca... Incompletude, acaba por ser uma das respostas encontradas. Pois, talvez, a protagonista nunca se descubra por completo, estando sempre perto de si descobrir, porém nunca se complete, pois, a completude é a própria incompletude.
- O momento epifânico somente ocorrendo a tal epifania (a maior) justamente na descoberta da sua inquietude, da sua incompletude,  que são de todas as mulheres e de todos nós, está aí a universalidade do romance.
- Um dos capítulos primordiais do livro são as várias descobertas da adolescência, no qual Joana descobre-se mulher, a sua feminilidade dar-se na da passagem infância para tornar-se Mulher, porém não de forma estanque, acabada, pois é uma linha tênue, um devir no romance.
- A escrita do romance é tateante, sonâmbula, não-linear, o tempo psicológico predomina marcado por epifanias, pequenas e de grandes revelações, a maior talvez é: que se vive para morrer e a incompletude humana, esta inquietude que nos é peculiar é nossa maior felicidade. Assim, é na meia-Vigília, na duração 'instante-intervalar' que o silêncio-contemplação leva às epifanias, as novidades em devir revelam que a vida é uma travessia infinita de novidades, inauditos.
- O romance nos  desvela também alegria-tristeza e vice-versa, sentimentos conflituosos e harmoniosos, opostos complementares, por exemplo, no casamento de Joana se revela esta dualidade dinâmica, em um amor incompleto, inquieto.
- Outra epifania de Joana é a dos 'círculos completos em si mesmos', mas que desta forma não revela nada, somente quando estes círculos se intercalam entre si, ou seja, não sendo mais círculos completos em si mesmos, mas quando se misturam, todos sobrepostos aos outros configura-se a epifania: que todos os momentos da vida são tão intensos em suas infinitas-finitas durações-travessias do presente, não importando passado nem futuro. 
- Esta e outras epifanias se  expressam principalmente no 'silêncio' e através das sensações,  daí se chega a mais uma das epifanias de Joana = a mulher é o devir, é o eterno tornar-se...
- A solidão, o silêncio momentos propícios das verdadeiras revelações, descobertas, epifanias de si mesma = a descoberta do verdadeiro amor, o amor a si mesmo, sua individualidade completa na incompletude (não individualismo), precisa-se encontrar a si mesma, a amar-se para amar outro numa relação amorosa homem-mulher, no caso do romance em tela.
- O Mar sempre aparece como metáfora de amplidão = imensidão – completude na incompletude do infinito – devir – o que importa é o ir – a travessia.  A importância é viver simplesmente viver o seu “Presente” – transpondo suavemente alguma coisa... ou seja a própria existência em devir.  A alegria é a Alegria de saber que se está vivendo – epifania.
- Solidão não em strictu sensu, mas em sentido epifânico de introspecção de Joana para metaforicamente perceber pelas sensações, pelas impressões que sua liberdade, sua completude está na incompletude inquieta, é por isso mesmo a incompletude que completa de maneira incompleta a Busca por si mesma.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Os Inocentes (The Innocents, Jack Clayton, 1961, GBR):


- Os Inocentes (The Innocents, Jack Clayton, 1961, GBR):





-  Baseado no conto “A Outra Volta do Parafuso”, de Henry James, 1898; roteiro adaptado por Truman Capote -, (escritor de “À Sangue Frio”, 1966, ver o filme Capote, 2005, de Bennett Miller, com Philip Seymour Hoffman) -, e William Archibald;
- Mrs. Giddens (Deborah Kerr) é filha de pastor, governanta, no começo do filme ela nos é apresentada implorando pela salvação das almas de algumas pessoas não determinadas; a história se passa na Época Vitoriana;
- A personagem Senhorita Giddens é contratada pela personagem interpretada por Michael Redgrave nomeada apenas como “O Tio” para cuidar de seus sobrinhos, Flora e Miles, duas crianças órfãs;
- Ele, “O Tio”, demonstra honestidade e pouco interesse pelos sobrinhos que vivem no campo;
- Poucas personagens completam a trama: Sra. Grose (governanta), Anna (cozinheira); o espaço é de uma mansão gigantesca cheia de quartos vazios (ou não!), a maioria das cenas se passa no interior da casa; algumas no jardim; inclusive existem algumas cenas memoráveis com diálogos expressivos quanto à carga simbólica do conteúdo proposto na história; e duas personagens misteriosas;
- Estes detalhes se entrelaçam para um roteiro enxuto e perfeito, cuja a temática gira em torno de questões como: Pecado X Pureza; opostos complementares; dinâmicos;
- As crianças sempre nos aparecem entre luz e sombra e, isto se deve a iluminação das velas, em uma ambiência claustrofóbica; a maioria das vezes as cenas se passam à noite, inclusive o clímax; fotografia em preto-e-branco não é por acaso;
-  Possessão – ponto de interrogação, talvez não seja o ponto mais relevante da trama; porém, onde está a corrupção; na imaginação e ou na realidade propriamente dita da história; o que é real, o que é ilusão-sonho-ou-pesadelo; por último, um detalhe de suma importância são os sussurros que são ouvidos ou não pela Senhorita Giddens; eis o maior enigma.





sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Breve Análise da Poesia de Machado de Assis, por Rafael Vespasiano.


Breve Análise da Poesia de Machado de Assis
(Rafael Vespasiano)




“A trajetória de Machado de Assis na Literatura perpassou quase todos os gêneros literários -, romances, contos, crônicas, teatro, poemas e crítica literária -, no entanto para Massaud Moisés (2009, p. 82) foi na prosa de ficção que realizou suas maiores obras-primas, o debate vai longe se seus melhores trabalhos se deram como contista ou como romancista, de certo produziu vários clássicos da Literatura Brasileira e universal nos dois gêneros.
A poesia, ainda para o crítico literário Massaud Moisés, foi um “rasgo de juventude”, que durou aproximadamente vinte anos desde o primeiro poema datado de 1855, até 1875, com a publicação de Americanas, quando se despede dos arroubos da juventude, espécie de ‘imaturidade’ literária para iniciar a criação de sua obra madura, a partir de 1881, ano que veio a luma o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Como nos afirma ainda o crítico Moisés: não foi plenamente poeta, “porque a sua produção em versos não progrediu conforme os passos da narrativa. Estacionada na década de 1870, não atingiu os níveis da prosa, assinalando, como tudo da fase inaugural, pelo timbre dum romantismo moderado” (2009, p. 82). Porém, sua cosmovisão não é ‘poética’, ao contrário, Machado cultiva a metáfora filosófica, racional e irônica, resistindo a entregar-se à contemplação do eu-lírico, raramente extravasado o sentimento que o inunda se faz notar em seus poemas. 
Machado, dessa maneira, pode-se afirmar que escreveu poemas que se notabilizam pelo bom gosto, cultura, porém sem a autenticidade da verdadeira poesia. Versos bem-comportados, contidos, fruto mais da razão do que da emoção, perfeitos formalmente e parnasianos na métrica e no rigorismo formal. Mas quando ultrapassou o conter-se criou o melhor de sua lírica, exemplos são os poemas “A Carolina”, “Versos a Corina”, “A Mosca Azul”. No entanto, ainda assim mesmo nessas composições mais densas de emoção romântica e lírica, fica-se preso ainda às ideias parnasianas do moralismo ou filosofismo nem sempre compatíveis com a realidade lírica daqueles poemas, e volta o escritor a ‘lapidar’ o seu estilo de maneira estéril, com uma versificação que tortura as emoções expressas nos poemas, tudo em nome de uma concepção que se aproxima mais dos clássicos.
O que se depreende que Machado de Assis em sua poesia tem algum lirismo romântico dos modelos do Romantismo, mas nela já se antecipava o Parnasianismo, no que se refere a perfeição formal e marmórea dos versos aliada à impassibilidade. Vejamos o livro Americanas eco mais que tardio e distante da poesia indianista de Gonçalves Dias. Porém este eco é quase que inutilizado pelo culto ao estilo e pelo conter-se ao rigor formal de versificador cerebrino.
O livro Falenas possui longos poemas narrativos com claras inspirações dos mitos da literatura clássica. Já o livro Crisálidas apesar de um título sugestivo e metafórico não se realiza como poêsis emotiva e-ou imaginativa. Nestes dois livros tem-se uma poesia com uso desmesurado das descrições. As figuras de linguagem que o escritor mais usa são as enumerações, as prosopopeias e usa também as maiúsculas alegorizantes típicas do Parnasianismo e sua Musa em busca do Belo, ou seja, da inspiração e da perfeição formal. ”





Anexos:

“A MOSCA AZUL”


Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"

Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.

Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.

“A CAROLINA”

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


Referências Bibliográficas:
ASSIS, Machado. Crisálidas, Falenas, Americanas. São Paulo: Globo, 1997.
MOISÉS. Massaud. História da Literatura Brasileira – volume II – Realismo e Simbolismo. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 2009.