quinta-feira, 22 de junho de 2017

(Viagem à roda do meu quarto (1794), de Xavier de Maistre): (“UM LIVRO BASILAR PARA O SURGIMENTO E FORMAÇÃO DO ROMANCE MODERNO”)

(Viagem à roda do meu quarto (1794), de Xavier de Maistre):



(“UM LIVRO BASILAR PARA O SURGIMENTO E FORMAÇÃO DO ROMANCE MODERNO”):



(RESENHA POR RAFAEL VESPASIANO):

“O clássico Viagem à roda do meu quarto (1794), de Xavier de Maistre, uma obra prima do dualismo dinâmico parabático e irônico do prosaico e sublime; exterior e interior; íntimo e objetivo; ou seja, opostos complementares, segundo os Irmãos Schlegel.
Viagem ao redor do meu quarto é um livro único e que serviu de tradição literária e influência estético-estilística para Machado de Assis, quanto ao fluxo de consciência, no Realismo Artístico. E também o antecipador do romance moderno Marcel Proust e seus quartos íntimos e reflexivos, meditativos, contemplativos e que chegam no modernismo brasileiro de Manuel Bandeira também, basta ver o poema “Maçã”.
Viagem à roda do meu quarto tem como pretexto o confinamento íntimo, interior e subjetivo do narrador, em Turim, por conta de um duelo, durante 42 dias (o número de capítulos). Essa reclusão acarretada por um episódio passional reflete uma situação existencial dialética não sintética entre subjetividade e objetividade; realidade e devaneios. Restaram-lhe os prazeres de um egotismo caprichoso e errático, que muito influenciará o defunto narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Aliás Xavier de Maistre teve como tradição literária o maravilhoso Tristram Shandy, de Laurence Sterne.
Machado de Assis o teria como influência em seus escritos e obra literária como um todo, em indisfarçáveis aspectos: a conversa constante com o leitor, os capítulos curtíssimos, a metalinguagem, as digressões, o uso satírico de teorias filosóficas, o Humanistimo, por exemplo de Quincas Borba, a pilhéria dialogando com a melancolia, ou seja, nesse clima de volubilidade e misantropia, e, o dualismo dinâmico de realidade, delírio/devaneio/sonho, e mais a metalinguagem para complementar o surgimento do romance moderno de fins do século XIX, início do século XX, com Joyce e Mann.

Por isso, apesar do charme do texto, há uma reserva que persiste na leitura de Viagem à roda do meu quarto (e da sua continuação, publicada em 1824, Expedição noturna ao redor do meu quarto. O que não se pode negar é que de Maistre conseguiu o feito de alargar as fronteiras da literatura, trazendo o mundo da intimidade pessoal e a falta de intriga folhetinesca para o centro da narrativa, na exploração do seu quarto por 42 dias e no decorrer de uma noite, como complemento dos devaneios, sonhos/realidade, fatos.”. 


terça-feira, 13 de junho de 2017

Do Mundo Nada se Leva (You Can’t Take It With You, Frank Capra, EUA, 1938): (“O ANTAGONISMO ENTRE NEGÓCIOS E FESTAS: O ELO É O AMOR”)

Do Mundo Nada se Leva (You Can’t Take It With You, Frank Capra, EUA, 1938):

(“O ANTAGONISMO ENTRE NEGÓCIOS E FESTAS: O ELO É O AMOR”):

(CRÍTICA POR RAFAEL VESPASIANO):




“O principal foco da construção narrativa da obra de Frank Capra em Do Mundo Nada Se Leva é o amor e suas impossibilidades e possibilidades amorosas, estruturadas por um roteiro exemplar de Robert Riskin, que retrata a história de Alice Sycamore (Jean Arthur) e Tony Kirby (James Stewart), que separados pelas diferentes realidades sociais, lutam contra a incompatibilidade hierárquica social e política das famílias.



A de Tony, conservadora e abastada se põe desde o início do filme contra o casamento dele com Alice, sua secretária, por quem se apaixona, cuja família é mais simples e mais baixa em status social, porém dona de um lar onde sempre se encontram os fogos de artifício, música, dança e diversas invenções, uma família apesar das dificuldades extremamente festiva e alegre com a vida em geral.
Já Tony, vice-presidente do banco do pai, sente-se distante de sua família e é oprimido por sua realidade e o que querem dele, deslumbra-se com aquela família em que todos fazem o que desejam, em um momento em que o mundo se via às portas da Segunda Guerra Mundial. Ao longo da narrativa, o avô de Alice, Vanderhof (Lionel Barrymore), o dono do terreno da comunidade se recusa a vendê-lo para o pai de Tony, indo contra os planos do banqueiro e gerando conflitos entre as famílias.

O antagonismo de realidades exposto acima, entre a realidade do momento e a necessidade de conquistar o sucesso através dos negócios e o mundo dos sonhos, que dispensa os valores essenciais tão importantes para a primeira situação se evidencia nas personalidades do banqueiro e do dono da comunidade e a união das situações, resultado do choque entre os valores antagônicos, se dar no romance de Tony e Alice. ” 



quinta-feira, 8 de junho de 2017

A Obra rosiana e sua (s) visão (ões) de mundo: Campo geral e a Cosmogonia a partir do ponto de vista da (s) criança (s).

A Obra rosiana e sua (s) visão (ões) de mundo: Campo geral e a Cosmogonia a partir do ponto de vista da (s) criança (s).



(Prof. Rafael Vespasiano Ferreira de Lima).

“A obra rosiana é inesgotável em suas múltiplas significações e em seus diversos temas. Uma temática que se sobressai entre tantas é a da infância, como visão de mundo. Uma perspectiva da realidade ainda não contaminada pelas vicissitudes da fase dita adulta da vida. Assim, Guimarães Rosa elege a infância como ponto de vista que revela o consórcio entre o ser humano e a natureza (mundo), no qual transparece a cosmogonia rosiana que é perceptível em todas suas obras.
Neste ensaio, portanto, trabalhar-se-á o tema da infância como visão de mundo. A obra de Guimarães Rosa escolhida, para servir de base ao estudo do tema, é o romance “Campo Geral”, primeira estória de Corpo de Baile. A análise daquela obra dar-se-á pela perspectiva de seu protagonista, Miguilim, um menino do sertão-mundo, em consórcio com a natureza (fauna e flora), que aprende o quanto o mundo ao seu redor é poético e belo, a partir do sofrimento, contudo, marcado pela epifania, que constrói o seu saber sobre a vida e o mundo.
Dessa forma, o escritor João Guimarães Rosa apresenta em “Campo Geral”, uma visão cosmogônica da vida, pela perspectiva de uma criança, Miguilim, o qual simboliza o consórcio entre seres humanos e o sertão. Este Sertão é visto na obra rosiana, como um Cosmos, em que as pessoas vivem em comunhão com os demais entes do sertão.
O crítico Ronaldes de Melo e Souza (2008) cita a correspondência de João Guimarães Rosa com seu tradutor italiano, na qual o escritor mineiro elucida o porquê do título da primeira estória de Corpo de baile, conjunto de sete narrativas, chamar-se “Campo Geral”:
A primeira estória, (...), contém, em germe, os motivos e temas de todas as outras, de algum modo. Por isso é que lhe dei o título de ‘Campo Geral’ – explorando uma ambiguidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais se diz um Campo Geral ou o Campo Geral, este Campo Geral; no singular, a expressão não existe. Só no plural: ‘os Gerais’, ‘os Campos Gerais’. Usando, então, o singular, eu desviei o sentido para o simbólico: o de plano geral (do livro). (SOUZA, 2008, p. 125)

O teórico Ronaldes de Melo e Souza (2008, p. 125) afirma, então, que o título “Campo Geral” dado à primeira estória de Corpo de baile, tem um “sentido simbólico” no “conjunto sinfônico das sagas” enfeixadas na citada obra. Verifica-se, assim, a originalidade do escritor Guimarães Rosa, que por meio do inédito, inaudito (o título da primeira saga sendo usado no singular), já antecipa o caráter original da obra inteira e o plano arquitetônico e sinfônico de Corpo de baile.
O ensaísta Paulo Rónai assevera que:
nos dois índices da obra, as partes desta são ora qualificadas de poemas, ora de contos e romances. Serão poemas, enquanto todas trazem significações subjacentes. A distinção entre conto e romance tampouco obedece ao critério habitual da extensão; antes corresponde a um grau maior ou menor de conteúdo lírico: ao subordinar os primeiros ao título de ‘parábase’, o autor com esse termo da comédia grega, adverte-nos de que é neles que se deverá procurar a sua mensagem pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem. (RÓNAI, 2001, p. 19-20)

Ao modo dos poemas clássicos, os mistérios da obra Corpo de baile só são revelados aos poucos e sob um olhar atento do leitor. “A própria unidade da obra é um deles.” “Conexões de temática, correspondências estruturais, efeitos de justaposição e oposição integram-na, mas os leitores têm de os descobrir (sic) um a um.” (RÓNAI, 2001, p. 20)
“Campo Geral” é, assim, também uma “saga”, vocábulo este que o escritor mineiro relaciona com sagen, “que significa dizer o inédito ou inaudito” (SOUZA, 2008, p. 9). A saga sertaneja assume, portanto, o caráter da:
iniciação na arte de contar estórias originais e o tema do sertão como cifra pelo simbólica do vínculo nupcial do homem e do mundo articulam a poeticidade da forma narrativa de Corpo de baile. Miguilim, o protagonista de “Campo Geral”, que assume a função mitopoética de contador de estórias inauditas, todas novas, inventadas de juízo, tiradas por inteiro de sua cabeça, constitui o protótipo dos personagens arrebatados pelo regime de fascinação das sagas sertanejas. (SOUZA, 2008, p. 125)

Dessa forma, o autor de Corpo de baile revela aos leitores de sua obra cosmogônica, “almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre.” (RÓNAI, 2001, p. 17-18)
  O escritor mineiro apresenta as personagens sertanejas “em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença, ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida.” (RÓNAI, 2001, p. 18) É o caso da protagonista de “Campo Geral”, Miguilim que enfrenta a doença e a morte, para aprendendo pela dor e pelo sofrimento, amadurecer e crescer espiritualmente.
 Revela-se, assim, o tom original e poético de “Campo Geral”. Uma estória que, tendo como protagonista uma criança. Miguilim oferece ao leitor uma visão de mundo inédita, ou ainda renovada. A partir da qual, de forma mitopoética, ao contar suas próprias estórias, Miguilim (re)-cria e (re)-inventa o mundo à sua volta. O Sertão (com “S” maiúsculo, como sempre quis Guimarães Rosa) é elevado a um Cosmos, de caráter universal, no qual há um consórcio, lírico e belo, entre homens e demais seres viventes do Sertão.
A narrativa mitopoética de “Campo Geral” mostra ao leitor a infância com um poder infinito de encantamento e imaginação, “que transcende a inflexão inercial do espírito subjugado pelos fatos inanimados” (SOUZA, 2008, p. 127), ou seja, o pragmatismo da vida de subsistência do sertão transmuta-se em magia e em criatividade lírica e cósmica.
A estória passa-se numa região denominada “Mutum”, que para o crítico Paulo Rónai “é um recanto oculto da roça, com seu emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e paixões selvagens.” (RÓNAI, 2001, p. 21). “Um certo Miguilim morava (..), longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d´Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra.” (ROSA, 2010, p. 13). Dessa maneira:
Um certo Miguilim morava (..), longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d´Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. (ROSA, 2010, p. 13).

E, os leitores entram, nesse cenário sertanejo:
guiados por um menino de oito anos, nascido no próprio ambiente, e que o aceita com inteira naturalidade. Numa reprodução mágica da visão infantil, episódios insignificantes criam volume e acontecimentos trágicos se reduzem a meras impressões. (RÓNAI, 2001, p. 21).
Pela perspectiva de uma personagem infantil, marcada pelo divino, no sentido mitopoético, a criança Miguilim conduz o leitor na apreensão do mundo, sob o viés do mágico e do maravilhoso, os dramas dos familiares adultos de Miguilim são percebidos como “meras impressões”. O que marca definitivamente a sua visão de mundo, no caso a sua visão do “Sertão”, são os aspectos mitopoéticos, mágicos e maravilhosos do Cosmos e da Vida.
O teórico Paulo Rónai define bem como os leitores sentem-se ao penetrar nesse “Mutum” e como eles percebem o crescimento do protagonista:
Sob nossos maravilhados, o menino Miguilim cresce, incorpora as lições das plantas e dos bichos, absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-se desenvolvendo dia a dia, no meio dos segredos inquietantes do mundo dos adultos, mas impressionando-se sobretudo com milagres que só para ele existem: o papagaio pronunciando pela primeira vez o nome do irmão meses após a morte deste, um par de óculos dando à vida nova dimensão e sentido. (RÓNAI, 2001, p. 21-22)

Por isso mesmo, “o tema da infância redescoberta", para o crítico Ronaldes de Melo e Souza, “constitui o motivo essencial da predileção do escritor pela estória de Miguilim.”. (SOUZA, 2008, p. 126) O próprio autor João Guimarães Rosa, ainda segundo o Professor Ronaldes de Melo e Souza, “ficcionalmente se reconhece no menino Miguilim. Na entrevista concedida a uma prima estudante, o escritor confessa que, desde menino muito pequeno, ‘brincava de imaginar intermináveis estórias’, acrescentando que a sua estória predileta é a do Miguilim, compaginada em “Campo Geral”” (SOUZA, 2008, p. 126).
Essa visão de mundo marcada por uma criativa e inovadora forma de perceber a realidade sertaneja pode ser teorizada a partir dos estudos do filósofo Gaston Bachelard, que propõe no livro A poética do devaneio, uma filosofia-poética que o escritor denomina de “Os Devaneios Voltados para a Infância”, a qual é muito relevante para o estudo que se propõe neste ensaio. O filósofo afirma: “quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma existência sem limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era um devaneio de alçar voo.” (BACHELARD, 1993, p. 94).
Essa reflexão filosófica é emblemática para justificar o porquê de Miguilim possui uma visão original e criativa, como se percebe na seguinte passagem de “Campo Geral”:
Dito começava a dormir de repente, era a mesma coisa que Tomezinho. Miguilim não gostava de pôr os olhos no escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O travesseirinho cheirava bom, cheio de macela-do-campo. Amanhã, ia aparar água de chuva, tinha outro gosto. (ROSA, 2010, p. 39).

Num momento de solidão e de consequente devaneio, Miguilim põe asas à imaginação criadora, típica de uma criança em processo de inventividade poética e que narra liricamente sua forma de compreender e apreender o mundo ao seu redor. 
A mundividência de Guimarães Rosa baseia-se na imaginação infantil. Por isso mesmo, Miguilim é quem percebe e apresenta ao leitor a cosmovisão rosiana. “Enquanto menino revestido do poder transcendente da imaginação criadora, Miguilim simboliza a inauguração dinâmica da visão liberada dos liames deterministas do logicismo causal.” (SOUZA, 2008, p. 129). Sendo assim, o protagonista oferece uma visão mitopoética do Sertão, como se verifica na seguinte passagem de “Campo Geral”:
(...) O coelhinho tinha toca na borda-da-mata, saía só no escurecer, queria comer, queria brincar, sessépe, serelé, coelhinho da silva, remexendo com a boquinha de muitos jeitos, esticava pinotes e sentava a bundinha no chão, cismado, as orelhas dele estremeciam constantemente. Devia de ter o companheiro, marido ou mulher, ou irmão, que agora esperava lá na beira do mato, onde eles moravam, sozim. (ROSA, 2010, p. 28)

Nela fica evidenciada a visão cosmogônica do escritor João Guimarães Rosa, na qual pela perspectiva de Miguilim é mostrado ao leitor o consórcio entre o ser humano e os demais entes do Sertão. Numa proposta mitopoética, a infância serve como mediadora para apresentar aos leitores a cosmovisão do escritor mineiro.
Guimarães Rosa com sua literatura mitopoética faz uso, portanto, de mitos. É o que se verifica ao pensarmos que em “Campo Geral”, o mitologema da criança divina aparece de forma lírica e narrativa, na figura de Miguilim. Citemos Karl Kerényi, um historiador das religiões, que assevera: “As mitologias recorrem à figura de uma criança divina, o primogênito do tempo primordial, em que a ‘origem’ existiu pela primeira vez” (KERÉNYI, 2011, p. 23).
Sendo assim, a realidade cosmogônica de “Campo Geral” tem um viés mitológico, ou no caso do escritor mineiro, mitopoético. Pois, o consórcio entre seres humanos e demais viventes do Sertão é mediado pela perspectiva infantil, fundamentadora e fundadora de Miguilim. Este, de maneira original e criativa, apresenta e oferece ao leitor a origem originária de um Cosmos, de um Sertão em constante devir poético, num incessante brotar e germinar de Vida. No meio sertanejo, ressalte-se, contudo, que este Sertão é universal, é que Miguilim transforma-se em uma criança divina, não pelo viés religioso, mas num sentido mais amplo e mágico, o sentido mitopoético.
 O crítico literário Ronaldes de Melo e Souza cita a estudiosa Hannah Arendt, ao abordar o tema da criança original. “Na visão crítica de Arendt, (...), a chegada de uma criança divina e redentora, (...) se compreende como ‘afirmação da divindade do nascimento’, que assegura ‘a salvação potencial do mundo’ pelo ‘próprio fato de a espécie humana se regenerar a si própria, continuamente e para sempre’”. (SOUZA, 2008, p. 130).
Assim, fica evidente ao fazer-se uma correlação com a obra “Campo Geral”, que o eterno devir germinativo do Sertão é captado e apresentado pela criança Miguilim ao leitor. Ainda citando Arendt:
a ideia de certo modo relacionada, mas diferente, de que os homens estão equipados para a função logicamente paradoxal de estabelecerem um novo início devido a eles próprios serem inícios, e, portanto, iniciadores, cuja capacidade própria de iniciar está enraizada na natalidade, no fato de os seres humanos aparecerem no mundo devido a nascerem. (ARENDT, apud SOUZA, 2008, p. 131)

A saga de Miguilim equivale ao sentido já aludido de sagen, que tem na acepção germânica, o significado de dizer o inédito, apresentar o inaudito. O escritor Guimarães Rosa, então, para apresentar a brotação do mundo, faz isso de maneira inédita, originalíssima, pela visão infantil de Miguilim, um ser especial, que vê as coisas do Sertão por uma perspectiva diferenciada, como se percebe nesta passagem de “Campo Geral”: “O garrote tourava as vacas, depois nasciam os bezerrinhos. (...) Um porco magro, passante, demorou na porta de tulha, esmastigando, de amarelar, um bagaço de cana. Grunhava. Devia de ser bom, namoração.” (ROSA, 2010, p. 65)
Assim, pela visão mitopoética de Miguilim revela-se a constante germinação do Sertão.  A infância original de Miguilim propicia ao leitor alçar um voo poético, pelo mundo sertanejo. Pois através de seus devaneios, para nos atermos aos termos de Bachelard, é que “(...) o devaneio nos dava liberdade. (...) Psicologicamente falando, é no devaneio que somos seres livres.” (BACHELARD, 1993, p. 95). Ou seja, os devaneios que Miguilim experimenta é que dava a ele (e aos leitores!), a liberdade para apreender toda a poesia cosmogônica do Sertão.
  Para Bachelard:
A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores. (...) Para reviver os valores do passado, é preciso sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica que é o devaneio, na paz de um grande repouso. Então a memória e a imaginação rivalizam para nos devolver as imagens que se ligam à nossa vida. (BACHELARD, 1993, p. 99).

No intuito de confirmar o proposto pelo filósofo Gaston Bachelard, basta citar-se a seguinte passagem de “Campo Geral”: “Chegasse em casa, uma estória ao Dito ele [Miguilim] contava, mas estória toda nova, dele só, inventada de juízo (...)”. (ROSA, 2010, p. 75) Percebe-se, a importância da imaginação criadora do protagonista, que ao devanear: cria e recria o Sertão; conta e reconta estórias. Constituindo assim o que a Professora Maria Lucia Guimarães de Faria nos chama atenção ao referir-se à teoria bachelardiana, e que é aplicável ao trecho acima citado da obra rosiana, pois “(...) a atividade indissolúvel e indissociável do tríptico Imaginação-Memória-Devaneio, que, para Bachelard, é a voz e a vocação do Imaginário.” (FARIA, 1988, p. xi).
Ou seja, ao “inventar” estórias, Miguilim está, invariavelmente, usando o artífice criativo do tríptico Imaginação-Memória-Devaneio. Dessa forma, literariamente, é apresentado, de forma originalíssima e mágica, o Sertão cosmogônico de Guimarães Rosa.
Ressalte-se que “Campo Geral” é a estória de Miguilim, mas que “se desenvolve associada a dois meninos excepcionais: o irmão Dito e o amigo Grivo.” (SOUZA, 2008, p. 131). Dito, ainda para o Professor Ronaldes de Melo e Souza, “se distingue como o menino que diz o verivérbio enunciador do conteúdo mitopoético da saga.” (SOUZA, 2008, p. 131).
E é ainda Dito que, ante a sua morte iminente, ensina uma verdade sobre a Vida ao seu irmão Miguilim, para que este não cultive a tristeza nem se deixe abater pelas vicissitudes do destino. “Dito revela a Miguilim que a alegria possui o dom de exorcizar o mal e atrair o bem” (SOUZA, 2008, p. 132):
- ‘Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você... ’ E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: - ‘Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...’ E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá. (ROSA, 2010, p. 117-118).

Já Grivo é um amigo de Miguilim, que se sobressai como o menino dotado do poder criativo da imaginação poética e de possuir o dom de saber contar estórias originais acontecidas no Sertão. Essas duas personagens “no conjunto mitopoético das sagas de Corpo de baile, (...) se associam como atores privilegiados. O privilégio da atuação se verifica na função que desempenham no entrelaçamento das estórias. Tornam-se tão representativos da poeticidade sertaneja, que atuam como personagens recorrentes.” (SOUZA, 2008, p. 132).
Grivo reaparece na saga da busca poética pela origem originária da Poesia, marcada pelo letrear poético de “Cara-de-Bronze”. Já Miguilim é visto novamente na sétima saga de Corpo de baile, “Buriti”, que finaliza aquela obra como o Eros cosmogônico do Sertão rosiano.
Na visão mitopoética da personagem Miguilim, o mundo de “Campo Geral” existe para apresentar e conferir perfeição mágica ao estatuto das estórias sertanejas. “Por isso, cada vez mais se aprofunda na assimilação compreensiva do magistério infantil do Dito, armando-se de alegria e esperança até o dia em que o médico lhe corrige a miopia com um par de óculos e o leva para estudar na cidade.” (SOUZA, 2008, p. 133).
Cita-se a passagem em que é revelada uma nova visão de mundo para Miguilim: “E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. – Olha, agora! Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessôas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão (...).” (ROSA, 2010, p. 152-153).
Outra personagem é Aristeu que aparece como criador de abelhas, curador de doenças e tocador de viola. Na estória do menino contador de estórias, Aristeu surge a fim de curar a doença de Miguilim. Este se restabelece e transparece de alegria ante o fascínio que Aristeu despertou nele.
Dessa forma, Miguilim se entusiasma, ainda mais, com o universo mitopoético que se apresenta ante seus olhos e demais sentidos, num processo catártico e de renovação espiritual. Assim, é dramatizada tanto a alegria da mundividência infantil, quanto é representada a cosmogonia do Sertão rosiano:
Mas entravam a pasto a fora, podia se cantar não, não espantar o gado bravo. A gente tinha de não ser estouvado. Avançando devagarinho, macio, levando os cavalos de môita em môita, pisavam o fofo capim, gafanhotos pulavam. Carecia de se ir em rumo da casa do vento. – ‘Salúz, a gente não aboia? Você não toca o berrante?’ ‘- Hoje não, Miguilim, senão eles pensam vão ganhar sal... ’ Passavam os periquitos, aquela gritaria, bando, bando. Vaqueiro Salúz tinha de ver se havia reses doentes, machucadas, com bicheira. (...) Gavião e urubu arrastavam sombras. Vez em quando a gente ouvia também um gró de papagaio. O cerrado estava cheio de pássaros. (...) Salúz e Miguilim saíam num furado, já se escutava o a-surdo de boi. – ‘Miguilim, pois então aboia, vou mesmo fazer uma coisa só para você ver como é...’ Aí, enquanto Miguilim aboiava, o vaqueiro Salúz desdependurou o berrante de tiracolo, e tocou. A de ver: - ‘Eh cô!...’ ‘Huuu... huuu...’ – e a boaida mexe nos capões de mato. (ROSA, 2010, p. 138-139).

Essa citação longa se fez necessária para exemplificar o tom poético da saga “Campo Geral”. E, evidenciar o caráter cosmogônico do Sertão rosiano, no qual há um consórcio entre seres humanos e demais seres viventes do Sertão, que se relacionam num eterno devir metamórfico e poético.
Em “Campo Geral”, a saga rosiana é apresentada ao leitor, sob a perspectiva de uma visão renovada. É, justamente, pela ótica infantil de Miguilim, que é simbolizado o mundo mitopoético de Guimarães Rosa. A mundividência rosiana transparece num Sertão, que, na realidade literária, é um Sertão Universal, um Cosmos em si mesmo. ”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Introdução. In: -. A estética concreta de Guimarães Rosa. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura). Brasília: Universidade de Brasília, 1988, p. iii-xiii.
KERÉNYI, Karl. In: JUNG, C. G. & KERÉNYI, Karl. A criança divina: uma introdução à essência da mitologia. Tradução de Vilmar Schneider. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 13-43.
RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile). 11.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 17-25.
ROSA, João Guimarães. Campo geral. In: -. Corpo de baile. Vol. 1. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, p. 13-156.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A saga rosiana do sertão. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.







sábado, 3 de junho de 2017

Sob o Poder da Maldade (The Sorcerers, GBR, Michael Reeves, 1967): (O HORROR PSICOLÓGICO E PSICODÉLICO)

Sob o Poder da Maldade (The Sorcerers, GBR, Michael Reeves, 1967):



(O HORROR PSICOLÓGICO E PSICODÉLICO):




(CRÍTICA POR RAFAEL VESPASIANO):



“Sob o Poder da Maldade' (The Sorcerers) é um filme de horror e ficção científica, com toques de terror tanto de violência física quanto e, especialmente, psicológica. Dirigido e co-escrito por Michael Reeves e estrelado por Boris Karloff, Catherine Lacey, atores em perfeita sintonia: destaque para a atuação de Lacey. Os dois formam um casal de idosos reclusos, muito estranho e que guarda muitos segredos.
De fato, é mais uma obra-prima do horror dirigido pelo jovem Reeves, responsável por clássicos como 'O Caçador de Bruxas'. Esta grande promessa para o cinema de horror teve sua vida interrompida, quando tinha apenas 25 anos de idade.
O roteiro une a temática do cientista louco, frequente nos clássicos do gênero realizados nas décadas 1930 e 1940, ao frescor anárquico e enlouquecido que estava sendo trabalhado na safra dos estúdios Hammer, com o elemento adicional do contexto social da Londres da dança swing psicodélica da segunda metade dos anos 1960, representado pela forma como os personagens jovens são retratados.
A presença de Boris Karloff, em ótimo momento, reforça esse resgate, mas é a fantástica Catherine Lacey, vivendo uma idosa que deseja experimentar novas emoções, numa interpretação que lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Trieste Science Fiction Film Festival, a responsável pela força dramática do projeto. A história é simples, o que realmente engrandece o resultado é a eficácia na criação da ambiência de violência psicológica e horror mental inquietante, onde o senso de perigo é uma constante.

O diretor Michael Reeves, um jovem talento que faleceu dois anos depois da estreia, consegue, com baixo orçamento, estabelecer um filme excepcional, dentro de suas limitações e propostas fílmicas. ”