quarta-feira, 1 de julho de 2020

(Convite ao Prazer, BRA, 1980, Walter Hugo Khouri): (“Liberdade Vigiada e-ou Prisão Livre”):


(Convite ao Prazer, BRA, 1980, Walter Hugo Khouri):
(“Liberdade Vigiada e-ou Prisão Livre”):



“O filme começa com uma epígrafe de Spinoza que reflete a questão da Liberdade e seus aspectos vantajosos e-ou desvantajosos quando é manifestada (usufruída) em demasia, ou quando se manifesta e é usufruída em graus mínimos, precários. A frase não é bem esta, mas segue a que compilei e que expressa melhor o tom reflexivo do roteiro de Khouri: “A liberdade é uma virtude e, portanto, tudo que em alguém é sinal de impotência não pode ser atribuído à sua liberdade. (…). Quanto mais livre alguém é, menos podemos dizer que esse alguém pode não usar da razão e escolher o mal em vez do bem. ” Os casamentos do filme são vistos, sob a ótica dos protagonistas masculinos, ora pela perspectiva da ‘liberdade vigiada’ para Luciano, ora pela perspectiva da ‘prisão livre’ para Marcelo.
Dessa forma, a partir da epígrafe e por um acaso, o filme começa no momento em que Marcelo (Roberto Maya) –, por causa de um repentino problema dentário -, vai ao consultório do dentista Luciano (Serafim Gonzalez), amigos de longa data, mas que não se veem a alguns anos. A inveja sempre marcou a relação dos dois: Marcelo herdou a empresa e as propriedades do pai, rico desde sempre, já Luciano é um típico profissional liberal de classe média, que luta muito para manter tal condição social.  Porém, o grande investimento estético do filme dirigido e escrito por Walter Hugo Khouri não é a questão social, mas sim a carga dramática existencialista, em especial, dos dois protagonistas masculinos.
Khouri inicia sua obra fílmica demonstrando sinais de que algumas de suas personagens possuem conceitos artísticos e formação intelectual diferenciada, é o caso da esposa de Marcelo, Ana (Sandra Bréa). Ela é conformada em sua situação de esposa traída, que vive sua solidão conjugal e sua crise existencial, estudando obras das Artes Plásticas, gosto pelas Artes que aprendeu com o esposo, Ana sobretudo gosta das pinturas surrealistas, com apreço especial para o quadro, que é apresentado no início e ao fim do filme,  e representa duas figuras -, uma masculina, outra feminina -, abraçadas, entrelaçadas e encapuzadas, simbolizando um beijo de solidão entre-e-do par, um beijo que re-vela sugestivamente uma relação marcada por máscaras , ou sugere um relacionar-se em que o beijo entre os amantes é um entrelaçar-se e um beijar-se fragmentado e frio, corrompido, incomunicável na falta de contato dos lábios e por extensão metaforiza a falta de estima que marca aquele gesto que era para ser de afeição, mas se torna um beijar-se sem compreensão, solitário.
Essa metáfora sugere o que é de fato o casamento não só de Marcelo e Ana, mas também o de Luciano e Anita (Helena Ramos). Casamentos frustrados, marcados pelas infidelidades dos esposos -, ora estas traições se dão por mera diversão e prazer sexuais -, ora por uma espécie de desafio silenciado em palavras, mas manifesto em atos, de Marcelo e de Luciano, um para com outro de quem é o ‘mais forte’, ou de quem é o ‘mais garanhão’, dada a já citada inveja que nutrem um em relação ao outro.
Muitas vezes fica evidente a aniquilação que Marcelo quer propiciar a Luciano, não somente no âmbito sexual, mas moral e conjugal também. Isso vale, inclusive, de certa forma, de maneira inversa. Uma verdadeira relação de amizade marcada pela toxicidade, que é repassada para as esposas e para as amantes deles, de fato uma masculinidade tóxica muitas vezes, com cenas de assédio e abusos a algumas mulheres que são apresentadas no filme. Contudo, aqui trata-se de um ‘drama erótico’ e não de uma ‘pornochanchada’ pura e simples, nada em “Convite ao Prazer” é gratuito e banalizado, tudo tem um porquê nas questões existenciais levantadas pelo cineasta Walter Hugo Khouri não somente neste filme, mas em sua filmografia como um todo.
Em um determinado momento do filme é dito por uma personagem que “amor é amor e casamento é casamento”, refletindo sobre conceitos e sentimentos de liberdade ou a privação desta, amor ou des-amor, carinho ou não, entre outras questões relativas aos matrimônios e as relações amorosas em geral, mas que cai como uma luva para os casais do filme e vai ao encontro da epígrafe da obra de Khouri retirada dos escritos do pensador Spinoza.
A produção de “Convite ao Prazer”, lançada em 1980, foi realizada por Antonio Polo Galante, grande produtor de filmes dos anos 1970-1980 do Cinema Brasileiro, um verdadeiro ícone do nosso cinema, para o bem e para o mal, diga-se de passagem. No elenco tem-se ainda: Kate Lyra, Aldine Muller, Nicole Puzzi, Rossana Ghessa e Patrícia Scalvi, as atrizes-modelos que compõem a parte sensual e mais erótica deste drama de Walter Hugo Khouri, que tem uma fotografia condizente com a ambiência do filme, realizada por Antonio Meliande, outro grande nome do cinema brasileiro da época. E trilha sonora de Rogerio Duprat -, que dispensa maiores apresentações, pois se trata de um grande músico não somente de trilhas musicais para filmes, mas também compositor e realizador de diversos discos clássicos da história da nossa música -, em que o jazz se sobressai em grandes melodias para acompanhar algumas cenas sexuais, conferindo sensualidade a muitas delas, e às vezes até sentimento de dor.
Já que, amor e-ou ódio (inveja), erotismo, prazer e-ou dor, sofrimento (aniquilação) são expressos simbolicamente, em grau maior ou menor, até no título do livro de Artes Plásticas lido por Marcelo, ‘Erotismo e Morte na(s) Arte(s)...’, que é (mais) uma forma de ler o filme, até por tudo que foi dito nesta crítica ora realizada. ”

segunda-feira, 8 de junho de 2020

(Imagens, Reino Unido, 1972, Robert Altman): (O Perigoso Terror: A Mente):


(Imagens, Reino Unido, 1972, Robert Altman):
(O Perigoso Terror: A Mente):   

Images (1972)

“Imagens é mais um ótimo filme do mestre da Sétima Arte, Robert Altman. Produzido no Reino Unido e lançado em 1972, com roteiro original do próprio cineasta, é mais uma obra ímpar da década de 1970 deste realizador, uma década mágica contemplada com diversos grandes filmes dirigidos por ele, por exemplo basta citar: M.A.S.H. (1970); Voar é Com os Pássaros (1970); Um Perigoso Adeus (1973); Nashville (1975); Oeste Selvagem (1976); Três Mulheres (1977), entre outros.    
Robert Altman teve uma carreira prolífica como cineasta, com um total de 90 créditos como diretor (segundo fontes do site IMDb), nem sempre de bons filmes, alguns muito contestados pelo público e pela crítica especializada, na maioria das vezes suas obras não foram sucessos de bilheteria, porém seus filmes estão resistindo muito bem a passagem do tempo, alguns bastante atuais e relevantes ainda, como mostrou a retrospectiva outrora feita pelos Centros Culturais do  Banco do Brasil, no ano de 2008, gerando intenso debate entre os frequentadores das sessões à época, um ano e meio após seu falecimento.
 Altman iniciou no ano de 1951 com a produção de um documentário em curta-metragem, seguindo por diversos outros curtas, entre filmes de ficção e documentário, além de dirigir episódios de séries de TV, entre segmentos do seriado de Alfred Hitchcock Apresenta e do Bonanza, também dirigindo filme televisivos. Seu primeiro longa-metragem é de 1957, Os Delinquentes. Dirigiu mais dois longas-metragens nos anos 1960, No Assombroso Mundo da Lua (1967) e Uma Mulher Diferente (1969). Sua consagração, enfim, veio em 1970 com o filme de guerra amalucado e politizado, antibelicista M.A.S.H., que inclusive originou um seriado de TV.
 Os anos 1980 foram muito irregulares para o cineasta estadunidense nascido em Kansas City, no ano de 1925, e falecido aos 81 anos de idade em 20 de novembro de 2006. Mesmo assim produziu filmes interessantes como James Dean, o Mito Sobrevive (1982), A Honra Secreta (1984) e Louco de Amor (1985). Seu grande retorno, porém, se deu na década seguinte com os filmes O Jogador e Short Cuts – Cenas da Vida, respectivamente lançados em 1992 e 1993. Seu último grande filme foi Assassinato em Gosford Park, de 2001, em que se inspira no filme de 1939, A Regra do Jogo, de Jean Renoir, para criticar as convenções e hipocrisias sociais das classes abastardas, mas também das desprovidas de riquezas, na eterna luta de classes. Seu último suspiro se deu no seu derradeiro ano de vida, em 2006, com o nostálgico, A Última Noite.
Depois deste sucinto panorama da magnífica obra de Robert Altman, voltemos a nos referir ao filme Imagens. Este é protagonizado por Susannah York que interpreta uma escritora de livros infantis, Cathryn -, a própria York escrevia à época das filmagens um livro voltado para aquele público, À Procura de Unicórnios -, que teve trechos lidos pela personagem no filme, como forma de sustentar o roteiro de Altman. E, por sinal, dando muito sentido as questões desenvolvidas no filme. Outra questão extra filmagem é que a atriz estava grávida à época e no início recusou o convite para realizar o filme, mas Altman incorporou este fato também ao roteiro.
Cathryn é uma personagem desconfiada da fidelidade do marido Hugh (Rene Auberjonois), ela possui distúrbios psiquiátricos esquizofrênicos; sua mente fragmenta-se em delírios e ela não distingue em muitos momentos o que é realidade e o que é fantasia. Cada vez mais vai se se emaranhando em ficções criadas por ela, o seu eu se divide em uma Cathryn do ‘passado’, ‘má’, ‘obscura’ e a Cathryn do ‘presente’, ‘boa’, ‘verdadeira’. Porém, esta maneira dicotômica de apresentar sua personagem é apenas uma tentativa momentânea de explicar sua personalidade dividida, pois esta divisão, tal qual o espelho do quarto, em um determinado momento, do filme reflete até três Cathyrns.
Cathryn é assombrada por si mesma, pelo fantasma de um amante Rene (Marcel Bozzuffi) e um amigo do marido que a assedia continuamente Marcel (Hugh Millais) e até pela suposta infidelidade do marido. Assim como a personagem de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (1965), de Roman Polanski, a personagem de Susannah York é aparentemente perturbada por traumas mnemônicos, que não são revelados ao espectador, mas são talvez uma das explicações para sua repulsão às três personagens masculinas do filme. Porém o maior medo de Cathryn, seu grande pesadelo e sua maior sombra a pairar sobre ela é ela mesma; os seus recônditos da mente e da alma a perturbá-la de uma maneira quase que perpétua.
A trilha sonora assustadora de John Williams, acentuada pelos ruídos produzidos por Stomu Yamashta, com a adição da paleta sombria do diretor de fotografia Vilmos Zsigmond conferem à obra status de um verdadeiro pesadelo que se passa pela mente caótica de Cathryn. Já que não é necessário nenhum filme de terror com cenas explícitas de violência ou monstros tenebrosos para nos meter medo; nós somos nossos maiores fantasmas, o nosso maior pesadelo somos nós mesmos. Cathryn e Imagens nos sugere muito bem tal aspecto da psicologia humana. 
Uma questão interessante nesta fragmentação da protagonista é que todas as personagens têm o primeiro nome que se refere ao nome de um ator do filme: Hugh é o marido interpretado por Rene Auberjonois, Rene é o falecido amante interpretado por Marcel Bozzuffi, Marcel é o vizinho e amigo do casal vivido pelo ator Hugh Millais. O que reflete a fragmentação da realidade e da mente esquizofrênica de Cathryn. E, ainda tem a jovem Sussanah vivida por Cathryn Harrison, o que acentua ainda mais a questão e a circularidade do roteiro de Altman, a mostrar que a deterioração, as sombras que envolvem a mente da protagonista se perpetuam no conflito desequilibrado entre realidade e imaginação.     
Algumas cenas são inesquecíveis neste filme de Robert Altman, por exemplo: os telefones, quatro ao todo, em um apartamento, o que também é sintomático para mostrar a fragmentação da personalidade da personagem de York, além de início já revelar suas dúvidas quanto às traições do esposo.
E outra cena que será devolvida durante por parte do filme é a do quebra-cabeça, que é a própria mente se revelando e se esfacelando de Cathryn, que está à procura de escrever seu livro para crianças, com o título já por si só bastante imaginativo, À Procura de Unicórnios, e, principalmente, Cathryn está à procura de si mesma, como todos nós.”






Prêmios:
Nomeado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Dramática: John Williams (1973);
Nomeado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro – 1973;  
Melhor Atriz no Festival de Cannes – 1972 – Susannah York;
Concorreu à Palma de Ouro – 1972 – Festival de Cannes;
Indicado ao BAFTA de Melhor Fotografia – Vilmos Zsigmond – 1973;
Entre outras indicações.

domingo, 3 de maio de 2020

O Bebê Santo de Mâcon (Peter Greenaway, HOL, FRA, GBR, ALE, 1993):


                                                            The Baby of Mâcon (1993)



“O Bebê Santo de Mâcon é mais uma extravagância fílmica de Peter Greenaway. Mas como sempre o cineasta britânico nos tem muito a mostrar, seja no âmbito estético, seja no âmbito temático.
No que tange ao primeiro quesito, o filme é deslumbrante em suas cores berrantes, em especial, o uso do vermelho, que na paleta do diretor de fotografia Sacha Vierny, significa justamente a aberração que é a sociedade retratada na obra. Além de uma direção primorosa a conduzir o espectador pelos suntuosos cenários (assinados por Bavo Defurne), que são aproveitados com maestria por Greenaway, para nos apresentar a história, de maneira teatral: até parece que estamos dentro de um teatro, aparentemente apenas, pois algumas cenas foram filmadas na Igreja Velha de Amsterdã e outras em estúdio; e tem-se até direito a uma “plateia” a presenciar as ações das personagens principais, aquela plateia devidamente caracterizada por um figurino rico e deslumbrante, assim como o de todas as personagens, figurino assinado por Ellen Lens e Dien van Straalen .
Algumas personagens possuem falas que expressam a consciência de ‘ilusão de realidade’ e, portanto, de ‘ilusão ficcional’, assim sendo tem-se uma espécie de ‘metafilme’, ou ‘meta-teatro-cinema’. O que é ressaltado pelas vidas humanas (personagens) vividas como que em uma espécie de ‘teatro de ilusões’, e também pelas ‘máscaras sociais’, que marcam toda a sociedade e, portanto, toda a humanidade, no desenrolar infinito dos tempos. Ainda no aspecto técnico, o filme conta com uma excelente edição assinada por Chris Wyatt, que nos ajuda a compreender melhor as questões suscitadas pelo roteiro.
No que se refere ao segundo aspecto, que é justamente a questão temática, tem-se o roteiro assinado pelo próprio cineasta, que parte de uma premissa básica e que em outras mãos se tornaria um lugar-comum: a corrupção de toda uma sociedade. Tem-se de partida, um prólogo ditado pela ‘Fome’, que já nos alerta para o que filme mostrará em 2h de duração e em três atos, e mais um epílogo-circular, que se liga ao já narrado no prólogo pela mesma ‘Fome’: uma sociedade corrompida em todos os seus segmentos, nobreza, clero e plebe.
Uma sociedade marcada pela miséria, aberrações, enfermidades e iniquidades de todos os tipos. Uma terra marcada pela esterilidade e pela infertilidade não em produzir novos seres\rebentos, mas em gerar seres não corruptos e\ou corrompidos. Parte de supostos milagres perpetrados por um bebê santo, filho de uma virgem, porém tudo logo é percebido e verificado como uma grande farsa, que leva a mais e mais tragédias, demonstrando a corrupção do homem e da sociedade, que não é evidenciada pelo ‘é’, contudo, pelo ‘sendo’, ou melhor seria pelo ‘é’ e pelo ‘sendo’ ao mesmo tempo, a eterna dualidade dinâmica em devir. ”

terça-feira, 21 de abril de 2020

(O Lobo do Mar, Jack London, 1904):


(O Lobo do Mar, Jack London, 1904):
“É melhor reinar no inferno do que servir no céu. ”
(Paraíso Perdido, Milton).


“O Lobo do Mar, publicado originalmente no ano de 1904, é mais do que um romance de aventura, em alguns momentos de extrema habilidade do romancista Jack London, desfilam na obra páginas de aguçada análise psicológica, em que são estudadas as condições humanas num microcosmos de embrutecimento das relações humanas.
Ghost é uma embarcação náutica de caça às focas, que desperta receio e medo àqueles que ouvem falar nela e em seu tirânico capitão Wolf Larsen; os que já fazem parte da tripulação vivem em uma ambiência de pavor e constante atrito nas relações com os companheiros de escuma, porém nunca levantam a voz para as atrocidades cometidas por Larsen. Até o momento do resgate de um náufrago, Humphrey van Weyden, um jovem intelectual, com pretensões a escritor. A partir deste momento, aos poucos, em momentos de crescente tensão psicológica, as coisas começam a tomar outros rumos.
O confronto entre as duas personagens principais é o melhor do livro. Os antagonistas Wolf Larsen e van Weyden iniciam um verdadeiro duelo em tentar convencer o outro do que falta ao outro, ou do que está escondido no outro, buscando que o outro revele a outra face de sua personalidade, até então adormecida.
Logo no primeiro momento em que um marinheiro está sendo maltratado e este estando à beira da morte, Humphrey percebe que o capitão da escuna se vale dos abusos físicos contra os seus comandados como forma de manter o controle de todos e de todas as situações em sua escuna. Larsen em nenhum momento perde o controle da situação, sua força física é enorme e entre outros atributos de caráter, seu poder de persuasão sobre os outros é gigantesco, evitando tentativas de confrontação a seu poder e nem um motim, por ora é vislumbrado.
Larsen apesar de tudo isso é uma autodidata formando intelectualmente na solidão de suas leituras de Darwin, Nietzsche, Spencer, Johnson, Poe, Shakespeare, Milton, entre outros clássicos científicos, filosóficos e literários ingleses e estadunidenses, leituras, contudo deformadas no embrutecimento e na violência cotidiana que vivenciou e vive no seu microcosmos, a escuna de caça à focas, Ghost.
Um verdadeiro lobo de seus homens, física e psicologicamente os maltrata e os domina, quer ser um demiurgo de seu microuniverso, o Diabo mandando em seu reino, daí a leitura de Milton ser tão cara para Larsen, para ele a lei do mais forte é o que vale. Até que a partir do resgate de Humphrey, a tomada de consciência de Wolf, aos poucos e de maneira trágica que seja, vai acontecendo, pois ele confrontado com os ideais humanitários e intelectuais do jovem burguês van Weyden, percebe outro lado de sua personalidade até então não manifestada.
Humphrey contudo aos poucos transforma-se em outro, o Hump da escuna Ghost, que aos poucos percebe que nem só de leituras, de estudos e da tentativa em redigir seu almejado livro, se resume a vida. Hump torna-se também forte fisicamente e capaz de proezas de coragem e ousadia, transforma-se também em um ser pragmático, cético, violento, às vezes até com rompantes para cometer o assassínio. Surge, ainda uma outra personagem, Maud Brewster, uma jovem náufraga, resgatada também pela escuna Ghost e que confere novas motivações e perspectivas à obra, torna-se interesse amoroso de Hump, e interesse intelectual deste e também de Wolf Larsen. A tensão é aumentada cada vez mais e irrompe em fatos que ninguém pode controlar humanamente, e nem deliberadamente contornar no primeiro momento em que surgiram.  
O romance é filosófico no aspecto do embate entre dois homens tão diferentes e tão semelhantes em suas idiossincrasias, os dois antagonistas aos poucos tornam-se complementares um ao outro, os dois têm bondade e maldade, ódio e simpatia, e todos os outros opostos da natureza humana, que se complementam dinamicamente. Dessa forma ao fim e ao cabo do romance tem-se a ideia do sentimento de compaixão, mesmo em meio à tragédia final. Contudo o trágico é simultaneamente o início esperançoso de duas vidas unidas pelo amor, na tessitura do próprio romance, O Lobo do Mar.

(Jack London). 

Trechos do romance na tradução de Daniel Galera:

"Acredito que a vida é uma confusão - ele respondeu de imediato. - É como um levedo, um fermento, uma coisa que se move e pode continuar se movendo por um minuto, uma hora, um ano ou cem anos, mas que no fim vai parar de se mover. Os grandes devoram os pequenos para que possam seguir se movendo, os fortes devoram os fracos para manter sua força. E quem tem sorte devora mais e se move por mais tempo. Isso é tudo. (...)"

"- O homem é inconstante como os ventos e as correntes marítimas. Impossível adivinhar o que ele vai fazer em seguida. Quando você começa a achar que o conhece, quando começa a vê-lo com bons olhos e põe as velas pra vento a favor, ele dá uma volta na sua frente, entra rasgando e arrebenta tudo."

"- Ele nunca filosofou sobre a vida - acrescentei.
- Não - respondeu Wolf Larsen, com um indescritível ar de tristeza. - E ele é mais feliz assim, deixando a vida em paz. Está ocupado demais vivendo a vida para pensar nela. O meu erro foi ter um dia aberto um livro."

"(...) Apesar de minha esperança e fé na humanidade terem conseguido sobreviver às críticas demolidoras de Wolf Larsen, ele tinha operado algumas transformações menores em minha pessoa. Tinha aberto para mim o mundo real, que sempre me causara receio e sobre o qual eu pouco sabia. Eu estava aprendendo a observar mais de perto a maneira como a vida era vivida, a reconhecer que existia o que se pode chamar de fatos do mundo, a emergir do reino da mente e das ideias e a atribuir certos valores às fases concretas e objetivas da existência."

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
LONDON, Jack. O lobo do mar. Tradução: Daniel Galera. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

(Pânico no Ano Zero, Ray Milland, EUA, 1962): (“Não deve haver um fim, mas um (novo) começo”):


(Pânico no Ano Zero, Ray Milland, EUA, 1962):
(“Não deve haver um fim, mas um (novo) começo”):

Frankie Avalon, Ray Milland, Richard Bakalyan, Neil Burstyn, Joan Freeman, Jean Hagen, Rex Holman, and Mary Mitchel in Panic in Year Zero (1962)

“Pânico no Ano Zero é dirigido e estrelado pelo astro Ray Milland, lançado em 1962, no auge da Guerra Fria entre EUA e URSS, trata-se de um dos primeiros filmes pós-apocalípticos a questionar como seria a Humanidade nos primeiros dias, após a queda da primeira bomba atômica.
Sem se preocupar com mirabolantes efeitos especiais, até por se tratar de um filme-B produzido pela companhia cinematográfica comandada por Roger Corman, e sem abordar o roteiro pela perspectiva governamental ou dos exércitos das grandes potências, a história tem como ponto de vista uma pequena e tradicional família de Los Angeles, que tinha ao início do filme um simples propósito de acampar.
Ao sair de LA, a família chefiada por Harry (Milland) se depara no retrovisor do carro com que parece ser um raio, a pergunta que vem é simples: será que vai chover? Até o momento posterior em que surge o tão temido cogumelo nuclear, agora resta lutar pela sobrevivência no caos que irrompe. Nos primeiros momentos, após o apocalipse atômico, a Humanidade se desespera, buscando soluções imediatistas, instintivas de sobrevivência, tais como estocar mantimentos, saquear os outros, entre outras atitudes não-civilizadas.
Outro questionamento que surge é o do isolamento social total, Harry busca se isolar com sua esposa e seus dois jovens filhos, para assim proteger sua família, dos saques que surgem, dos assassinatos e da desordem que imperam a partir de então, em uma área de camping distante e pouco movimentada. Em uma metáfora interessante se deparam com pinturas rupestres que remontam à Idade Antiga da civilização. Pois não seriam os momentos que a Humanidade está vivenciando nesta altura do filme, senão os (novos) primórdios da (nova) civilização, após a hecatombe atômica? Ou seja, a ideia não de um fim, mas de um (novo) começo? 
Destaque para mais uma atuação segura de Milland, premiado como melhor ator por Farrapo Humano, de 1945, de Billy Wilder, e destaque no hitchcockiano Disque M para Matar, 1954. O astro hollywoodiano sempre interpretou personagens decadentes e amorais, mas a partir dos anos 1960 começou a interpretar pais de família dedicados em proteger a moral e a segurança de seus familiares, é o caso deste filme em análise, em que Ray Milland vive Harry um pai obcecado em proteger os seus parentes próximos, mesmo que para isso tome atitudes que condena e odeia, que causa nele um drama de consciência.
Este drama de consciência é ampliado por sua esposa Ann, que é uma personagem que faz um contraponto às atitudes de Harry, é uma espécie de voz que tenta conscientizar o esposo para ter mais altruísmo para com o restante da sociedade e não apenas para com seus familiares mais próximos.
Pânico no Ano Zero conta ainda com uma boa trilha sonora jazzística assinada por Les Baxter, que confere dinamismo ao filme em alguns momentos de tensão do roteiro escrito por Jay Simms e John Morton, baseado em dois contos de Ward Moore. 
As reflexões se somam em um filme-B que nos surpreende positivamente. Um thriller e clássico filme de ficção-científica, que fez muito sentido para seus espectadores nos anos 1960 e ainda nos faz hoje, nesta releitura em tempos difíceis da Pandemia da Covid-19, em 2020, pois o que questionamos atualmente senão: como retornar e retomar à normalidade, após debelada a Pandemia?”

sábado, 4 de abril de 2020

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

(O Leito da Virgem, França, 1970, Philippe Garrel):

Le lit de la vierge (1970)

O Leito da Virgem não é uma história bíblica do Novo Testamento, nem uma obra sobre Maria, Jesus ou Deus, mas um filme de Philippe Garrel sobre as origens, o tudo e o nada do ser humano, o começo e o fim da Humanidade, ou seja, o meio que é vida antes da morte que é passagem para o Nada onde Tudo se inicia...
Esta circularidade é perceptível quando o filme de Garrel começa com a cena em que Jesus nasce no leito de Maria numa ponte sobre o mar, ele já nasce assustado e horrorizado perante o caos da Humanidade envolta em guerras, destruição, ruínas e crimes, buscando ouvir a voz de seu pai, Deus, a qual ele não consegue ouvir. Maria tenta acalmá-lo e o manda em sua missão: redimir a humanidade. Porém, será que ela o ouvirá? Ou ele não está pronto para ser ouvido? Pois, o que se percebe é um movimento duplo: a Humanidade está perdida e Jesus o está tão perdido quanto, em sua insegurança, imaturidade, em seu abandono, em sua solidão, em sua depressão.
Maria (Zouzou) e Maria Madalena (também interpretada por Zouzou) são faces da mesma mulher, a mãe-virgem e a amante-prostituta -, (talvez uma proximidade com o cineasta Jean Eustache, amigo de Garrel e uma das influências para seus filmes, guardando as devidas peculiaridades de cada diretor e de cada obra, cita-se A Mãe e A Puta, dirigida por Eustache, em 1973, que tanto em aspectos temáticos quanto em aspectos técnicos, tem similaridades e particularidades com este filme garreliano e outros de sua lavra) -, faces da mesma moeda, portanto duplos do “Bem-e-do-Mal” e do Divino-e-do-Profano”.
Filmado em um preto-e-branco-scope terrivelmente e assombrosamente solitário e angustiante O Leito da Virgem sugere o caos humano, as ruínas das relações interpessoais, a alteridade em frangalhos diante e meio a crimes e guerras de todos os tipos, espalhadas junto a todos os tipos de males, quando da cena em que a Caixa de Pandora é aberta por Maria Madalena, ou será que foi aberta por Maria?
Outra cena emblemática dá-se quando Maria Madelena, ou talvez Maria, está grávida e Jesus se abandona nas profundezas do mar revolto, abandonado desta forma, sua amante ou mãe, ou as duas, e seu filho, da mesma forma que fora abandonado por seu pai, Deus. Dessa maneira o filme é circular pois começa e termia, para iniciar de novo com: nascimento, morte, abandono...
Mítico também é o espaço e o tempo em que ocorrem as ações um tanto quanto episódicas da obra garrelina, espaço e tempo indeterminados, dando um caráter parabólico, porém pessimista e solitário da Humanidade, um teor atemporal, universal destes seres humanos tão horríveis em sua beleza criadora e destrutiva ao mesmo tempo. O leito do nascimento é também o leito da morte...
A cruz de Jesus e também dos cineastas, dos artistas em geral, é saber da incompreensão de seus atos e das suas obras, o abandono e a solidão, não são somente de Jesus, porém de Garrel e de todos os artistas por consequência, e, enfim, de todos nós-humanos. ”

segunda-feira, 23 de março de 2020

(As Amorosas, Walter Hugo Khouri, Brasil, 1968):


(As Amorosas, Walter Hugo Khouri, Brasil, 1968):


“Do Nada viemos para o Nada retornaremos. Desta maneira circular dá-se também roteiro do filme de Walter Hugo Khouri, “As Amorosas”, lançado em 1968.  O roteiro escrito pelo próprio cineasta mostra a travessia de Marcelo (Paulo José) que vive uma existência em crise consigo, com os outros e coma sociedade de uma maneira geral. O filme começa como protagonista à deriva numa mata, à deriva ele percorre sua trajetória a obra toda, e ao fim e ao cabo, à deriva permanecerá como todos os seres humanos, pois a maior revelação talvez que o espectador tenha é que nossas vidas são vividas em devir. O eterno retorno ao ventre materno, a posição fetal onde o Tudo e O Nada começa é também o fim do Tudo e do Nada, que na verdade é apenas o Meio.
 Marcelo se relaciona em frangalhos com sua irmã Lena (Lilian Lemmertz), com sua namorada Marta (Jacqueline Myrna) e com sua amante Ana (Anecy Rocha). Porém, é sua vida pessoal, psicológica e existencial que está em frangalhos e em crise, por isso talvez ele tenha uma perspectiva niilista em relação à sociedade e, principalmente, para consigo, já que suas tentativas de tomar atitude são sempre tão frustradas quanto sua própria existência, sua força de vontade se esgota quanto apenas esboça uma formulação de tentar algo em sua jornada. Marcelo cursa a faculdade de Cinema, é revisor, tradutor e crítico de Artes, mas não desenvolve nada, nulifica-se sempre em si mesmo e em suas relações. Por exemplo, ao dar um depoimento para um documentário ele testemunha que não vislumbra e não deseja nada. Talvez aqui resida sua maior descoberta: ele auto-descobre inapto para o viver. ”

terça-feira, 17 de março de 2020

(O Exército das Sombras, FRA-ITA, 1969)


(O Exército das Sombras, FRA-ITA, 1969):

O Exército das Sombras é uma tensa, opressiva e claustrofóbica obra de Jean-Pierre Melville, produção franco-italiana, lançada em 1969, sobre a Resistência Francesa aos nazistas alemães que ocupavam a França durante a Segunda Guerra Mundial. O filme enfoca o período de quatro meses decorridos no final do ano de 1942 até o início de 1943, que tem como protagonistas um pequeno grupo da Resistência Francesa, que tem como um dos líderes Philippe Gerbier (Lino Ventura), um engenheiro civil, que de forma circunspecta, de poucas palavras, cético e fatalista junto aos seus camaradas enfrentam os nazistas que ocupam as cidades francesas.
Melville baseando-se no livro de Joseph Kessel ressalta no filme como o ‘Exército das Sombras’ agia, além de revelar a solidão, o medo e as angústias diárias dos seus membros, sem mirabolantes explosões típicas de muitos filmes sobre a Segunda Grande Guerra, e sem violência explícita, pelo contrário se faz valer de um brilhante roteiro para desvelar a violência ou melhor a tensão psicológica que os protagonistas do filme vivenciam e experimentam. Somada à uma fotografia em cores sombrias, frias e com aspecto que nos sugere opressão, claustrofobia e até o medo que as pessoas vivenciaram durante a Guerra. A direção da excelente fotografia é assinada por Pierre Lhomme e Walter Wottitz.
 Destaques também para as atuações de Ventura como o frio, solitário, fatalista e cético Gerbier, e a interpretação de Simone Signoret como a impactante, forte e obstinada Mathilde.
Uma das questões mais impressionantes do filme é a pressão ininterrupta do medo de errar, a tensão e a falta de diversão dos membros da Resistência. O filme é trágico, sem ilusões, nos faz perceber que Guerra é sempre triste, solitária e trágica. ”

segunda-feira, 16 de março de 2020

(XINGU-TERRA, Maurren Bisilliat, Brasil, 1981)


(XINGU-TERRA, Maurren Bisilliat, Brasil, 1981):

“XINGU-TERRA é um documentário antropológico e etnográfico sobre o cotidiano da aldeia indígena Mehinaku do Alto Xingu extremamente valioso, lançado em 1981, dirigido pela fotógrafa Maureen Bisilliat, com narração de Orlando Villas-Boas.
Mostra desde a plantação e a colheita da mandioca, passando pela pesca, pela preparação da tinta de urucum, explicando a modelagem da cerâmica da tribo. Ressalta como se dar a divisão das tarefas entre homens e mulheres; que a terra é coletiva; que o chefe é visto não como uma pessoa que dar ordenas, mas um conselheiro; o relacionamento amistoso entre pais e filhos, baseado no diálogo que os pais sempre têm com os filhos pautado pela igualdade e respeito; apresenta o sistema de valores que regem e mantém o equilíbrio entre o homem, a aldeia e a natureza, além de mostrar suscintamente alguns aspectos da cosmogonia da tribo. São apresentados e reproduzidos os rituais que relembram os tempos matriarcais, desde os preparativos, o cerimonial de casamento para o homem e a mulher, o tempo de reclusão dos jovens indígenas no tempo da puberdade, fazendo a transição da infância para a fase adulta da vida, a ritualística que que se procede no intercâmbio de uma aldeia com outra, culminado com a grande celebração da Festa do Yamuricumã. (Fonte: Guia de Filmes, extraído do site da Cinemateca Brasileira).
Importante ressaltar a sabedoria deste povo originário por exemplo no que se refere ao Tempo, que na verdade para ele só existe o Presente, o Tempo da Vida e do Viver. Além de uma noção clara de que a existência do homem se dar em devir, em ciclos em consórcio com a Natureza, fauna e flora, e com os espíritos ancestrais e dos deuses. Ressalte-se também a harmonia das suas relações sem julgar os outros membros da tribo.
Filme importantíssimo para ser redescoberto nos dias de hoje, quando no Brasil tenta-se vender uma ideia falsa de que todos os povos originários e indígenas devem obrigatoriamente se integrar à sociedade regida pelo homem branco. Não o ouvindo e entendendo sua singularidade e nem se importando com sua humanidade e menos ainda tendo relações de altruísmo e alteridade para com nossos povos originários. É dos indígenas a decisão de ou se integrar total ou parcialmente à sociedade é quem manda é o homem branco, ou permanece até em alguns casos totalmente isolados, como de fato e de direito existem ainda alguns povos no Brasil neste estado e estágio civilizatório. ”

terça-feira, 10 de março de 2020

Voar é com os Pássaros (Robert Altman, EUA, 1970):


Voar é com os Pássaros (Robert Altman, EUA, 1970):

Brewster McCloud (1970)

“Robert Altman realiza aqui uma das suas maiores excentricidades fílmicas e um de seus melhores trabalhos para o cinema, justamente nos anos 1970, quando Hollywood passou a contar com o surgimento de novos cineastas a realizar produções de baixo orçamento e obras maravilhosas, ousadas e inovadoras que são clássicas e-ou cults até hoje. É o caso de Voar é com os Pássaros, lançado em 1970, no mesmo ano de outro clássico dirigido por Altman, M*A*S*H.
Em Voar é com os Pássaros, o cineasta nos apresenta uma história de fantasia amalucada povoada por personagens excêntricos, que beiram à bizarrice. Porém, suas ações e atos servem como forma de Altman baseado no roteiro de Doran William Cannon, criticar e ironizar sarcasticamente à sociedade estadunidense da década de 1970 e, mais ainda criticar as amarras sociais às quais qualquer cidadão está submetido, em qualquer sociedade, em quaisquer tempos e em qualquer país. Ou seja, para o cineasta Robert Altman ninguém é completamente livre na Humanidade, talvez somente a liberdade plena caiba aos pássaros.
 Assim como em M*A*S*H, Voar é com os Pássaros tem uma espécie de narrador, que cria um elo entre o espectador e as personagens, neste filme é um amalucado e excêntrico professor e ornitólogo, que parece nos afirmar que de fato somente os pássaros são livres em plenitude. O filme, dessa forma, escancara ironicamente as mazelas sociais e políticas dos Estados Unidos da América, a suposta Terra da Liberdade e das Oportunidades, mostrando a hipocrisia da polícia nas diversas cenas em que esta é ridicularizada, juntamente com o próprio exército estadunidense sendo sempre ironizado.
Todas estas instituições da sociedade norte-americana são vistas pelo roteiro e pelo diretor Altman como excrescências de um sistema social opressor, ridículo e mais amalucado que as personagens bizarras do filme.
O protagonista Brewster McCloud (Bud Cort) tem uma ambição e um sonho na vida, voar com um par de asas que ele mesmo construiu. Ele é um rapaz solitário, insociável, introvertido e, quando, sai às ruas sempre é humilhado e vítima da sociedade que o repele pelo fato de ser “diferente” e “esquisitão”. Ele é perseguido pelos intolerantes e pela violência das instituições sociais norte-americanas, Brewster serve como uma personagem, da qual Robert Altman se utiliza para mostrar metaforicamente a hipocrisia social não só dos EUA, porém de uma maneira mais geral do ser humano ante o diferente, não demonstrando nenhuma espécie de alteridade para com o outro-Eu.
 Dessa maneira McCloud não seria um ser-humano, contudo, talvez um “homem-pássaro’, preso, porém, em sua forma humana, buscando uma forma de sair dessa condição tão coercitiva e humilhante de viver em sociedade, sem liberdade plena.
Enfim, Altman realiza um grande filme, uma pequena obra-prima, que merece ser redescoberta em sua extensa filmografia, às vezes preenchida por filmes irregulares. Em Voar é com os Pássaros, temos um filme marcado por humor bizarro, situações inusitadas e esdrúxulas, que servem para metaforicamente dramatizar o absurdo das amarras sociais e da falta de liberdade plena para qualquer ser humano que vive na sociedade violenta e agressiva da qual todos fazem parte. Um grande exercício fílmico, dramático e até filosófico sobre a condição e a natureza humana quando posta em confronto com o social que nos tolhe a plenitude da liberdade individual. ” 

sábado, 29 de fevereiro de 2020

(Possuídas Pelo Pecado, Jean Garret, Brasil, 1976)


(Possuídas Pelo Pecado, Jean Garret, Brasil, 1976):

Possuidas Pelo Pecado (1976)

“Possuídas pelo Pecado é um filme de Jean Garret que além de diretor escreveu também o roteiro ao lado de Ody Fraga, assim como fizeram no thriller Excitação, também lançado em 1976. Em Possuídas pelo Pecado, tem-se uma história sobre a podridão dos capitalistas, como o Dr. Leme (Benjamin Cattan) que é um burguês alcoólatra, abusivo e dominador, que gosta de promover festas regadas a álcool e muito sexo. Inclusive a primeira cena é elucidativa para o que veremos em tela, a câmera percorre vários cômodos da sua chácara, onde está ocorrendo uma orgia, a cena é até bem filmada e divertida, ao mostrar o desbunde de várias situações engraçadas.
O Dr. Leme é casado com Raquel (Meyre Vieira), porém separados e vivendo em casas diferentes, já que ele a culpa por ela não ter dado filhos a ele para que fossem seus herdeiros, no legado de sua imensa fortuna, já ela o acusa de ser alcoólatra e só dar importância, desde o início do casamento às bebidas e de sempre a ter traído. Ela tem um caso amoroso com o fiel motorista do Dr. Leme, André (David Cardoso), sem aquele o saber. Os dois amantes têm o plano de forjar um acidente para o capitalista e assim ficarem com a herança dele destinada a Raquel.
    Na chácara o sórdido Leme humilha, usa e maltrata duas secretárias-amantes, Jussara (Zilda Sedenho) e a também alcoólatra Anita (Helena Ramos, em uma excelente atuação), que é abusada constantemente pelo Dr. Leme, inclusive em uma das cenas mais interessantes do filme é humilhada num chiqueiro, que lembrou Pocilga, de Pasolini, em retratar a sordidez e perversidade dos burgueses quanto os que estão abaixo nas hierarquias sociais. Por isso, uma reflexão importante no filme de Garret é a dança das cadeiras na sociedade, ora uns em uma posição mais privilegiada, ora outros em uma posição desfavorável.
Têm-se diálogos interessantes no roteiro de Garret e Fraga, por exemplo, quando, em outras palavras, o Dr. Leme em um diálogo é chamado de monstro por uma das suas secretárias e ele afirma sou mesmo, porém o dinheiro me dar esse direito me dar esse direito.  Em outro diálogo Jussara fala ao pintor Marcelo (Agnaldo Rayol) que pode ser uma mau-caráter, porém prefere o ser a viver em uma situação pior socialmente da que vive. Estes diálogos servem como ironia dos roteiristas às relações perversas que ocorrem na sociedade capitalista.
No filme ainda temos duas personagens importantes para a trama, Dorinha (Nicole Puzzi, em início de carreira), como a filha ambiciosa e desinibida da empregada Isaura (Ruthinea de Moraes).
Enfim, o filme retrata e ressalta realisticamente e até com boas doses de ironia a perversidade e a corruptibilidade que existem nas relações humanas em uma sociedade capitalista. ”

domingo, 23 de fevereiro de 2020

(A Mãe e a Puta, França, 1973, Jean Eustache): (A natureza humana desnuda-se)


(A Mãe e a Puta, França, 1973, Jean Eustache):
(A natureza humana desnuda-se):


“A Mãe e a Puta é um filme composto essencialmente por diálogos, mas não de maneira excessiva, é dialogado como é a vida -, ou como esta deveria ser -, Jean Eustache não apresenta estripulias em termos de efeitos especiais, por exemplo, porém presenteia os espectadores com roteiro e diálogos extremamente inteligentes, perspicazes e demasiadamente humanos.
O filme em uma de suas reflexões contempla as transições amorosas: o relacionamento de Alexandre (Jean-Pierre Léaud) e Gilberte (Isabelle Weingarten) já deteriorado; a relação de Alexandre e Marie (Bernadette Lafont), sua companheira, este casal que supostamente tem um relacionamento aberto; e, o início da relação amorosa entre Alexandre e Veronika (Françoise Lebrun). Ele é um chauvinista, ciumento, de tamanha intransigência em seus pensamentos e com falas às vezes grandiloquentes, em que demonstra cinismo, crueldade, melancolia e desesperança ante a Paris, França, do Pós-68, em um certo confronto entre o Idealismo do final da década de 1960 e a constatação do início da década seguinte de que as coisas não mudaram tanto assim para a sociedade em geral, talvez aqui valha a citação irônica que a personagem de Alexandre faz em referência ao filme de Elio Petri, A Classe Operária Vai ao Paraíso. 
Em uma cena interessantíssima, a personagem de Léaud está ouvindo um disco de Edith Piaf e folheando um volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, neste romance temos uma reflexão sobre a passagem do Tempo e questões relativas a memória. Nesta cena do filme de Eustache há um paralelo entre a obra literária e a canção cantada por Piaf no que se refere a questão da “memória involuntária” e dos amores já vividos por Alexandre, deixando Gilberte para o passado e passando a se relacionar com Veronika.
Alexandre vive de maneira ociosa pelos cafés parisienses sempre a flertar com diversas mulheres até que conhece Veronika, uma enfermeira aberta em suas relações amorosas. A partir de então o cineasta-roteirista Eustache desenvolve com ternura, lucidez e até momentos de loucura as relações de Alexandre-Marie-Veronika. Os locais em que as cenas se passam são os próprios cafés de Paris, os apartamentos e os edifícios antigos, os restaurantes e as ruas da cidade. Em uma cena em que Alexandre fala das “transições” dos filmes do cineasta Murnau, estamos em uma própria “transição, entre os trens para o campo e do outro lado a cidade de Paris, e o casal Alexandre e Veronika ao centro em um restaurante, a cena inclusive marca a transição do fim da relação entre Gilberte e Alexandre e o início da dele com Veronika. Temos, assim, uma espécie de parábase, metaficção, metafilme, em que uma personagem, no caso, indiretamente, reflete sobre a própria arte, assim Alexandre parece dar voz ao realizador Jean Eustache. 
Em outra cena memorável a personagem interpretada por Léaud se “desnuda” sem óculos escuros olhando para a personagem de Veronika, olhando diretamente para a câmera, enfim a “desnudar-se” para todos, depois coloca os óculos escuros em atitude de recolhimento.
Nas relações amorosas de Alexandre temos três personagens femininas: Gilberte, a pudica; Marie, a companheira, uma espécie de esposa, para amar o seu companheiro apesar de tudo; e, Veronika, a mulher que vive sua vida sem se preocupar com que os outros pensam quanto à sua sexualidade, a que a sociedade machista chama de “puta”.
No filme diferente do que se poderia imaginar não há improvisação nas falas por parte dos atores, mas é tão natural como elas se desenvolvem, como os diálogos se desenrolam tão críveis, quanto à própria vida. Enfim, a obra é tão humana, em sua contemplação sobre as relações amorosas, em sua reflexão sobre a condição e a natureza do ser humano, tais quais as canções de Edith Piaf que tocam no filme. ”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

(Excitação, Brasil, 1976, Jean Garret): (Thriller claustrofóbico brasileiro)


(Excitação, Brasil, 1976, Jean Garret):
(Thriller claustrofóbico brasileiro):   



“Excitação é um filme brasileiro dos anos 1970, mais precisamente de 76, dirigido por Jean Garret e com roteiro dele em parceria com Ody Fraga. Estes dois cineastas sempre abusaram de nudez, cenas de sexo e violência, contudo realizaram até que alguns bons filmes nas décadas de 70 e 80, que foram críticas para nosso cinema, excetuando o início dos anos 1990, nos quais o cinema nacional quase não existia. Outra curiosidade sobre Garret e Fraga é que eles dirigiram também fitas pornô, às vezes sob pseudônimos.
Neste Excitação temos um bom exemplar brasileiro de um filme do gênero de terror, um thriller claustrofóbico que apesar de alguns defeitos tais como a edição bastante falha e as atuações dos atores extremamente mecânicas, com exceção da personagem interpretada por Flávio Galvão. Quanto às qualidades temos uma trilha sonora marcante e apavorante que sugestiona o terror das estranhas visões de Helena (Kate Hansen), a fotografia excepcional do também cineasta, um dos maiores do país, Carlos Reichenbach que nos presenteia com cenas em que os aparelhos domésticos e as máquinas parecem tomar vida própria, nestas cenas temos também bons efeitos especiais.
Helena e Renato (Galvão) são um casal que vai morar em uma casa de praia no litoral de São Paulo que guarda mistérios em relação ao seu passado. Helena tem problemas nervosos, com estranhas visões e delírios com máquinas domésticas que se ligam sem que ninguém as estejam usando. As cenas de closes em seus olhos dilatados e excitados pelos delírios visuais são muito bem-feitas. Já Renato é um engenheiro eletrônico (prestem atenção no nome de seu computador, que ele tem em sua empresa na capital paulista!) que confia na exatidão das máquinas, na racionalidade e perfeição que elas propiciam à sociedade. Talvez os computadores sirvam como espécies de projeções, ora de Renato, no que se refere à razão, ora como projeções de Helena, no que concerne aos delírios, à imaginação e à loucura.
O roteiro de Ody Fraga e Jean Garret apresenta certa previsibilidade em algumas reviravoltas e também certas cenas risíveis, porém, mesmo assim o filme se sustenta. Excitação, enfim, é um terror, um thriller misterioso dirigido por Jean Garret com estilo e que demonstra que o Brasil é capaz sim de fazer bons filmes em qualquer gênero e em qualquer época. ”

domingo, 16 de fevereiro de 2020

(Johanna D´Arc of Mongolia, Alemanha Ocidental, França, 1989): (Diálogo entre culturas)


(Johanna D´Arc of Mongolia, Alemanha Ocidental, França, 1989):
(Diálogo entre culturas):
  

“A cineasta alemã Ulrike Ottinger realiza este interessante Johanna D´Arc of Mongolia (Alemanha Ocidental, França, 1989), nomeado ao Leão de Ouro do Festival de Berlim, de 1989, filmado também durante o ano da Queda do Muro de Berlim, sendo talvez este fato histórico um interessante paralelo para com a obra da diretora, pois seu filme entre outras coisas trata e aborda a troca de culturas, o cosmopolitismo, sem barreiras ou fronteiras marcadas por pré-conceitos culturais.
Quatro mulheres de diferentes nacionalidades estão em um trem da Transiberiana e elas começam a interagir entre si. Uma é a especialista na cultura da região Lady Windermere (Delphine Seyrig, atriz de filmes como Muriel e O Ano Passado em Marienbad, ambos dirigidos por Alain Resnais); outra é a professora secundária alemã Mueller-Vohwinkel (Irm Hermann, que foi dirigida por Rainer Werner Fassbinder em diversos filmes tais como: O Medo do Medo e As Lágrimas Amargas de Petra von Kant); outra dessas mulheres é a mochileira francesa Giovanna (Ines Sastre) e, por último, tem-se a  personagem da cantora norte-americana da Broadway Fanny Ziegfeld (Gillian Scalici). Elas também interagem com algumas outras personagens o cantor alemão Mickey Katz, dois oficiais russos e as irmãs Kalinka, que formam um trio musical bem divertido.
Porém, todas as personagens masculinas são deixadas de lado, quando apenas as mulheres tomam o trem da Transmongol, depois de quase uma hora de filme bem marcada e em uma cena de transição aparece, finalmente, a princesa guerreira mongol Ulan Iga, a qual serve de paralelo com a Joana D´Arc da História europeia, as viajantes são a partir daí mantidas apenas em parte como reféns, mas muito mais são tomadas como hóspedes pelas mongóis nômades.
 O filme, então, passa para uma segunda parte, mudando de ambiência e também passa quase que completamente a ser filmado em externas, diferente da primeira parte que foi marcada por cenas filmadas internamente nos vagões de trens. Agora a história sem pressa e sem ser narrada muito por meio de fatos encadeados, mas apenas episódicos, começa a se desenrolar nas estepes mongóis. Procurando ressaltar a troca de experiências, a amizade inusitada que surge entre culturas diferentes, mostrando que é possível o diálogo, a interação sem pré-conceitos de culturas aparentemente inconciliáveis. ” 

sábado, 15 de fevereiro de 2020

(Dias de Outono, Japão, 1960, Yasujirô Ozu): (Contemplando o cotidiano em seus encantos)


(Dias de Outono, Japão, 1960, Yasujirô Ozu):
(Contemplando o cotidiano em seus encantos):

“Ayako – “Romance e casamento são coisas diferentes...”.
É uma das frases ditas por esta personagem em um excelente diálogo em um café, entre ela e seu “tio” Mamiya, quando ele tenta convencê-la a casar. E por aquela frase e por outros diálogos o espectador será apresentado a um dos principais debates do filme: o casamento arranjado. Por sinal o roteiro de Kôgo Noda (habitual colaborador do cineasta) e do prórpio Yasujirô Ozu, baseado no romance de Ton Satomi, é excelente e propõe ótimas oportunidades para os espectadores contemplarem e refletirem sobre questões pessoais e interpessoais envolvendo: casamento, relação mãe e filha, viuvez, amizade, memórias, entre outras. Este é o filme Dias de Outono dirigido pelo mestre japonês Ozu, de 1960, o seu antepenúltimo filme de uma carreira de 56 créditos como diretor.
Ozu em boa parte de sua filmografia se propôs a discutir as questões familiares sem se preocupar em demasia com a narrativa e a trama em si, mas as reflexões levantadas em suas obras, deixando bastante tempo para quem assiste aos filmes se concentrar na ambiência, na contemplação e nos questionamentos propostos, exemplos disso são: Os Irmãos e Irmãs Todas (1941) e Era uma Vez em Tóquio (1953). Ozu também diversas vezes trabalha os mesmos temas em obras diferentes, ou melhor realiza variações sobre a mesma temática, já que é possível estabelecer relação deste Dias de Outono com um clássico dele intitulado Pai e Filha, de 1949, com roteiro também em parceria entre Noda e Ozu. Neste a questão girava entre um pai viúvo e sua filha, que não queria casar para não abandonar seu pai sozinho, já no filme de 1969, é a vez de uma filha e sua mãe viúva em similar situação. Dessa forma, se confirma o que muitos críticos de cinema dizem dos grandes cineastas e artistas em geral, que realizam sempre obras sobre os mesmos temas, somente realizando recriações, porém sempre com um novo vigor artístico e sempre com aura de genialidade.
Yasujirô Ozu explora ainda um Japão do pós-Segunda Guerra Mundial, recuperando-se após a destruição ocasionada pela Guerra, o figurino reflete o vestuário ocidental a ser usado no país, além de costumes do Ocidente geral sendo adotados no país asiático. Além disso, o filme confronta as gerações mais velhas e mais novas.
O filme é belo e contemplativo em mostrar com cuidado e apuro na fotografia colorida a relação entre mãe e filha, de extremo companheirismo e cuidados de uma para com a outra, Akiko, a mãe (Setsuko Hara) e a filha Ayako (Yôko Tsukasa), atrizes habituais dos trabalhos de Ozu dão uma aula de atuações comedidas e serenas, das quais o cineasta se vale para com toda calma do mundo e sem presa mostrar a que a rotina e o cotidiano familiar têm os seus encantos. ”