sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A Importância da Memória e da Preservação do Cinema Brasileiro


A Importância da Memória e da Preservação do Cinema Brasileiro

(Por Rafael Vespasiano)

O tema de hoje é de suma importância que seja a preservação do Cinema, em especial dos originais dos filmes antigos, matrizes diversas ou cópias que o tempo nos legou, clássicos ou de importância como marcos históricos e cronológicos. Aqui neste espaço, por enquanto, nos deteremos no âmbito do Cinema Brasileiro.
A tarefa é gigantesca ainda mais quando os problemas do Brasil, além de todos que perpassam os tempos no país, Saúde, Educação, Segurança Pública, etc., são mais gritantes ainda na Cultura e nas Artes em geral, Literatura, Teatro, Música, e lógico no Cinema. Ainda mais que desde sempre as Artes nacionais sofreram com o descaso das instituições públicas e políticas, sejam de quais orientações ideológicas sejam, em alguns momentos mais ou menos, com maiores ou menos incentivos ao cultural.
Imaginem então nos primórdios do Cinema nacional! Quando existia um preconceito ainda maior, incentivos menores e pior foi a preservação dos originais dos filmes brasileiros durante a passagem do tempo. Mais surreal fica a situação ao pensarmos que no período moderno não ocorreram guerras no Brasil, no que se refere às Primeira e Segunda Grandes Guerras, ou seja, não formos bombardeados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como países tais quais Japão, Alemanha, Itália, França, etc.
Não estamos nem abordado temas como censura, problemas nas filmagens ou produção (em geral com as distribuidoras e os produtores) nem citando insatisfações dos cineastas, nem ao menos detalhando casos de cinematografias emergentes de países da África, da Ásia, do Oriente Médio, da Oceania. Pois aí a questão se assemelha inclusive a do Brasil, já que se trata realmente da preservação e cuidados para com a manutenção do já escasso e precioso material cinematográfico.
Passemos a discorrer mais a miúde sobre a filmografia considerada perdida ou em vias de sê-lo no Brasil. A lista brasileira é, infelizmente, extensa e tem milhares de títulos considerados desaparecidos desde 1898, ano zero da produção cinematográfica no país.  Assim, é importante frisar que qualquer fotograma relativo ao período 1898-1909 não sobreviveu ao tempo e a má preservação dos originais. Não se tem esperança de encontrar qualquer material para a maior parte deles. Porém, às vezes acontecem agradáveis surpresas do aparecimento de fragmentos ou até o conjunto completo de obras há muito tidas como definitivamente perdidas. As mais lamentadas ausências giram quase sempre em torno de obras ficcionais tidas como importantes histórica ou esteticamente. Dessa forma integram tais listas títulos como Paz e Amor (1910), de José do Patrocínio Filho, Barro Humano (1929), de Adhemar Gonzaga, Favela do Meus Amores (1936), de Humberto Mauro, Moleque Tião (1943), de José Carlos Burle, Destino em Apuros (1953), de Ernesto Remani, Cruz na Praça (1959), de Glauber Rocha, e Surucucu Catiripapo (1973), de Neville D’Almeida.
O jornalista e pesquisador Carlos Augusto Brandão, do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (RJ), leva a questão da preservação para a questão da identidade cultural. Seria com ela que lutaríamos e resistiríamos à colonização cultural, por isso para Brandão, ser função do Estado preservar essa identidade cultural. Ele afirma que 70% dos filmes nacionais perdidos foram feitos antes de 1960. Brandão alerta ainda que, se um país não preserva sua memória, outra memória ocupa o espaço, porque não existe lugar vazio na cultura.
Citamos mais acima o cineasta pernambucano José Carlos Burle (1910-1983) com o perdido Moleque Tião, estrelado por Grande Otelo, daquele filme já ouvirmos relatos maravilhosos de que assistiu ao filme à época. Burle, cineasta hábil colocou nos cinemas um tema polêmico, no ano de 1949, o filme Também Somos Irmãos, também protagonizado por Otelo. Aquele filme, inclusive, está em vias desaparecer. A única cópia tem rugas visíveis da passagem do tempo.
É de se admirar o quanto o cinema é audacioso e vanguardista na abordagem de questões que são polêmicas. O cinema é um espaço privilegiado de liberdade e transgressão. O diretor Luiz Carlos Burle e o roteirista Alinor Azevedo (1914-1974) usaram maravilhosamente no filme em questão, produzido pela Atlântida, que foi um estúdio que ficou mais conhecida pelas Chanchadas, comédias-musicais populares recordes de público a cada lançamento em nossos cinemas à época.
O longa dramático Também Somos Irmãos foi o 27º filme na carreira de Grande Otelo (1915-1993) e, justamente, o que o içou à fama. O filme aborda o tema espinhoso, necessário e, infelizmente, ainda urgente: o preconceito racial, além de outros temas como a ascensão social, o amor que não respeita fronteiras, o interesse espúrio – seja o econômico, o social ou de qualquer favorecimento – em detrimento do bom caráter, isso tudo nos provoca questionamentos e reflexões respeitáveis e muito atuais.
Para entendermos o impacto de um filme, sua importância e o quanto ele é indício da mentalidade de sua época, temos que tentar vê-lo com o olhar daquela época, ainda mais no caso do filme em questão, já que é verdade que a trama talvez seja rocambolesca demais, apesar de não exibir um final tão feliz assim. Não é fácil ao cinema afastar-se das convenções de época, mesmo para o inteligente Burle. Aliás, no Brasil daquele momento, reproduzi-las já era proeza e coragem. O filme ainda mostra uma cultura que, como sabemos, sempre apregoou de modo quase patológico a inexistência de racismo no país.  
Por isso, temos que tentar voltar no tempo, verificar seus costumes, suas normas sociais e prestar atenção nos rastros que constam na película daquela época. Mais do que os aspectos técnicos, recursos tecnológicos e a forma de condução do produto/filme no âmbito mercadológico, os valores e os questionamentos que ali são abordados são indícios. E nisso a película dá um show de nuances a serem analisadas.
A história é sobre dois irmãos negros, Renato (Aguinaldo Camargo) e Miro (Grande Otelo) que são criados numa mansão na Tijuca por um casal abastado, juntamente com sua filha biológica Marta (Vera Mendes). Ao crescerem são rejeitados e vão morar numa favela. Renato estuda direito e se torna um advogado, Miro vira vagabundo, orgulhosamente, com um nível de crítica social avassaladores que não economiza nas suas considerações, e é dado a pequenos ganhos e traquinagens. Renato continua a ter contato com Marta, que se tornou uma mulher culta e pela qual é apaixonado secretamente. Porém Marta se apaixona pelo galã cafajeste Walter (Jorge Dória). Nesse contexto Renato e Walter se desentendem e o pior acontece. O mote do filme é como as questões se desenrolam, a abordagem da nobreza de caráter, o que é amor, de fato, e o que se espera, naturalmente, das pessoas – as surpresas e as decepções.
Tudo isso sendo abordado num período pós-guerra e entre governos de Getúlio (Dutra era o Presidente na época). Numa época em que fazer cinema era difícil e caro, ainda mais que nos dias atuais! Falar desses temas numa época em que a sala de cinema era 100% de todo o público que consumia filmes, e não era tão popular. Outros presentes espetaculares que a película nos lega é ver Agnaldo Rayol (Hélio) em sua primeira aparição no cinema, com apenas 11 anos, cantando divinamente, e Jece Valadão em início de carreira, além de Ruth de Souza, recentemente falecida.
Também Somos Irmãos está disponível em plataformas online para assistir e baixar legalmente, e multimídias outras. “É um telecinado, fiel ao estado da cópia, o trecho carrega suas rugas históricas: riscos, manchas, instabilidades, alguns saltos causados pelos fotogramas perdidos, pulsação. O som, trôpego, parece sussurrar e lutar para se ouvir. Mas há beleza nesta triste situação do filme: na sua luta para sobreviver, já no aniquilamento do tempo, ele ainda luta em mostrar, em ser visto, em se notar, enfim, em ser cinema. ” (Paulo Santos Lima, com alterações minhas).
E concluo: Viva o Cinema Brasileiro!

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