A
Importância da Memória e da Preservação do Cinema Brasileiro
(Por
Rafael Vespasiano)
O
tema de hoje é de suma importância que seja a preservação do Cinema, em
especial dos originais dos filmes antigos, matrizes diversas ou cópias que o
tempo nos legou, clássicos ou de importância como marcos históricos e cronológicos.
Aqui neste espaço, por enquanto, nos deteremos no âmbito do Cinema Brasileiro.
A
tarefa é gigantesca ainda mais quando os problemas do Brasil, além de todos que
perpassam os tempos no país, Saúde, Educação, Segurança Pública, etc., são mais
gritantes ainda na Cultura e nas Artes em geral, Literatura, Teatro, Música, e
lógico no Cinema. Ainda mais que desde sempre as Artes nacionais sofreram com o
descaso das instituições públicas e políticas, sejam de quais orientações ideológicas
sejam, em alguns momentos mais ou menos, com maiores ou menos incentivos ao
cultural.
Imaginem
então nos primórdios do Cinema nacional! Quando existia um preconceito ainda
maior, incentivos menores e pior foi a preservação dos originais dos filmes
brasileiros durante a passagem do tempo. Mais surreal fica a situação ao
pensarmos que no período moderno não ocorreram guerras no Brasil, no que se
refere às Primeira e Segunda Grandes Guerras, ou seja, não formos bombardeados
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como países tais quais Japão, Alemanha,
Itália, França, etc.
Não
estamos nem abordado temas como censura, problemas nas filmagens ou produção
(em geral com as distribuidoras e os produtores) nem citando insatisfações dos
cineastas, nem ao menos detalhando casos de cinematografias emergentes de
países da África, da Ásia, do Oriente Médio, da Oceania. Pois aí a questão se
assemelha inclusive a do Brasil, já que se trata realmente da preservação e
cuidados para com a manutenção do já escasso e precioso material
cinematográfico.
Passemos a discorrer
mais a miúde sobre a filmografia considerada perdida ou em vias de sê-lo no
Brasil. A lista brasileira é,
infelizmente, extensa e tem milhares de títulos considerados desaparecidos
desde 1898, ano zero da produção cinematográfica no país. Assim, é importante frisar que qualquer
fotograma relativo ao período 1898-1909 não sobreviveu ao tempo e a má preservação
dos originais. Não se tem esperança de encontrar qualquer material para a maior
parte deles. Porém, às vezes acontecem agradáveis surpresas do aparecimento de
fragmentos ou até o conjunto completo de obras há muito tidas como
definitivamente perdidas. As mais lamentadas ausências giram quase sempre em
torno de obras ficcionais tidas como importantes histórica ou esteticamente.
Dessa forma integram tais listas títulos como Paz e Amor (1910),
de José do Patrocínio Filho, Barro Humano (1929), de Adhemar
Gonzaga, Favela do Meus Amores (1936), de Humberto
Mauro, Moleque Tião (1943), de José Carlos Burle, Destino
em Apuros (1953), de Ernesto Remani, Cruz na Praça (1959),
de Glauber Rocha, e Surucucu Catiripapo (1973), de Neville
D’Almeida.
O jornalista e
pesquisador Carlos Augusto Brandão, do Centro de Pesquisadores do Cinema
Brasileiro (RJ), leva a questão da preservação para a questão da identidade
cultural. Seria com ela que lutaríamos e resistiríamos à colonização cultural,
por isso para Brandão, ser função do Estado preservar essa identidade cultural.
Ele afirma que 70% dos filmes nacionais perdidos foram feitos antes de 1960.
Brandão alerta ainda que, se um país não preserva sua memória, outra memória
ocupa o espaço, porque não existe lugar vazio na cultura.
Citamos mais acima o
cineasta pernambucano José Carlos Burle (1910-1983) com o perdido Moleque Tião, estrelado por Grande
Otelo, daquele filme já ouvirmos relatos maravilhosos de que assistiu ao filme
à época. Burle, cineasta hábil colocou nos cinemas um tema polêmico, no ano de
1949, o filme Também Somos Irmãos, também
protagonizado por Otelo. Aquele filme, inclusive, está em vias desaparecer. A
única cópia tem rugas visíveis da passagem do tempo.
É de se admirar o quanto o cinema é audacioso e
vanguardista na abordagem de questões que são polêmicas. O cinema é um espaço
privilegiado de liberdade e transgressão. O diretor Luiz Carlos Burle e o
roteirista Alinor Azevedo (1914-1974) usaram maravilhosamente no filme em
questão, produzido pela Atlântida, que foi um estúdio que ficou mais conhecida
pelas Chanchadas, comédias-musicais populares recordes de público a cada lançamento
em nossos cinemas à época.
O longa dramático Também Somos Irmãos foi o 27º filme na
carreira de Grande Otelo (1915-1993) e, justamente, o que o içou à fama. O filme
aborda o tema espinhoso, necessário e, infelizmente, ainda urgente: o
preconceito racial, além de outros temas como a ascensão social, o amor que não
respeita fronteiras, o interesse espúrio – seja o econômico, o social ou de
qualquer favorecimento – em detrimento do bom caráter, isso tudo nos provoca
questionamentos e reflexões respeitáveis e muito atuais.
Para entendermos o
impacto de um filme, sua importância e o quanto ele é indício da mentalidade de
sua época, temos que tentar vê-lo com o olhar daquela época, ainda mais no caso
do filme em questão, já que é verdade que a trama talvez seja rocambolesca demais, apesar
de não exibir um final tão feliz assim. Não é fácil ao cinema afastar-se das
convenções de época, mesmo para o inteligente Burle. Aliás, no Brasil daquele
momento, reproduzi-las já era proeza e coragem. O filme ainda mostra uma
cultura que, como sabemos, sempre apregoou de modo quase patológico a
inexistência de racismo no país.
Por isso, temos que
tentar voltar no tempo, verificar seus costumes, suas normas sociais e prestar
atenção nos rastros que constam na película daquela época. Mais do que os
aspectos técnicos, recursos tecnológicos e a forma de condução
do produto/filme no âmbito mercadológico, os valores e os questionamentos que
ali são abordados são indícios. E nisso a película dá um show de nuances a
serem analisadas.
A história é sobre dois
irmãos negros, Renato (Aguinaldo Camargo) e Miro (Grande Otelo) que são criados
numa mansão na Tijuca por um casal abastado, juntamente com sua filha biológica
Marta (Vera Mendes). Ao crescerem são rejeitados e vão morar numa favela.
Renato estuda direito e se torna um advogado, Miro vira vagabundo,
orgulhosamente, com um nível de crítica social avassaladores que não
economiza nas suas considerações, e é dado a pequenos ganhos e traquinagens.
Renato continua a ter contato com Marta, que se tornou uma mulher culta e pela
qual é apaixonado secretamente. Porém Marta se apaixona pelo galã cafajeste
Walter (Jorge Dória). Nesse contexto Renato e Walter se desentendem e o pior
acontece. O mote do filme é como as questões se desenrolam, a abordagem da
nobreza de caráter, o que é amor, de fato, e o que se espera, naturalmente, das
pessoas – as surpresas e as decepções.
Tudo isso sendo abordado
num período pós-guerra e entre governos de Getúlio (Dutra era o Presidente na
época). Numa época em que fazer cinema era difícil e caro, ainda mais que nos
dias atuais! Falar desses temas numa época em que a sala de cinema era 100% de
todo o público que consumia filmes, e não era tão popular. Outros presentes
espetaculares que a película nos lega é ver Agnaldo Rayol (Hélio) em sua
primeira aparição no cinema, com apenas 11 anos, cantando divinamente, e Jece Valadão
em início de carreira, além de Ruth de Souza, recentemente falecida.
Também Somos Irmãos está disponível em plataformas online para
assistir e baixar legalmente, e multimídias outras. “É um telecinado, fiel ao estado da cópia, o
trecho carrega suas rugas históricas: riscos, manchas, instabilidades, alguns
saltos causados pelos fotogramas perdidos, pulsação. O som, trôpego, parece sussurrar
e lutar para se ouvir. Mas há beleza nesta triste situação do filme: na sua
luta para sobreviver, já no aniquilamento do tempo, ele ainda luta em mostrar,
em ser visto, em se notar, enfim, em ser cinema. ” (Paulo Santos Lima, com
alterações minhas).
E concluo: Viva o Cinema Brasileiro!
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