sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A hipocrisia reina há tempos imemoriais.

O TARTUFO OU O IMPOSTOR
MOLIÈRE
(resenha por Rafael Vespasiano)

"O dramaturgo francês Molière constrói uma comédia que ironiza e escancara a hipocrisia dos “falsos beatos” em O Tartufo ou o impostor, peça encenada pela primeira vez em 1664 e censurada, só liberada em definitivo em 1669. Escrita no contexto sociocultural da Contra-Reforma religiosa e da preocupação moral em não pecar ou praticar atos viciosos contrários à moral cristã, pelo contrário pregava-se que o homem deveria manter-se virtuoso e não cair em tentação.
No caso da comédia O Tartufo ou o impostor, a personagem Tartufo é um “falso beato” que prega a moral cristã, a humildade, caridade, simplicidade, a negação e renúncia a riquezas materiais, porém isso é apenas uma máscara, uma impostura, uma falsa aparência que lhe é conveniente para arrancar dinheiro e posses das pessoas. Na trama, o golpe de Tartufo é para cima da personagem Orgon, um homem rico e que simpatiza com aquele por sua “beatitude” e o leva para morar em sua casa. Orgon é uma personagem que procura viver de maneira virtuosa e respeitoso à moral cristã, por isso sua afinidade com Tartufo, ou melhor, o seu engano, dada a falsidade do Impostor. Orgon é ingênuo, mas, de certa forma, sua moral cristã, suas virtudes e moralidade são características dele, sim, porém, Orgon não faz e pratica para si, pura e simplesmente por acreditar e ter fé em suas crenças morais, contudo faz também para se exibir na sociedade e possuir um status na sociedade de um cristão exemplar. Tudo máscara, o que também leva à hipocrisia.
Essa hipocrisia moralista cristã, não como Religião em si, mas como forma de manter as aparências e as máscaras sociais - e dar golpes pecuniários em outrem por impostura de uma falsa virtuosidade cristã e moral - é que é o motivo de riso criado na peça e nas situações esdrúxulas e extremas criadas por Molière em sua comédia.
A comédia tem um quê barroco no que se refere à data de encenação, pleno século XVII, período áureo do Barroco Literário Europeu. Mas, principalmente, por tecer preocupações com a moral e com a religiosidade cristã. Em apresentar personagens cindidas entre o vício e a virtude, o pecado e a beatitude, etc. Porém, vai além, pois é uma crítica ácida à falsidade de figuras que se passavam por beatos e humilíssimos servos do Senhor e da moral cristã, contudo são meros golpistas preocupados em extrair todas as riquezas materiais dos outros, sendo que prega justamente a renúncia à posse de bens materiais.
Tartufo é um impostor, quer dar o golpe em Orgon, ainda tenta seduzir a esposa deste e pretende casar com a filha de Orgon para conseguir o dote dela. Enfim, um hipócrita."

TRECHOS:

“DORINE (CRIADA): NA SUA IMAGINAÇÃO PASSA POR SANTO, MAS, ACREDITE-ME, TODA A SUA MANEIRA DE SER NÃO PASSA DE HIPOCRISIA.” (referindo-se à Tartufo) (p. 58).;

“DORINE (CRIADA): ENFIM, ESTÁ DOIDO POR ELE (TARTUFO); É O SEU TUDO, SEU HEROI; ADMIRA-O EM TUDO, CITA-O EM TODAS AS OCASIÕES; PARECEM-LHE MILAGRES SEUS ATOS MAIS INSIGNIFICANTES, E TODAS AS PALAVRAS QUE DIZ SÃO O MESMO QUE ORÁCULOS. O TAL, QUE CONHECE BEM A SUA VÍTIMA E QUER EXPLORÁ-LA, POSSUI A ARTE DE ENGANÁ-LA COM FALSAS APARÊNCIAS; COM AS SUAS BEATICES ARRANCA-LHE DINHEIRO (ORGON) A TODO INSTANTE, E SE DÁ O DIREITO DE CRITICAR-NOS A TODOS. ATÉ MESMO O BOBÃO QUE LHE SERVE DE CRIADO METE-SE A DAR-NOS LIÇÕES; COM OLHARES TERRÍVEIS VEM NOS FAZER SERMÕES E JOGA FORA AS NOSSAS FITAS, NOSSO RUGE E NOSSAS MOSCAS. NO OUTRO DIA, O TRAIDOR RASGOU COM AS PRÓPRIAS MÃOS UM LENÇO QUE ACHOU EM UM VOLUME DO FLEUR DES SAINTS DIZENDO QUE MISTURÁVAMOS – OH, CRIME HEDIONDO! – ADORNOS DO DIABO COM A SANTIDADE”. (p. 62-63);

“ORGON: CALE-SE. SE NADA TEM, SAIBA QUE É POR ISSO QUE SE DEVE RESPEITÁ-LO (TARTUFO). SUA MISÉRIA É, SEM DÚVIDA, UMA MISÉRIA HONESTA; DEVE ELEVÁ-LA ACIMA DAS GRANDEZAS, PORQUANTO, AFINAL DE CONTAS, DEIXOU-SE PRIVAR DE TODOS OS BENS PELO DESCASO DAS COISAS TEMPORAIS E POR SEU GRANDE APEGO ÀS COISAS ETERNAS. MAS MEU AUXÍLIO PODERÁ FORNECER-LHE OS MEIOS DE SAIR DO EMBARAÇO E RECOBRAR OS SEUS BENS: SÃO FEUDOS QUE SE CONHECEM NO PAÍS A JUSTO TÍTULO E, TAL COMO O VEMOS, É AINDA ASSIM UM FIDALGO.

DORINE: SIM, É ELE (TARTUFO) MESMO QUEM O DIZ; E TAL VAIDADE, SENHOR, NÃO CONDIZ COM A PIEDADE. QUEM ABRAÇA A INOCÊNCIA DE VIDA SANTA NÃO DEVE GABAR TANTO O NOME E O NASCIMENTO, E O HUMILDE PROCEDER DA DEVOÇÃO NÃO SUPORTA O ESPLENDOR DESSA AMBIÇÃO. (...)” (p. 76-77);

“ELMIRE (ESPOSA DE ORGON): QUE FAZ AÍ SUA MÃO?

TARTUFO: ESTOU APALPANDO SEU VESTIDO: O TECIDO É TÃO MACIO.

(...)

ELMIRE: A DECLARAÇÃO É EXTREMAMENTE GALANTE, MAS, PARA DIZER A VERDADE, UM TANTO SURPREENDENTE. PARECE-ME QUE O SENHOR DEVIA RESGUARDAR MELHOR O SEU CORAÇÃO, E RACIOCINAR UM POUCO SOBRE TAL INTENTO. DEVOTO COMO O SENHOR É E QUE POR TODA PARTE É TIDO...

TARTUFO: AH! MAS NEM POR SER DEVOTO EU SOU MENOS HOMEM; E QUANDO SE CHEGA A VER SEUS CELESTES ENCANTOS, O CORAÇÃO SE DEIXA ENRENDAR E NÃO RACIOCINA MAIS. (...)” (p. 100-101);

“ORGON: Ó CÉU, SERÁ VEROSSÍMIL O QUE ACABO DE OUVIR?
TARTUFO: SIM, MEU IRMÃO, SOU MAU, SOU CULPADO, PECADOR INFELIZ, CHEIO DE INIQUIDADE, O MAIOR CELERADO QUE JÁ VIVEU; CADA INSTANTE DE MINHA VIDA ESTÁ MACULADO; ELA NADA MAIS É QUE UM AMONTOADO DE CRIMES E DE TORPEZAS; E ESTOU VENDO QUE O CÉU, PARA MEU CASTIGO, QUER MORTIFICAR-ME NESTA OCASIÃO. SEJA QUAL FOR A PERVERSIDADE DE QUE ME ACUSAM, NÃO TEREI O ORGULHO DE DEFENDER-ME. ACREDITE NO QUE LHE DIZEM, ARME-SE DE CÓLERA, E EXPULSE-ME DE SUA CASA COMO UM CRIMINOSO: POR MAIS VERGONHA QUE EU SINTA AO PARTIR, AINDA É MENOS DO QUE MEREÇO.

ORGON (AO FILHO): AH! TRAIDOR, OUSAS MACULAR-LHE A PUREZA DA VIRTUDE COM ESSA FALSIDADE?

DAMIS (FILHO DE ORGON): COMO? A DOÇURA FINGIDA DESSA ALMA HIPÓCRITA FÁ-LO-Á DESMENTIR...

ORGON: CALA-TE, PESTE MALDITA!”  (p. p. 105);

“ORGON: SÃO NOVIDADES QUE TESTEMUNHEI COM MEUS PRÓPRIOS OLHOS, E A SENHORA ESTÁ VENDO COMO FORAM PAGOS OS MEUS CUIDADOS. COM ZELO, ACOLHO UM HOMEM NA MISÉRIA, DOU-LHE CASA E COMIDA, TRATO-O COMO A UM PRÓPRIO IRMÃO; TODO DIA, CUMULO-O DIARIAMENTE DE BENEFÍCIOS; DOU-LHE A MÃO DE MINHA FILHA E TODOS OS BENS QUE POSSUO; E, ENQUANTO ISSO, O PÉRFIDO, O INFAME TENTA O NEGRO PROJETO DE SEDUZIR-ME A ESPOSA E, NÃO CONTENTE COM ESSA TENTATIVA INFAME, OUSA AMEAÇAR-ME COM OS MEUS PRÓPRIOS BENEFÍCIOS E QUER ARRUINAR-ME USANDO AS VANTAGENS COM QUE ACABA DE ARMÁ-LO MINHA BONDADE POR DEMAIS INSENSATA, EXPULSAR-ME DE MEUS BENS QUE EU LHE TRANSFERI E REDUZIR-ME À SITUAÇÃO DE QUE O TIREI.” (p. 129-30).

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


MOLIÈRE. O tartufo ou o impostor. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003.

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