Por : Rafael Vespasiano Ferreira de Lima.
José
de Alencar e um projeto literário:
A
busca de uma identidade nacional.
José de Alencar é um
romancista de excessiva imaginação e de uma enorme idealização romântica. Como
escritor romântico, sua obra é marcada por descrições idealizadas da Natureza e
das personagens. Alencar insere-se na tradição do Romantismo Francês, por isso
prevalece em suas obras romanescas, o romance de costumes. Diferentemente do
Romantismo Alemão e até do Inglês, não se pauta pelo drama de caracteres; e
mais de um crítico assinala a falta de profundidade psicológica de suas
personagens. Machado de Assis, por exemplo, chama a atenção para esse fato.
Porém, Alencar é
importante para a Literatura Brasileira, em especial, por causa do projeto
literário que idealizou. Um projeto que propunha a fundação de uma literatura
nacional, que abarcasse todas as faces da nação recém-independente da metrópole
portuguesa (a Independência política do Brasil fora proclamada em 1822). Seu
projeto literário ia ao encontro das ideias do Romantismo Brasileiro, de
nacionalismo e fundação de uma literatura nacional, diferenciada da Literatura
Portuguesa.
Apesar da importância do projeto alencariano
de literatura, o mesmo não se efetivou enquanto forma literária; o esboço
da ideia é válido, mas a execução como Literatura, ou seja, a feitura enquanto
romance ficou a desejar, falhou na tessitura das obras romanescas, justamente
pelo fato dos romances pautarem-se essencialmente pelo pitoresco, exótico, pela
cor local em detrimento do universal e do drama de consciência. Sendo meros
romances de costumes, sem aprofundamento psicológico das personagens; com raras
exceções e, mesmo numa obra, esse aprofundamento psíquico não é na obra
inteira.
Para aprofundarmos o
estudo do projeto de literatura alencariano, se fazem necessárias algumas notas
introdutórias.
Segundo a estudiosa Karin
Volobuef (1999), “(...) o romantismo foi um movimento literário extremamente
vasto e complexo, que defendeu, sim, a liberação dos sentimentos, das
aspirações pessoais (...).” (VOLOBUEF, 1999, p.12).
O romantismo “como tal, não foi dogmático nem
restritivo, não especificou nem determinou diretrizes. Como resultado, não
houve apenas um [grifo da autora], mas inúmeros.”
(VOLOBUEF, 1999, p.13). Dessa forma, existiram vários romantismos, o Alemão, o Inglês, o Francês, o Português, o
Brasileiro etc. “Neste sentido, não apenas cada indivíduo procurou em si mesmo
o gérmen daquilo que poderia criar, como também cada nação que acolheu o
espírito romântico seguiu um caminho próprio.” (VOLOBUEF, 1999, p.13).
O romantismo que veio
parar no Brasil é de tradição francesa. E depois de um longo período, no qual
a poesia foi
soberana em nosso país, o romance inaugurou uma época de multiplicidade
literária, fazendo emergir em nosso meio outros gêneros e formas estéticas. A
prosa de ficção fincou seu pé através da introdução do romance, conto e novela,
e a literatura dramática alçou-se a níveis mais elevados (...). (VOLOBUEF,
1999, p.165-66).
O romance foi um momento
de afirmação da Literatura Brasileira. E ainda, de forma mais geral, para o
crítico Afrânio Coutinho (2002) “em verdade, realizaram os românticos a criação
dos gêneros literários com feitio brasileiro.” (COUTINHO, 2002c, p.27).
Pode-se afirmar que
Alencar foi perspicaz ao perceber que a Literatura Brasileira ganharia
contornos próprios e singulares, ao fazer uso do gênero literário denominado romance. O romancista foi arguto o
suficiente, pois partindo dessa constatação, elaborou seu projeto literário, de
fundação da literatura nacional, tipicamente brasileira, dissociada da
literatura Portuguesa.
É importante ressaltar
que antes do Romantismo, no Brasil, predominara a poesia lírica, ou seja,
predominou o verso, bastaria citar os poetas barrocos e árcades, tarefa que o
presente ensaio não se propõe realizar. Até mesmo os primórdios do Romantismo
Brasileiro foram marcados quase que exclusivamente pela poesia lírica, basta
enumerar apenas alguns poetas (apesar de alguns deles também escreverem em
outros gêneros, inclusive o narrativo, mas além de ser exceção, trata-se de
obras menores desses escritores): Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães,
Álvares de Azevedo (exceção da exceção, pois apresenta uma excelente lírica e
uma elogiável prosa), Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Junqueira Freire,
Castro Alves etc.
O que importa, é que o
romance ainda não prevalecia. Até surgirem escritores românticos brasileiros,
que preferiam fazer uso do romance; e começaram a delinear uma literatura
tipicamente nacional, ou melhor, esses escritores buscavam em suas obras um caráter essencialmente nacional,
brasileiro, que diferenciasse o Brasil do resto do mundo. Os romancistas
românticos procuravam em suas obras enaltecer o Brasil, engrandecer o país,
configurando um nacionalismo evidente. Tudo isso com vistas a dar um caráter
essencialmente patriótico à Literatura feita no Brasil, beirando ao ufanismo e,
que, dessa forma a nossa literatura
fosse diferente das outras literaturas, sobretudo da Portuguesa.
Porém, esse exagero
nacionalista prejudicou, por outro lado a Literatura Romântica Brasileira, pois
esta priorizou o exótico, o pitoresco, a cor local, em detrimento do
aprofundamento psicológico das personagens e do caráter universal da
literatura. Prevaleceu o romance de costumes ao invés do drama de consciência.
Entre os principais
romancistas românticos brasileiros destacam-se: Joaquim Manuel de Macedo,
Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Visconde de Taunay, Manuel Antônio de
Almeida e, lógico, o mais importante, José
de Alencar. Cada um desses romancistas tem suas particularidades, mas nos
deteremos no romancista que vislumbrou um projeto literário para o país,
através do romance, ou seja, Alencar.
José de Alencar percebe
que o romance (e não a poesia ou a
epopeia) seria o melhor veículo para a propagação dos ideais românticos.
Volobuef (1999) refere-se aos estudos do crítico Antonio Candido e conclui que
“o romance como gênero apresenta uma tal maleabilidade vindo ao encontro do
temperamento romântico, sensivelmente oposto a regras que cerceiem a liberdade
de criação” (VOLOBUEF, 1999, p.166).
“No Brasil, é digno de
nota o fato de a própria criação do romance nacional ter sido obra do
Romantismo.” (VOLOBUEF, 1999, p.166). O romance romântico brasileiro busca
criar novos paradigmas para a Literatura Brasileira
na medida em que
busca consolidar nossa independência, já alcançada do ponto de vista político,
no campo das letras. Sua ambição foi dar-nos um caráter e uma constituição
próprios, o que vale para as várias modalidades em que se desdobrou, a saber, o
romance histórico, o urbano e o regionalista. (VOLOBUEF, 1999, p.168-69).
Alencar foi o romancista
que escreveu os três tipos de romances românticos e de maneira mais fecunda e
bem acabada enquanto forma literária, mesmo com as reservas já feitas
anteriormente. Segundo a Professora Lívila Pereira Maciel, “várias têm sido as
divisões das obras de Alencar.” (MACIEL, 2013, p.1, apostila: Roteiro de Leitura/Debate para aula - Lucíola).
Praticamente todas se baseiam na divisão feita pelo próprio autor, no prefácio
ao romance Sonhos d´ouro, 1872, no
qual traçou o plano geral de sua obra:
1. Romances
Urbanos: Cinco minutos, A viuvinha,
Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos d´ouro, Senhora, Encarnação.
2. Romances
Históricos: O guarani, As minas de prata,
Alfarrábios, Guerra dos Mascates, Iracema e Ubirajara.
3. Romances
Regionalistas: O gaúcho, O tronco do ipê,
Til, O sertanejo.
Evidencia-se mais uma
vez, o projeto literário de Alencar, ao tentar abranger todos os tipos de
romances românticos. Dessa forma, José de Alencar estaria mapeando o Brasil, tanto historicamente quanto geograficamente; no
que tange aos costumes brasileiros e à cultura nacional etc. O projeto
literário alencariano buscava, portanto, desnudar para os leitores um Brasil
ainda desconhecido. Buscava também engrandecer o país e a nação; enaltecer a
nossa fauna e a nossa flora; apresentar a história do país ainda pouco
conhecida pelos brasileiros de então. Sendo assim, Alencar e seu projeto
literário tinham como intuito valorizar o Brasil, mesmo que para isso
valorizasse o pitoresco e o exótico, e não ressaltasse o drama de caracteres e
o caráter universal da literatura. Como já afirmado anteriormente prevalece o
romance de costumes em detrimento do romance psicológico.
Analisemos agora, mais
detidamente os três tipos de romances alencarianos, a começar pelo romance
histórico.
Volobuef afirma que o
romance histórico alencariano foi
a busca de uma
interpretação (em termos de ficção, escusava dizer) da história nacional; e
(...) procurou, o nosso romance histórico (...), focar um episódio que, pelo
essencial de seu espírito, dos objetivos de sua ação, do caráter dos seus
protagonistas, valesse como símbolo da formação histórica da nacionalidade.
(VOLOBUEF, 1999, p.169).
Por isso mesmo, “em busca
de uma vertente especificamente nossa para o romance histórico”, Alencar
procurou e encontrou “na figura do índio a possibilidade de realizar tal
intento.” Karin Volobuef cita o estudioso Heron de Alencar (1986, p.259), para
junto com este corroborar que “o negro não se prestou ao papel de ‘valorizador
da nacionalidade’ dada sua condição de escravo e sua origem estrangeira; para
Proença (1966, p.49)”, também citado por Volobuef (1999), “foi a ‘sua condição
de trabalhador braçal’. Já o índio permitiria desviar o foco do branco europeu
colonizador e dirigi-lo para um elemento exclusivo do Brasil, quer dizer, não
existente em Portugal.” (VOLOBUEF, 1999, p.169-70).
“Além disso”, prossegue
Volobuef, “por intermédio do índio o romancista teria ainda a possibilidade de
fazer recuar no tempo a nossa história, alcançando até mesmo um período
precedente à chegada de Cabral.” (VOLOBUEF, 1999, p.170). O índio, então, passa
a responder pela nacionalidade, denotando aquilo que de mais original e
autêntico possui o Brasil. Logo, seu aproveitamento garante poeticidade e
confere o estatuto de nacional ao mesmo.
José de Alencar abrangeu
três fases em seus romances históricos: a) período pré-cabralino em que a ação
se passa totalmente entre os indígenas (Ubirajara);
b) período dos primeiros contatos entre brancos e silvícolas (Iracema); c) período em que já há
assentamentos ou mesmo cidades fundadas pelos portugueses (O guarani, As minas de prata, Guerra dos Mascates).
Tratemos, primeiramente,
e com mais vagar, das obras mais importantes de Alencar, dentro dos romances
históricos, os chamados romances histórico-indianistas.
Os primeiros passos rumo
à literatura indianista foram dados por Rousseau, quando lançou a ideia do “bom
selvagem”, mais tarde retomada por James Fenimore Cooper, que explorou a imagem
do “nobre índio” em O último dos moicanos
(1826). Além dos dois, também serviu de modelo ao nosso indianismo a obra
de Chateaubriand.
Pode-se afirmar que
no indianismo
romântico [alencariano], em verdade, é que se reúnem pela primeira vez três
palavras já então densamente carregadas de sentido ideológico – o indianismo
transformado em teoria social, o Romantismo a que o próprio índio deu causa e o
nacionalismo de que, pelo menos no Brasil, passa a ser símbolo. (RICARDO, 1986,
p.76-77, Apud VOLOBUEF, 1999, p.171).
Segundo os estudos de
Heron de Alencar (1986) corroborados por Karin Volobuef (1999), José de Alencar
é o mais significativo romancista de tendência indianista do Romantismo
Brasileiro. Segundo o estudioso, Alencar “criou, com base mais lendária do que
histórica, o mundo poético e heroico de nossas origens, para afirmar a nossa
nacionalidade, para provar a existência de nossas raízes legitimamente
americanas.” (ALENCAR, 1986, p.259, Apud VOLOBUEF,
1999, p.171-72). Em Alencar, “o romance indianista funda-se em uma prosa
poética, que se ancora em linguagem generosamente ornada de metáforas e imagens
repletas de lirismo.” (VOLOBUEF, 1999, p.172).
Tratemos de um dos seus
mais belos romances histórico-indianistas, Iracema
(1865), que segundo o poeta-crítico Haroldo de Campos (2004) “(...)
articula-se como um ‘mito de origem’, exposto, do ponto de vista estrutural, em
termos de raconto simbólico de aventuras, e matizado de momentos
idílico-pastorais” (CAMPOS, 2004, p.131). Por outro lado, esse romance é marcado
por “(...) um momento de ‘romantização do epos’ via linguagem, enquanto reeducação do poeta brasileiro através do
aprendizado do ‘estado da natureza’ via escritura
tupinizada.” (CAMPOS, 2004, p.131).
Já que, o romancista além
de recuperar a “história” do Brasil, procura engrandecer o país e exaltar a
Natureza brasileira, pretende também estabelecer uma língua Portuguesa no Brasil, mas com características
próprias de um idioma brasileiro, com
suas peculiaridades que a diferem da Língua Portuguesa típica de Portugal, por
isso o romance Iracema é marcado por
vocábulos indígenas e vocábulos abrasileirados, além do mais algumas regras
gramaticais do Português são subvertidas e abrasileiradas pelo romancista.
Nas palavras do próprio
romancista enunciando o seu programa, em Carta ao Dr. Jaguaribe, que vem em
posfácio à Iracema:
O conhecimento da
língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos
dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos
de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores
peculiaridades de sua vida. É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é
dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.
(ALENCAR, 1993, p.85).
Haroldo
de Campos (2004) entende dessa forma que é arruinado “a pureza do idioma
dominante, civilizado, dobrando-o à ‘fantasia etimológica’ (a fórmula é de
Cavalcanti Proença) da ‘expressão selvagem’.” (CAMPOS, 2004, p.133). Campos
afirma que o tupi “até certo ponto ‘inventado’” de José de Alencar (“pelo menos
tendo em conta o que diz Mattoso Câmara Jr., sobre a estrutura dessa língua,
cientificamente descrita e ‘desromantizada’”). (CAMPOS, 2004, p.134). Porém,
para Haroldo de Campos, o romancista “ao inventar o seu tupi como dispositivo
estético, Alencar constituiu uma imagem da sua prosódia, do seu ritmo, da sua
fonia.” E, ainda mais, José de Alencar e “essa pauta sonora idealizada (que se
transforma em programa de revitalização diferenciadora do português no Brasil
(...))”. (CAMPOS, 2004, p.134-35).
Dentro
do paradigma tupinizante e desse trabalho fônico, corresponde a ideia do
“estilo” como “arte plástica”, e como assevera Proença (citado por Campos
(2004)), a língua tupi exerce sobre a imaginação de Alencar um “traço visual de
seu espírito [que] só poderia estimular-se ao contato de uma linguagem que, por
ser primitiva, era concreta por excelência. ” (CAMPOS, 2004, p.136). “Tudo isto
convergindo para o programa da ‘barbarização’ estranhante: ‘é preciso que a
língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua
bárbara’” (ALENCAR, 1993, Carta ao Dr.
Jaguaribe, posfácio à Iracema).
Alencar
recorreu, segundo o poeta-crítico Haroldo de Campos, a uma prosa paramitológica
“de ‘decifração verídica’, através do recurso à estrutura fabular, haurida pela
mediação do folclore e da tradição oral.” Devemos lembrar que o romancista ao
tratar do enredo de Iracema, o chamou
de “lenda”, e não “romance histórico”.
E
é aqui que vemos com maior nitidez a força da proposta e do projeto literário
alencariano, pois José de Alencar escolheu um romance, uma “lenda” para narrar
o nascimento do primeiro cearense, Moacyr; e, sendo assim, escolheu o romance
para narrar o surgimento de um estado brasileiro, o Ceará. Ao invés do poema
épico “de molde camoniano, gasto por sucessivas diluições epigonais, de Prosopopeia (...) ao Caramuru e à Confederação dos tamoios, havia-se exaurido na série literária,
como padrão intertextual dotado de eficácia, sem que disto se dessem conta,
entre nós, os próprios poetas.” (CAMPOS, 2004, p.139).
À
exceção de José de Alencar, por isso mesmo, a importância que o escritor deu ao
romance como gênero literário apto a fundar a Literatura Brasileira e representar
os costumes nacionais. Para Alencar, o romance é a forma mais adequada para a
formação da literatura nacional e para a formação de um público leitor no
Brasil de obras literárias brasileiras (romances, de preferência).
Contudo,
ressalte-se mais uma vez, que o romance Iracema
é marcado pelo exótico e pitoresco e pela mera descrição dos costumes; a
personagem Iracema, por exemplo, não possui maiores detalhes em seu
aprofundamento psicológico, se o há.
Campos conclui seu estudo afirmando que
Alencar supera o poeta indianista brasileiro Gonçalves Dias, pois o primeiro
escreveu um “poema em prosa” indianista, Iracema,
de tal forma que “o maior poeta indianista (o único plenamente legível
hoje, se não pensarmos no indianismo às avessas de Sousândrade) foi um
prosador: José de Alencar.” (CAMPOS, 2004, p.145).
O teórico Silviano Santiago (1965)
analisa a tese alegórica que se vem fazendo em torno do significado de Iracema. O primeiro a perceber a nova
interpretação foi Afrânio Peixoto:
Iracema é o poema das origens brasileiras,
noivado da Terra Virgem com o seu Colonizador Branco, pacto de duas raças na
abençoada Terra da América. Não foi, pois, sem emoção, que descobri nessa
‘Iracema’, o anagrama de ‘América’, símbolo secreto do romance de Alencar que,
repito, é o poema épico, definidor de nossas origens histórica, étnica e
sociologicamente. (PEIXOTO, 1931, p.163, Apud SANTIAGO, 1965, p.63).
Outro aspecto relevante na obra Iracema é o significativo intercâmbio de
valores culturais e de civilização. É Martim que adotando a pátria da esposa e
do amigo (Poty), passa pela cerimônia da pintura guerreira e recebe mesmo um
nome de batismo, Coatyabo, o que sofreu a ação da pintura. “Se brasileiriza, se
tropicaliza.” (SANTIAGO, 1965, p.65). O intercâmbio se complementa com o
batismo de Poty, segundo os rituais da Santa Madre Igreja. Esse aspecto,
contudo, na obra alencariana é sublinhado com pessimismo por outra personagem,
nas palavras do ancião Batuireté, avô de Poty, proferidas quando da visita de
Poty e de Martim à sua cabana: “Tupã quis que estes olhos vissem antes de se
apagarem o gavião branco perto da narceja.” (cap. XXII). “Mais do que depressa,
para evitar qualquer desvio de interpretação, Alencar anota: “Ele profetiza
nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça branca.” (SANTIAGO, 1965,
p.66).
Ou seja, a aculturação da raça
indígena ante a raça branca europeia, em tom de pessimismo. Contudo, essa não é
a profecia de Iracema:
professa antes a mistura de raças, a
miscigenação no final (é bom frisar: apesar da morte de Iracema). E dos
elementos distintos, Martim e Iracema, nasce Moacyr, ‘o primeiro cearense’
(cap. XXXIII). Novamente o conhecimento do tupi-guarani auxilia-o na criação da
sua obra alegórica, na procura do nome próprio (também híbrido) adequado e
simbólico. Ainda nas preciosas ‘Notas’ que nos deixou informa: “Moacyr-filho do
sofrimento-de moacy, dor e ira, desinência que significa saindo de” (ALENCAR,
1993, p.77). Definição do brasileiro, filho do sofrimento, porque fruto do
encontro desencontrado. Peças que se adaptam pelo amor, e que não se encaixam
pelo social. Do encontro, o filho; do desencontro, o sofrimento. (SANTIAGO,
1965, p.66-67)
Para o teórico Silviano Santiago, a título de
conclusão de seu ensaio (1965), assevera que Iracema é uma alegoria “do nascimento do Brasil, da civilização
brasileira, dos contatos entre portugueses e índios, arquitetada cuidadosamente
e carinhosamente pelo autor, através de todo um trabalho na linguagem.”
(SANTIAGO, 1965, p.67).
Mais uma vez percebe-se que o que prevalece no romance
alencariano é o romance de costumes, com realce do exótico e do pitoresco, para
ressaltar a cor local e engrandecer a nação. Glorificar o país e fundar uma
Literatura genuinamente brasileira; buscando uma nacionalidade, uma brasilidade,
que se configurasse na formação de uma Literatura Brasileira independente da
Literatura Portuguesa. Tudo isso, contudo, prejudicava as análises psicológicas
das personagens, sendo assim os romances pecavam pelo aprofundamento da psiquê
das personagens. Prevalecia o mero romance de costumes em prejuízo do
romance/drama de caracteres.
O guarani escrito
e publicado originalmente em formato de folhetim em 1857, no mesmo ano foi
publicado também em livro, em virtude do sucesso entre os leitores. Composto
por quatro partes: Os aventureiros, Peri,
Os Aimorés e A catástrofe.
A Professora Lívila Pereira Maciel (2013, apostila O romance romântico e o projeto
literário de José de Alencar – O guarani – a epopeia da formação da
nacionalidade) afirma, nesse roteiro
de leitura sobre Análise estrutural
da narrativa, de Affonso Romano Sant´Anna, ao abordar o romance O guarani, de José de Alencar, que
a
narrativa de O guarani é simples, mas
não simplista. Trabalhando habilidosamente as possibilidades e contradições do
romance romântico, vale-se com muita liberdade da trama novelesca, da coloração
épica, do devaneio lírico, da anotação histórica, da fabulação mítica e
lendária, do ímpeto ideológico nacionalista e de elevada carga simbólica, tudo
isso revestido de uma profusão de luzes e cores que invade a pupila do leitor,
como se ele estivesse assistindo a um espetáculo grandioso (...), absorto pela
beleza da cena, mais do que pelos pormenores da intriga. (MACIEL, 2013, p.1).
Depois de todas as peripécias do enredo de O guarani, ao fim da obra, o romancista
José de Alencar sugere nas últimas linhas do livro, “uma bela união amorosa,
semente de onde brotaria mais tarde a raça brasileira...” (MACIEL, 2013, p.4).
Num primeiro momento, O guarani apresenta um cenário e as personagens são caracterizadas
pela ausência de conflitos, há uma harmonia entre a natureza e o polo cultural
europeu. Os domínios da casa/fazenda/fortaleza de D. Antônio de Mariz são marcados
por um regime que lembra o feudalismo da Idade Média europeia. D. Antônio de
Mariz tipifica o exercício de duas leis (a lei natural e a lei humana), ou
seja, é uma espécie de senhor feudal que acumula o poder humano e espiritual: “sendo
guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo” (MACIEL, 2013, p.5):
Assim
vivia, e no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena comunhão de
homens, governando-se com as suas leis, com seus usos e costumes; unidos entre
si pela ambição da riqueza e ligados ao chefe seu chefe pelo respeito, pelo
hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem
exercem sobre as massas. (ALENCAR, 2001, p.21).
A situação inicial da relação entre os protagonistas
Peri e Ceci (Cecília) é marcada por uma submissão do índio (guarani/goitacá),
chegando ao ponto de chamar a fidalga portuguesa de Iara, que significa senhora,
e várias vezes é referido como escravo submisso”, diante de uma mulher a qual
ele adora como se fosse a Virgem Maria, de que já ouvira falar na educação
mariana dos jesuítas, com a qual tivera ligeiro contato. Contudo, ao final,
Peri e Ceci serão descritos como irmão e irmã, “sugerindo uma integração total
dos elementos, de acordo, com a ideologia do autor, que agora vai afirmar a
supremacia da Natureza sobre a Cultura, pois só com uma cosmogonia total imersa
na Natureza, poderia ocorrer a Paz entre os polos.
Esse amor fraternal, porém, ao final do romance,
evolui para uma espécie de “amor edênico”, pois o novo casal, formado por Peri
e Ceci, constitui-se como o casal fundador da raça brasileira e de uma nova
civilização: a civilização americana, brasileira; civilização marcada pela
união amorosa entre Peri e Cecília e, portanto, pela miscigenação entre o índio
(Peri) e a branca (Ceci). Essa miscigenação somada ao dilúvio que marca o fim
da obra alencariana reforça e sugere ainda mais o caráter de fundação de uma
nova era, de uma nova civilização, na qual surgiria a verdadeira “raça
brasileira” ou “americana”, essa definida pela mistura entre o branco (a jovem,
Ceci) e o índio (o goitacá, Peri).
Segundo a Professora Maria Eunice Moreira (1989, p.163
ss e 172-73), citada por Volobuef, n´O
guarani:
o
romancista precisava de uma personagem positiva (já que o aborígene serve aqui
aos propósitos nacionalistas), e portanto investiu Peri das devidas
qualificações. Estas, no entanto, colocam-se em oposição aos guerreiros
aimorés, criando-se assim dois pólos contrastantes: o índio nobre e
‘civilizado’ (Peri) e os índios vivendo na barbárie (aimorés). O favorecimento
de Peri (como herói do texto) implica um favorecimento da civilização sobre a
selvageria. (MOREIRA, 1989, p.163 ss e 172-73, Apud VOLOBUEF, 1999, p.172, nota
de rodapé).
Interessante citar que Alencar
refuta a afirmação de que “O guarani
é um romance ao gosto de Cooper”. (ALENCAR, 1998, p.62). [romancista d´O último dos moicanos, escritor ao qual, os críticos e
leitores da época associaram a obra alencariana.]. Prossegue Alencar:
Se
assim fosse, haveria coincidência, e nunca imitação; mas não é. Meus escritos
se parecem tanto com os do ilustre romancista americano como as várzeas do Ceará
com as margens do Delaware.” [E, conclui
a esse respeito, dizendo] que a impressão profunda causada nele por Cooper
foi a impressão deste como “poeta do mar”. [José
de Alencar prossegue na sua explicação, a respeito de suas inspirações para a
obra O guarani, asseverando que: Quanto à poesia americana, o modelo para
mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre que eu tive foi esta esplêndida
natureza que me envolve, e particularmente a magnificência dos desertos que eu
perlustrei ao entrar na adolescência e que foram o pórtico majestoso por onde
minha alma penetrou no passado de sua pátria.” (Ibidem., p.62-63).
Além do mais, é perceptível que, mesmo nos romances em
que o índio é protagonista, o homem branco nunca é totalmente dispensado e, sempre
há o tema da miscigenação e aculturação. A mestiçagem é o caminho pelo qual
José de Alencar acreditava que a nova nação poderia definir seus traços
distintivos, responsáveis por demarcar sua especificidade e por diferenciá-la
de outras nações. Para a estudiosa Maria Cecília de Moraes Pinto (1995), “a
morte de Iracema após o nascimento de Moacyr sugere o desaparecimento da raça
indígena em seguida ao surgimento do ‘primeiro brasileiro’” (PINTO, 1995, Apud VOLOBUEF, 1999, p.173, nota de
rodapé.).
“Em O guarani,
além de haver a presença da personagem Isabel (filha de português e índia),
o núcleo de todo o enredo é o amor entre Ceci e Peri, insinuando-se no episódio
final do romance a ideia de união entre os dois.” (VOLOBUEF, 1999, p.173). Para
Wilson Martins, citando Karin Volobuef:
O guarani abre um novo
patamar no indianismo brasileiro: enquanto Gonçalves Dias louvava o indígena em
seu estado natural e Gonçalves de Magalhães (A confederação dos tamoios)
contrapunha o silvícola ao português branco que se apossou da terra pertencente
ao selvagem, José de Alencar debruçou-se sobre a questão da mescla racial entre
branco e índio. (MARTINS, 1996, p.32-33, Apud VOLOBUEF, 1999, p.173, nota de
rodapé).
“Até em Ubirajara,
cujo enredo passa exclusivamente em época anterior à chegada de Cabral, há o prenúncio
da chegada do homem branco como futuro senhor da terra.” (VOLOBUEF, 1999,
p.173).
A questão do mestiço nos romances de Alencar
configura-se como um dos temas principais (nos [romances] histórico-indianistas
e regionalistas). Basta perceber que
o
índio é forte, corajoso e inteligente, além de puro, nobre, gentil, sincero,
amante da liberdade; contudo, conforme já dissemos, o romancista não tem em
mente o louvor indiscriminado ao selvagem, mas a nobilitação do brasileiro ante
o europeu. Dessa forma, se o índio é dotado das mais seletas qualidades, com
isso Alencar quer sugerir que elas revertem para o homem brasileiro,
descendente do silvícola (bastaria uma comparação com as façanhas de Arnaldo,
em O sertanejo, e teríamos diante dos olhos os mesmos dotes físicos e morais de
Peri e Ubirajara.) (VOLOBUEF, 1999, p.174).
“Assim, cabe ao
índio, na qualidade de ancestral próximo de todo o nosso povo, simbolizar a
alma nacional, a alma brasileira,
servindo a sua pureza e vigor de contraste ao europeu ganancioso, arrogante, desabrido e inescrupuloso.”
(VOLOBUEF, 1999, p.174) [grifos da autora].
A expressividade do índio alencariano tem raízes
nacionalistas, ainda que seja uma figura artificial e extremamente idealizada,
nascida mais da fantasia do que da realidade; o próprio autor em sua
autobiografia literária, Como e por que
sou romancista: autobiografia literária em forma de carta, publicada em
1893, Alencar confessa: que n´O guarani
é um selvagem, é um ideal, que o autor
intentou poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os
cronistas. Ou seja, Alencar idealizou um ‘índio’, que nunca existiu no Brasil,
do século XIX para trás nos séculos, muito menos séculos pré-cabralianos.
Nesse processo de poetização do índio, Alencar se viu
obrigado a criar seu silvícola segundo os valores do homem branco. Para que o
índio alencariano não parecesse ridículo e embrutecido aos olhos dos leitores,
Alencar busca resolver esse problema, inspirando-se nos parâmetros do
romantismo histórico europeu, “Alencar optou por insuflar no coração de seu
silvícola os sentimentos e as normas de conduta do cavaleiro medieval.”
(VOLOBUEF, 1999, p.175). Essa atitude do autor foi, sem dúvida, uma escolha
paradoxal, contrapõe-se “à diretriz nacionalista de Alencar; contudo, tal
expediente permitiu criar uma figura intrinsecamente positiva, que concilia
altivez e generosidade, amor e bravura, honra (...)” (VOLOBUEF, 1999, p.175).
Pode-se dizer que os leitores de José de Alencar se
encantavam pelos índios alencarianos, pois estes eram europeizados e
registravam marcas dos próprios brancos europeus ocidentais, leitores de classe
alta e média burguesas, que viviam no Rio de Janeiro, basicamente, que liam as
obras indianistas-históricas de José de Alencar, que acabou por criar “um
índio” que satisfazia aos seus propósitos literários (projeto de literatura),
quais sejam, de construir um passado viçoso, condigno do futuro soberbo que se
lhe afigurava no horizonte, e capaz de fazer o público leitor se inflamar de nacionalismo
e de extasiar de admiração o estrangeiro.
Afinal de contas, o romancista não pretendeu escrever
trabalhos historiográficos ou antropológicos, e sim romances.
Abordemos, nesse momento, o romance urbano de Alencar.
“Alencar faz um retrato tão completo e exato que ‘seus romances urbanos
representam um levantamento da nossa vida burguesa do século passado(...)’ (ALENCAR,
1986, p.261, Apud VOLOBUEF, 1999,
p.182), Volobuef observa que
(...)
no romance urbano entra ação (além da fantasia) também a observação perspicaz
da realidade. De modo geral, personagens e situações aproximam-se mais da vida
cotidiana extraficcional e, consequentemente, tornam-se mais verossímeis e autênticos. A elite
carioca é retratada sob uma óptica de pitoresco
e moralismo, havendo muitas vezes uma nota de humorismo singelo e brejeiro.
(VOLOBUEF, 1999, p.182) [grifo meu]
Analisemos,
dentre os principais romances urbanos de Alencar, a obra Lucíola (1862), de forma mais detalhada. José de Alencar não
demonstra falta de originalidade ou inspiração, ao escrever Lucíola, visto que o texto apresenta
inúmeros pontos de contato com A dama das
camélias, de Alexandre Dumas Filho, evocando, nas palavras de Valéria De
Marco:
Margarida
Gautier [protagonista do romance de Dumas], Alencar não está apenas mobilizando
a memória de seus leitores para enriquecer sua pecadora arrependida com os
matizes daquela famosa personagem dos salões franceses. Com este recurso
literário, ele quer discutir o aproveitamento dos modelos importados;
desenvolver uma reflexão sobre as relações entre a literatura nacional e a
estrangeira através das lentes oferecidas pela modernidade romântica;
nacionalizar o tema da regeneração da mulher perdida; criar, enfim, o perfil da
cortesã do Império. (DE MARCO, 1986, p.148, Apud
VOLOBUEF, 1999, p.25, nota de rodapé.).
E, vale ressaltar que
a
par da enorme disposição romântica para retratar ambientes exteriores com fidelidade pictórica, não se percebe igual
propensão para explorar os aspectos
interiores ou psicológicos do indivíduo. As incipientes tentativas no campo
das análises psicológicas (...) (VOLOBUEF, 1999, p.222) [grifos da autora].
“Lucíola é
o quinto romance de Alencar, e o primeiro da trilogia que ele denominou de ‘perfis de mulheres’ (Lucíola, Diva e Senhora).” (MACIEL,
2013, p.1). A obra busca fixar o Rio de Janeiro da época, pois se trata também
de um romance urbano, que busca retratara Corte. A
Professora Lívila Pereira Maciel (2013) cita importante estudo de Oscar Mendes
(1965), no qual o teórico percebe que em todos os romances urbanos
alencarianos, o romancista aborda o amor como tema central; “ou, para ser mais
exato, ‘aborda a situação social e familiar da mulher, em face do casamento e
do amor’, segundo Heron de Alencar.” (MACIEL, 2013, p.2). Mas o amor como era
entendido pelos românticos da época, “um amor sublimado, idealizado, capaz de
renúncias, de sacrifícios, de heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela
própria força acrisoladora de sua intensidade e de sua paixão.” (MENDES, 1965,
p.10, Apud MACIEL, 2013, p.2).
Em Lucíola, o
tema principal está na exaltação do amor como força purificadora e
regeneradora, capaz de transformar uma meretriz numa amante sincera e fiel.
O romance termina com esta ‘patética’ exaltação do
amor, balbuciada por uma prostituta regenerada por esse mesmo amor, momentos
antes de sua morte” (MACIEL, 2013, p.5):
Eu
te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias
que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes,
amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com
todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a
eternidade. (ALENCAR, 2000, p.125).
Pelo exposto percebe-se que não há um maior
aprofundamento psicológico da personagem, mesmo em momentos tão agoniantes. Prevalece
um enredo romântico marcado, excessivamente, pelo sentimentalismo exacerbado,
em prejuízo do drama de consciência. Porém, vale ressaltar que nesse último
trecho transcrito de Lucíola, há um esboço de análise psicológica tentada
pelo romancista, porém, a mesma é frustrada, pois cai nas raias do ridículo.
Essas análises psicológicas (“incipientes”) dão-se, em
Alencar, principalmente em Lucíola e Senhora (1875). Porém, como já afirmado
diversas vezes nesse ensaio, as análises psíquicas são prejudicadas e são
feitas em menor escala durante as obras, visto que, mesmo nos dois romances citados
acima, o drama de caracteres não se sustenta, porque o romancista acaba por
privilegiar mais uma vez os aspectos exteriores à personagem humana,
favorecendo e destacando o romance de costumes.
A
dimensão em que se inserem as personagens românticas não é a individual, mas a
social, revelando, também nessa instância, o nacionalismo dos seus criadores. (VOLOBUEF,
1999, p.224).
“Em Alencar”, por isso mesmo e pelo excessivo apreço à
descrição da paisagem, da Natureza, da fauna e da flora, da terra e do mar, de
forma exótica e pitoresca, destinam-se, porém, também ao desenho da personagem
-tanto
feminina (...) como masculina, (...) serve para circunscrever a essência de
todas as emoções e da vida sentimental que animam essas personagens. A Natureza
determina o exterior e o interior da personagem, moldando-a por fora e por
dentro. (VOLOBUEF, 1999, p.236).
O crítico Roberto Schwarz, ao analisar, a dificuldade
de José de Alencar em conciliar o “enredo romântico” e uma “notação realista”,
aponta, justamente, nesse fato as qualidades e defeitos do romancista: na não
resolução dessa equação resulta as qualidades -, (tentou sempre manter, trazer
e absorver o material autóctone do Brasil, para sua Literatura; e, os defeitos
de Alencar, porque não resolveu a dicotomia incongruente entre o material
autóctone e os elementos estrangeiros
europeus e do homem branco).
Analisemos, a partir de agora, o romance regionalista
ou “sertanejo”, de José de Alencar que “dentre os escritores adeptos desse
filão do romance romântico, Alencar foi o único que pretendeu abarcar diversas
regiões, tematizando o norte (em O sertanejo), o sul (O gaúcho) e o sudeste
(Til e O tronco do ipê).” (VOLOBUEF, 1999, p.186).
Da mesma forma que o romance urbano, o regionalista
pretende desenvolver a análise social, a análise dos costumes e a análise
cultural do país, o que não o impede, de outro modo, de configurar-se como um
depositário de um amplo retrato da Natureza brasileira, aproximando-se, dessa
maneira, do romance histórico-indianista.
O romance regionalista desenvolve-se em José de
Alencar com o predomínio da imaginação sobre a observação in loco da região retratada.
Para o crítico
Massaud Moisés, “sua ideia [de Alencar]
das diversidades regionais nasceu exclusivamente de leituras realizadas e,
consequentemente, o resultado foi que a imaginação teve que suprir os vácuos
ocasionados pela falta de experiência própria.” (MOISÉS, 2001, p.396-97). O
principal romance regionalista de Alencar é O
sertanejo (1875). Para Candido (2012),
N´O
sertanejo, a posição subordinada do vaqueiro Arnaldo, afastando a própria ideia
de união a Dona Flor, determina o seu heroísmo, que aparece como necessidade de
compensação, assumindo aos poucos um caráter tirânico de vigilância, que
imobiliza finalmente o destino da moça. (CANDIDO, 2012, p.542-43)
O crítico Antonio Candido afirma ainda que é possível
se fazer uma leitura da obra levando em consideração, uma possível tradição
literária a qual esteja inscrita a referida obra de Alencar, Candido refere-se
a Walter Scott, pois “N´O sertanejo, o
entrecho decorre das perfídias do capitão Fragoso – o Reginald Front-de-Boeuf
deste romance calcado no arcabouço do Ivanhoé.”
(CANDIDO, 2012, p.544). Essa intertextualidade com o escritor escocês e,
portanto, pertencente à tradição do Romantismo Inglês, pode-se depreender da
referência que Alencar faz em sua autobiografia, Como e por que sou romancista (1998), ao escritor britânico:
“Devorei
os romances marítimos de Walter Scott (...)” (ALENCAR, 1998, p.53). Tudo isso
reforça o afirmado mais acima, a respeito do caráter heroico da personagem
Arnaldo, o vaqueiro protagonista d´O
sertanejo.
O romance
brasileiro da época romântica tem como ideal fundamental a criação e a fundação
de um painel amplo e diversificado do Brasil, abarcando o âmbito da história,
da geografia e do elemento humano, que se funda ao romance nacional e,
portanto, a Literatura Brasileira que se transmude numa estética literária
propriamente nacional. “O romance romântico visou acender no peito de seus
leitores um sentimento de orgulho nacional.”. (VOLOBUEF, 1999, p.196).
Evidencia-se, portanto, a criação e a elaboração do projeto
nacional alencariano de literatura para o país. Projeto literário que buscava a
formação da identidade da nação brasileira recém-independente de Portugal; por
meio de uma literatura que exaltasse a cor local, reverenciasse a exuberância
de nossa Natureza e apresentasse a gentilidade de nossa gente. Tendo como
recurso e gênero literário preferencial o romance, mais especificamente o
romance de costumes, que seria o gênero literário mais apto para essa função de
engrandecer o país e formar a Literatura nacional, constituindo um verdadeiro
projeto literário idealizado por José de Alencar.
Um projeto
nacional, que acabou valorizando a cor local, o pitoresco, o exótico, em
detrimento do drama de caracteres. Faltando, na maioria das vezes,
aprofundamento psicológico das suas personagens, característica esta do romance
psicológico, mas não do romance de costumes romântico brasileiro. Essa falta de
profundidade psicológica não típica só de Alencar, mas verificada também em
outros prosadores do Romantismo brasileiro; com raras as exceções, em que
aparecem determinadas obras e, mesmo assim, não na obra inteira, apenas eivos
de análise psicológica, que aparecem aqui e acolá, na trama de uma obra; ou
numa obra com mais força, porém mesmo assim discretamente. Podemos citar Senhora, de José de Alencar, como um
romance de costumes romântico, que tem algum aprofundamento psicológico, ainda
que discreto.
Contudo e, por isso mesmo, o pitoresco e o exótico se
sobressaem demasiadamente, excessivamente, em prejuízo do drama de caracteres.
O romance de costumes prevalece como forma de enaltecer a cor local e as
grandezas do Brasil, enquanto o romance psicológico, a psiquê das personagens
não é aprofundada. Daí reforçar-se a ideia de que enquanto projeto literário,
Alencar estava certo: o romance (e suas variações narrativas, mais o teatro) é
o gênero literário apto para a formação da Literatura Brasileira e seu público
leitor (e não mais a epopeia e o verso), em meados do século XIX; porém, seu
projeto esbarrou no pitoresco e, portanto, enquanto forma literária não se concretizou, ficou apenas no ideário, no esboço. Porém, Alencar publicou romances
em que a análise psicológica aparece em eivos,
em rápidas pinceladas; são exceções as obras alencarianas (Lucíola e Senhora), que
apresentam aprofundamento psicológico, as quais não sustentam o drama de
consciência na obra inteira. E, entre seus contemporâneos românticos, temos
também raras exceções, todavia mais amiúde ainda.
Para corroborar
com o dito acima, busquemos críticos respeitados que analisaram o exposto, como
por exemplo, Antonio Candido, que em seu ensaio “Literatura de dois gumes”, propõe
que os escritores românticos brasileiros, de certa forma, criaram uma história
que justificasse o período colonial (mais detalhes em outro ensaio de Candido,
“Literatura e subdesenvolvimento”). “Do mesmo modo, ela [elite da época] inventou,
criou um tipo de história, por meio da avaliação especial da mestiçagem e
do contato de culturas.” (CANDIDO, 2006, p.208). [grifos do autor].
Assim, para o sociólogo:
(...)
escolher no passado local os elementos adequados a uma visão que de certo modo
é nativista, mas procura se aproximar o mais possível dos ideais e normas
europeias. Como exemplo para ilustrar este fato no terreno social e no terreno
literário, intimamente ligado no caso, tomemos a idealização do índio.
(CANDIDO, 2006, p.208-9).
Portanto, estar aí uma possível justificativa do
porquê de José de Alencar escrever e se notabilizar pelos seus belos romances
histórico-indianistas. O índio ainda sem contato com o invasor português, Ubirajara, o Peri que mais parece um
cavaleiro medieval europeizado, d´O
guarani e Iracema que ao unir-se
com Martim (português), dessa união gerou um filho, Moacyr que é o “primeiro
brasileiro”, o “primeiro cearense”; mostrando assim, a miscigenação que ocorreu
no Brasil.
Candido alerta, contudo, e bem a propósito, que essa
mestiçagem é parcial (em Alencar), pois:
Note-se
que esse índio eponímico (...), justificador tanto da mestiçagem quanto do
nativismo, podia ter curso livre no plano da ideologia porque a sua evocação
não tocava no sistema social, que repousava sobre a exploração do escravo negro
– e este só receberia um esboço de tratamento literário idealizador na segunda
metade do século XIX, quando começou a crise do regime servil. (CANDIDO, 2006,
p.209)
O resultado disso, para Antonio Candido,
foi construir um índio, como símbolo nacional. O índio tornou-se, portanto,
personagem literária privilegiada. José de Alencar e sua proposta indianista
são de cunho nacional, pois ainda coincidem com a Independência política do
Brasil em relação a Portugal (1822).
Dessa forma, tudo que era concebido no
Romantismo Brasileiro (inclusive por José de Alencar), era escrito de acordo
com os parâmetros literários mais autenticamente brasileiros, e assim se definiu um critério que
vinculou a produção literária à construção da nacionalidade.
Agora, para finalizar, façamos uso de um crítico da
época, e também escritor, Machado de Assis, que em seu ensaio “Notícia da atual
Literatura Brasileira – instinto de nacionalidade” (1873), analisa esse
“instinto de nacionalidade” (p.17).
Machado afirma que: “Poesia, romance, todas as formas
literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar
que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.” (p.17)
“Sente-se”, afirma Machado de Assis, que o público leitor, (...) “Há nela [opinião pública] um instinto que leva a
aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude
literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor-próprio.”
(p.17)
O crítico Machado de Assis ressalta a importância
literária do Romantismo e do indianismo e sua cor local, mas rebaixa a
literatura que faz só e abusivo do exótico e do pitoresco [grifos meus]. Machado afirma que “Meu
principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei,
o geral desejo de criar uma literatura mais independente.” (p.18) Entenda-se
mais independente da Literatura de Portugal.
Ao tratar, em específico, do gênero literário
denominado romance, que para Machado
é o mais “cultivado” e “apreciado” no Brasil e “em toda parte”, ele crê nisso,
faz questão de ponderar, para depois afirmar que “Aqui o romance, (...), busca
sempre a cor local.” (p.22).
Porém, passa Machado de Assis a fazer uma observação
que é central para o debate deste presente ensaio: “Do romance puramente de
análise, raríssimo exemplar lemos, ou porque nossa índole não nos chame por aí,
ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência
literária.” (p.22)
Prevalece, portanto, o romance de costumes, marcado
pelo exótico e pitoresco, e pela busca da cor local, o que Machado denominou
“instinto de nacionalidade”. Ressaltando a prevalência do romance de costumes
em prejuízo do romance de drama de consciência.
E Machado de Assis conclui a esse propósito:
Pelo
que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os
exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável.
Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo
das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares
de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem
são a partilha do maior número. (ASSIS, 1997, p.23).
De forma irônica e com alta dose de sarcasmo o mestre
Machado de Assis demonstra que é mais fácil escrever romances de costumes, que
primam pelo exótico e pelo pitoresco; e, que, no caso, do Romantismo Brasileiro
do século XIX, o romance buscava a cor local, o “instinto de nacionalidade”,
para engrandecer uma nação; e fundar e formar uma Literatura.
Já o escritor e
crítico Machado de Assis constata que é dificílimo para um romancista escrever
uma obra genuinamente elaborada e que faça uso do drama de consciência; e que
se constitua realmente em um drama de caracteres. E, por isso mesmo,
constitui-se o processo de escrever tal obra, um duro e árduo processo de
elaboração, mas que culmina em um verdadeiro romance psicológico, porém, poucos
conseguiram realizar tal feito literário. Dos que obtiveram êxito nessa
empreitada, está justamente o nome de Machado de Assis, inscrito no cânone da
Literatura Universal.
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e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
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