CRIME E CASTIGO – DOSTOIÉVSKI
“(DUPLO E
INDIVIDUAÇÃO EM CRIME E CASTIGO, DE DOSTOIÉVSKI).”
(RESENHA
POR RAFAEL VESPASIANO).
“O romance “Crime
e castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866, é uma
obra-prima da Literatura Russa realista e da História da Literatura Ocidental.
O formalista russo Jakobson a denomina de “Realismo Artístico”, para
diferenciar “Crime e Castigo” e
outras obras do “Realismo-Naturalismo” também um estilo literário do século XIX,
puramente “científico”, que se baseia no Determinismo de Taine, Evolucionismo de
Darwin, Positivismo de Comte, etc.
Para Jakobson, o realismo artístico é “o realismo
revolucionário na literatura” (JAKOBSON, 1973, p. 122). Pode-se, assim, ser
visto de acordo com o abordado acima:
que falamos (...) da significação (...) do termo
realista, isto é, da tendência rumo à verossimilhança artística, vemos
[contudo] que esta definição deixa lugar a uma ambiguidade: (...) – a tendência
a deformar cânones artísticos em curso, interpretada como uma aproximação à
realidade [realismo-científico]; (...) – [que é] a tendência conservadora
limitada no interior de uma tradição artística e interpretada como uma
fidelidade ao real, [mais uma vez se trata do naturalismo científico de um Zola, por exemplo, do romance de tese, Germinal.]. [inserções do resenhista] (Ibidem., p. 122-23).
Por outro lado
Jakobson defende o realismo que “chama-se realismo a motivação consequente, a
justificação das construções poéticas.” (Ibidem., p. 127). O formalista russo,
portanto, designa, “a exigência de uma motivação consequente, a justificação dos
procedimentos poéticos (...).” (Ibidem., p. 127). Ou seja, o “realismo
artístico” é verossímil, sim, mas não “deforma” a realidade em busca da
verossimilhança e da comprovação de uma tese, porém, reinventa, recria verossimilhante e artisticamente a realidade. É o caso de Dostoiévski em seus escritos.
“Crime e Castigo” é uma obra-prima da
literatura mundial, escrita pelo russo Dostoiévski. O principal tema tratado no
romance é a dualidade dinâmica entre sanidade e loucura. Aquele dualismo não
sintético é manifestado, na figura da protagonista, Raskólhnikov (nome que na
etimologia do idioma russo, significa um ser com existência dividida, o que é o
caso da personagem citada). Aquele é um estudante de Direito, da capital russa,
de então, São Petersburgo, mas, que por causa da falta de dinheiro, abandona os
estudos, a partir desse fato passa a viver, recluso em seu quarto, sem querer
ver ninguém (insociável), arredio, em completa solidão, tristeza, melancolia,
infelicidade, vazio existencial, esses sentimentos são demonstrados ao leitor
pelo fluxo de consciência de Raskólhnikov, visto que ele passa a ter a mania de
falar sozinho, consigo mesmo, o que os críticos atuais, como Ronaldes de Melo e
Souza preferem caracterizar como “monodiálogo”, o que remete às características
teatrais do Monólogo e do Diálogo. Mas, o fluxo de consciência predomina na
obra inteira, por meio de murmúrios e solilóquios - inclusive, quando ele está
no meio da rua e de outras pessoas (quando sae à rua e/ou vê outras pessoas, o
que é raro), estas percebem tal fato, sem que o protagonista se dê conta do
mesmo.
Nessa situação de reclusão, desenvolve uma teoria, que
passa a ser uma ideia fixa em sua mente (monomania) - a teoria que a
protagonista do romance elabora consiste em que existem pessoas diferenciadas
(geniais) do restante da sociedade (pessoas materialistas), a partir disso
aquelas poderiam cometer crimes justificáveis, que não seriam crimes passíveis
de condenações, pois resultariam em boas ações para o restante da humanidade
(Raskólhnikov cita como um “ser genial”, o Imperador Francês Napoleão
Bonaparte) -, dialogando com a teoria filosófica do escritor Nietsche e o seu “super-homem”.
A partir dessas teorias, Raskólhnikov começa a pensar
que também ele próprio é um desses “seres geniais”, dado o seu grande
amor-próprio, então resolve cometer um assassinato, para provar sua teoria e
ter a sensação de matar, sensação esta que o revolve psicologicamente. Planeja,
portanto, a morte de uma velha usurária, segundo ele, mesquinha e imprestável,
que não fará falta à humanidade (considera, inclusive, aquela como um “piolho
da sociedade”), além de tudo isso pretende também ficar com o dinheiro que a
velha usurária ganha com o resgate dos objetos penhorados pelas pessoas, já que
este dinheiro será útil para Raskólhnikov retomar os estudos, melhorar sua vida
e de sua mãe e irmã, os únicos parentes que ele tem; enfim, prepara em todos os
pormenores o crime, executa-o, mas acaba matando também uma pessoa inocente,
que não estava nos planos, pois esta presenciou o crime.
Depois que comete o crime, Raskólhnikov começa a se
sentir culpado e com remorso, passando a viver uma crise existencial maior que
aquela que vivia antes do “crime”, com um tremendo peso na consciência,
ressaltando nos “monodiálogos” e nos fluxos de consciência, que Dostoiésvski,
enquanto autor-narrador elabora e desenvolve em seu enredo de grande
dramaticidade psicológica.
René Girard (2011) em sua obra crítica sobre a prosa
de Dostoiévski, Dostoiévski: do duplo à unidade,
analisa as obras romanescas sobre o ponto de vista do Duplo na Teoria
Literária, segundo os estudos pioneiros de Otto
Rank, em O duplo. Girard também ressalta em seu livro teórico alguns
aspectos biográficos do escritor russo de “Crime
e castigo”, que não nos interessa neste post.
Girard faz uma observação preliminar sobre a
personalidade de Raskólhnikov - seguindo seu estudo das personagens
subterrâneas das obras em prosa de Dostoiévski, as “personagens do subsolo”,
parafraseando a própria novela do escritor russo, Memórias do subsolo – “Raskólhnikov
não sabe se sua solidão faz dele superior ou inferior aos outros homens, um
deus ou um verme da terra. E o Outro [duplo] permanece sendo o juiz do debate
[Deus?].” [inserções minhas]. (GIRARD,
2011, p. 66). A personagem principal do romance em debate, diga-se de passagem,
também, evidentemente, por tudo já explanado até aqui, caracteriza-se como uma
personagem monomaníaca, subterrânea, do subsolo.
Continua Girard
a asseverar: “Raskólhnikov, no fim das contas, não é menos fascinado pelos
juízes que Trussótzki (...)” (Ibidem., p. 66), investigador encarregado do caso
do crime perpetrado pela protagonista, policial que é o “duplo”, rival,
obstáculo, “o Outro”, que se opõe àquele e precisa, de alguma forma, ser
eliminado pela personagem principal, nem que seja psicologicamente, porém, de
forma catártica e definitiva. Uma catarse extrema ao nível psicológico, lógico,
num processo que vai além do meramente catártico: se evidencia, então, o
processo de individuação psíquica da personalidade, outrora cindida da
personagem, que agora passa a ter sua psique restabelecida e não mais dividida.
Só que isso só vai acontecer à Raskólhnikov, ao final da obra, pois, como “(...)
Raskólhnikov depende sempre do veredito do Outro.” (Ibidem., p. 66), René
Girard faz a mesma observação que a feita por mim, anteriormente, a respeito do
nome da protagonista do romance de Dostoiévski, pois “o próprio nome do herói
sugere essa dualidade [de duplos]. Raskol
significa cisma, separação.” [inserções minhas] (Ibidem., p. 66).
Assim, esse processo de duplo entre o
estudante-e-investigador causa uma ruptura na personalidade de Raskólhnikov,
tal cisão só pode ser resolvida, no caso de “Crime e castigo”, pelo castigo, pela prisão que é uma catarse para
a protagonista. E, lógico, pela individuação, eliminação simbólica e
psicológica do duplo.
Retomando a breve descrição do enredo da obra, em
nenhum momento, por isso tudo, Raskólhnikov usa o dinheiro e objetos roubados
para proveito próprio, esconde-os e se esquece deles, tal a sua crise e sua
consciência pesada. A crise existencial em que entra, passa a ter constantes
delírios, alucinações (já as tinham, mas agora se intensificam), é, então, que
ele passa a sofrer o “castigo” que o título do romance já sugere.
O cerco começa a se fechar e ele resolve se entregar à
polícia, mas, ainda acha que sua teoria é verdadeira, o único senão é ter-se denunciado
o que prova que ele é um reles, um insignificante, um pusilânime e, não um “ser
genial”, mas aquela sua teoria se aplicaria a outras pessoas, contudo, como já
foi dito, não a ele, mas o que não a invalida.
Porém, na prisão, ele admite que estivesse errado e
sua teoria não tinha nada a ver com a realidade humana, alcança, enfim, uma
possível réstia de esperança de um porvir de catarse, por meio do amor que passa
a nutrir por uma mulher e A Deus, sendo que antes Raskólhnikov era ateu. Aqui
mais uma das “eternas” reflexões das novelas, contos e romances do escritor
russo: materialidade e espiritualidade; religião e ateísmo; a existência ou não
de Deus; a fé e a descrença; a confiança ou não nas instituições religiosas
comandadas pelos homens da Rússia do século XIX, etc.
Dessa forma, o desfecho do romance com o enlace
amoroso entre a personagem principal, na prisão, e seu par amoroso, Sônia e “a
conclusão evangélica”, é, segundo Girard uma pergunta de Dostoiévski “se um
orgulho mais extremo ainda que o de Raskólhnikov não poderia (sic) triunfar justamente onde seu herói
fracassou.” (Ibidem., p. 67). (?).
Em Zaratustra,
Nietzsche com certeza afirmaria que o fracasso de Raskólhnikov deve-se:
à covardia dos ‘homens inferiores’, ou seja, à
covardia do subsolo. Como Dostoiévski, Nietzsche acredita reconhecer no que se
passa em torno dele [Raskólhnikov] uma paixão
do orgulho moderno. [grifos do
autor]. [inserções minhas]
(Ibidem., p. 67).
Gerando uma espécie de “ressentimento” do homem
moderno, do homem do “subterrâneo” ou do “homem do subsolo”, uma covardia, que
gera fracasso ad eternum - só
possível sua resolução, segundo o crítico francês René Girard, por meio da
eliminação do duplo da personagem principal e consequente individuação da mesma
personagem de “Crime e castigo”.
A loucura e a alienação mental de Raskólhnikov antes e
durante o “crime” mostram-se temporárias, pois, após aquele ato, a alienação
mental, aos poucos, vai desaparecendo e ele vai retomando sua consciência e o
pleno controle de suas faculdades mentais, mostrando que a alienação mental era
passageira, o “castigo” serve justamente para isso: a retomada do controle de
sua mente.
O romance é pontuado por brilhantes análises
psicológicas, ponto forte do livro; o autor utiliza todas as informações dadas
ao leitor, amarrando-as, ou seja, tudo que é dito no decorrer da história tem
sua importância, portanto nada é supérfulo ou dito à toa.”
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Crime e castigo. São Paulo:
Nova Cultural, 2003.
GIRARD,
René. Dostoiévski: do duplo à unidade. São
Paulo: Realizações Editora, 2011.
JAKOBSON,
Roman. IN: JAKOBSON, Roman et all. Teoria da literatura: formalistas
russos. “Do realismo artístico” (p. 121-27). Rio de Janeiro: Globo, 1973.
Não há como não admirar um autor como DOSTOIÉVSKI. Muito boa a resenha e parabéns , meu amigo!!!
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