MANUAL DA PAIXÃO SOLITÁRIA,
MOACYR SCLIAR
(“(RE)-CRIAÇÃO POÉTICA DA REALIDADE
PELA (DES)-CONSTRUÇÃO.”).
(RESENHA POR RAFAEL VESPASIANO
FERREIRA DE LIMA).
“O romance Manual da paixão solitária, de Moacyr
Scliar, entrelaça tempos mitológicos (bíblicos) com a contemporaneidade do
momento presente. Tomando como ponto de partida uma concisa narrativa de uma
“história” do Velho Testamento, e,
com a narrativa se mantendo sempre de maneira cronológica e linear, é contada
aquela “história” que conduzirá todo o romance, transformando-o de uma aparente
simplicidade a uma complexidade, em como são articulados os conceitos
romanescos de Tempo e de Personagens.
Como afirma Vilma
Costa:
o tempo
histórico se desdobra entre o momento contemporâneo e um passado distante. O
primeiro dramatiza o universo intelectual de uma suposta Sociedade Cultural de
Estudos Bíblicos que, ao organizar seu congresso anual, ‘selecionou uma passagem
bíblica como tema central do encontro: Gênesis, capítulo 38, texto que conta a
história do patriarca Judá, de seus filhos e de uma mulher chamada Tamar’. O
objetivo do evento, segundo seus organizadores, era ‘estudar a Bíblia sob um
enfoque científico e cultural’. (COSTA, Vilma http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-arte-de-viver-e-de-morrer/, julho de
2009).
O romance desenvolve-se
em torno, principalmente, de quatro personagens, a saber: Shelá, filho caçula
de Judá, o historiador Haroldo Veiga de Assis, que como afirma a Professora
Vilma Costa “conduzem a primeira parte do romance.” (Ibdem, ibdem.). Na segunda
parte da obra, Tamar e Diana Medeiros, esta, como bem salienta Costa, “também
professora, ex-aluna e ferrenha opositora do professor Haroldo” (Ibdem, ibdem.),
tomam a condução da narrativa da trama, dessa forma sob outro ponto de vista,
com suas próprias vozes, recontam a mesma “história”.
Interessante notar
também um terceiro enfoque narrativo, que é estabelecido por uma “voz
mediadora”, que se enuncia em terceira pessoa, “com uma introdução, uma
finalização e uma pequena explicação interligando as duas partes do livro”.
(Ibdem, ibdem.). Este ponto de vista é marcado tipograficamente à maneira dos
modernistas, que buscaram tal engenho literário na vanguarda europeia do início
do Século XX, chamada Futurismo. Mas que já se apresentava na literatura em
fins do século XIX entre os simbolistas franceses, em especial, Mallarmé, e,
até entre os escritores simbolistas brasileiros do fim de século, início do
século XX. É feita uma referência vaga a um “autor”, que segundo a Professora
Vilma Costa tem a função de costurar
e assegurar coesão e coerência à trama romanesca. Este “autor” poderia ser
encarado também, já pela abordagem crítica de Beda Alleman e também de W. Iser,
como um “autor implícito”, figura fictícia que metamorfoseada é a persona e voz
do escritor Scliar, encarado como pessoa física.
O Manuscrito de Shelá é apresentado pelo historiador Haroldo Veiga,
como uma recente descoberta arqueológica, a uma plateia que está ansiosa por
novidades bíblicas, porém o relato de uma personagem (Shelá) tão insignificante
para o texto original como um todo. Mas isso acontece, pois segundo Costa:
o ponto de vista
de Shelá estabelece uma relação de proximidade e identificação com o professor,
que ganhou notoriedade por sua criativa e audaciosa maneira de abordar a
História Sagrada. Sua retórica de pretensão científica, contudo, transita nas
vielas das artes cênicas e literárias, nas quais o caráter imprevisível garante
a sedução do ouvinte, espectador e leitor. Sob esse eixo é que vai sendo
construindo, propriamente, a primeira parte do livro. (Ibdem, ibdem.).
A segunda parte é
(re)-contada por um ponto de vista feminino, indo além na voz da historiadora
Diana Medeiros, que se mostra uma personagem fortemente marcada pelo discurso
feminista. “Diana Medeiros lê a história como se fosse contada por Tamar,
guiada pela mesma sequência da ação bíblica, mas, claro, com outro enfoque.”
(Ibdem, ibdem.).
Moacyr Scliar publicou
dois romances sustentados pelo mesmo viés-, diríamos desconstrucionista (nos
termos de Jacques Derrida), a saber: A
mulher que escreveu a bíblia e Os
vendilhões do templo-, isso é possível, pois o Texto Bíblico, como afirma
Vilma Costa além de ser carregado de todo o seu teor religioso, vai mais além
já que:
[o] conteúdo
histórico que contém, traz em si um leque muito amplo de simbologias de nossa
civilização que o torna um terreno muito fértil para a imaginação artística e
criadora. É, sem dúvida, o que é conceituado, nos dias atuais por um
hipertexto, sobre o qual muito já foi dito, mas muito ainda se tem a dizer, ou
referendando seus preceitos, preenchendo lacunas, ou em direção oposta, a
“contrapelo”, estabelecendo pontos divergentes de interpretação. (Ibdem,
ibdem.).
Essa desconstrução
da visão clássica da Bíblia Sagrada, uma desconstrução, que se dá,
primeiramente, pelo ponto vista masculino, patriarcalista e até machista, mais
ligado ao passado remoto (mas tão presente!); depois se apresenta outro ponto
de vista, só que neste segundo relato, o viés é do discurso feminino e, também,
até feminista (mais atual, a partir dos anos 1960, do século XX, com mais
evidência, ainda bem!); duas reformulações de uma mesma história bíblica, debatida
num congresso científico.
E até
mesmo no epílogo-, um epílogo irônico e desarmônico, assim como qualquer
relação interpessoal contemporânea-; tudo isso evidencia as técnicas de
tessitura romanesca ficcional de Moacyr Scliar, que escreve, por vezes, pelo mecanismo de desconstrução. O escritor
faz uso dessa solução literária para escrever narrativas que desconstruam o
tradicional, o clássico, o passado antes incontestável.
Tendo como ponto de
partida os relatos orais, até na fixação escrita através das formas mais
rudimentares possíveis é que se estabelece o interdiscurso entre História e
Literatura. Podemos concordar com a Professora Vilma Costa, que é a História
Sagrada que instaura a interpretação literária pelo viés hermenêutico, ou seja,
interpretativo. “Reafirma, portanto, o poder da palavra e a sua perenidade no
decorrer dos séculos, da oralidade popular, passando pela escrita dos
pergaminhos, até a prática dos textos eletrônicos.” (Ibdem, ibdem.).
O enredo do romance se
mostra fácil até de se distinguir e até mesmo a aparente dificuldade em termos
de a obra romanesca possuir dois relatos conflitantes, mas que é simplificado
funcionalmente e de maneira orgânica pela terceira voz, “autor”, que os une e
os torna complementares e, até certo ponto de um ressaltar a veracidade do
outro, tornando-se relatos que uma não existiria sem o outro, nesta trama
romanesca, portanto, são indissociáveis, mesmo se formos abordar o romance pelo
desconstrucionismo do filósofo Derrida. Aqui os contrários se unem para
(re)-significar outro relato, um terceiro, todos agrupados organicamente e até
ironicamente (parabático), nos termos do filósofo-poeta romântico alemão F.
Schlegel.
“Neste sentido, os
textos de Shelá e de Tamar são suficientemente ricos para levantar questões
contemporâneas de grande interesse, tanto na esfera pública, quanto na privada.”,
segundo, a Professora Vilma Costa, visto que o coletivo (“nós”) bíblico é
(re)-significado pelo “eu” que se torna sujeito de si e de sua própria voz,
ponto de vista e opinião, enfim de sua subjetividade e personalidade.
Assim, a relação entre
realidade/história (“nós”) e a fantasia/relatos (“eu”), se conectam demostrando
as relações que vivemos no século XXI, na pós-modernidade, mas,
especificamente, no que se refere às relações sociais de letramento e, de saber
e poder.
Assim acho necessário
citar dois parágrafos inteiros da resenha literária da Professora supracitada,
que serve de base para este meu estudo, pois demonstra claramente a
profundidade, atualidade e importância da leitura, da literatura e, em
específico, do romance Manual da paixão
solitária, de Moacyr Scliar. Dessa forma transcrevemos abaixo:
É neste sentido
que Shelá se refere à sua gente. Pretende afirmar sua rebeldia quanto à maneira
de registrar esta história. Parte, em confronto com a lógica coletiva, ao
relato de um “eu” que sonha, como um deus, modela no barro várias figuras e nas
cavernas obscuras de sua individualidade cria seu mundo. É um sonhador
pragmático, que tem um corpo que precisa de alimento, de amor e de prazer. Com
astúcia, entusiasmo e irônico humor constrói sua narrativa. “Inventa” o
auto-erotismo para sobreviver à falta de parceria sexual e afetiva. Cria um
manual de sobrevivência: com as mãos manipula seu prazer, com as mãos modela o
barro, com as mãos escreve para a posteridade.
Tamar, por outro
lado, também manipula o destino e com astúcia realiza seu sonho de maternidade,
resgatando, pragmaticamente, sua dignidade moral e afetiva e sua sobrevivência
material. Sua transgressão se dá no completo domínio das leis e das normas que
questiona e transpõe. Também é artista, esculpe, cria, inventa e reinventa a
vida e a arte de sobreviver e realizar os sonhos. Diana, mulher contemporânea,
como suas ancestrais, atravessa as fronteiras de seus próprios limites e
transita em dois mundos irremediavelmente inconciliáveis, mas que como imãs se
atraem e só se reconhecem um no outro. (Ibdem, ibdem.).
A poeticidade do
romance revela-se na polifonia de vozes, que se manifestam entre passado
remonto e presente discursivo, surge então a alteridade (Lévinas), que
particulariza cada personagem, renovando-a na outra personagem, o “eu” no “tu”,
e vice-versa, ainda com a mediação da terceira voz, “ele/ela/autor”, que acaba
por configurar a remissão das injustiças do passado, possibilitando a
(re)-criação artística, poética e literária, transcendendo do real para o
ficcional, este que é marcado como uma “segunda realidade”, um “segundo
mundo”-, como diriam os filósofos-poetas do romantismo alemão e os hermeneutas,
até retomando os filósofos pré-socráticos-, o ficcional configura-se numa
realidade/mundo mítico-poético. Dessa maneira, o ser humano constata o óbvio
que a “vida” só existe por causa da “morte”.
O romance, por fim,
“reúne fragmentos de vidas que se entrelaçam e buscam legitimidade, mesmo que
na dispersão e conflitos de interesses, paixões e solidões.” (Ibdem, ibdem.).
Esses interesses,
individualismos, paixões, conflitos e solidões, tão característicos da
pós-modernidade que vivemos-, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, aquele(la)s
são características indubitáveis de nossa contemporaneidade. Para Bauman, tais
aspectos são marcas da sociedade em que vivemos, pois somos indivíduos sociais
solitários, fragmentados, individualistas, consumistas e imediatistas, o que o
sociólogo chama mais genericamente de “modernidade líquida”, pois nossas
relações sociais e afetivas se tornaram tão fluidas e líquidas-, (ver também o livro
de Zygmunt Bauman “Amor Líquido”), que, na verdade se tornam (nossas relações
afetivas/amorosas), ou na realidade, ou na ficção: “paixões solitárias”.”
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
SCLIAR, Moacyr. Manual da paixão solitária. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
Costa, Vilma. “A
arte de viver e morrer”. In: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-arte-de-viver-e-de-morrer
, julho de 2009. Último acesso: 11 de abril de 2015, às 00h40.
Ver também:
·
FILME:
ELA,
direção Spike Jonze, EUA, 2013.
·
CD:
“O
Adventista”, música do Camisa de Vênus, que está no
álbum Camisa de Vênus, 1983.
·
LIVROS: (BIBLIOGRAFIA PASSIVA):
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a bíblia. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
---------------------.
Os vendilhões do templo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
ALLEMAN, Beda. Ironia
e Poesia. (Biblioteca di filosofia Mursia). Milano: Universitá Mursia &
c., 1971.
BAUMAN, Zygmunt.
O mal-estar da pós-modernidade. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
------------------------.
Modernidade e ambivalência. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
-----------------------.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
----------------------.
Amor Líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
BOOTH, Wayne C. The Rhetoric of Fiction. Chicago: The
University of Chicago Press, 1981.
DERRIDA,
Jacques. O cartão-postal: de Sócrates a
Freud e além. Tradutoras: Ana Valeria Lessa e Simone Perelson. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1ª edição, 1980.
ISER, Wolfgang. The Implied Reader (Patterns of Comunication
in Prose Fiction from Bunyan to Beckett). Baltimore-London: The Johns-Hopkins
University Press, 1990.
LÉVINAS,
Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a
alteridade. Trad.: Pergentino S. Pivatto (coord). Petrópolis: Vozes, 1997.
LYOTARD,
Jean-François. A condição pós-moderna.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
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