COMEÇO
DE PRIMAVERA (YASUJIRO OZU, JAPÃO, 1956):
(“O
ETERNO RE-COMEÇAR DO SER HUMANO”):
(CRÍTICA
POR RAFAEL VESPASIANO).
“Os
filmes do cineasta nipônico Ozu tratam, essencialmente, sobre o cotidiano das
relações familiares, interpessoais e amorosas, sobre a rotina da sociedade
japonesa, ou seja, a mola propulsora de todos os filmes de Ozu é narrar e
refletir sobre a existência humana em sua essência, seja individual e/ou em
socialização, enfim, suas obras são sobre o Tudo e/ou o Nada: a VIDA.
Uma
proposta fílmica ousada para qualquer artista (cineasta), mas que Ozu consegue
realizar de maneira plena artisticamente, com simplicidade e humildade. Sua
câmera sempre ao pé do chão, propõe, justamente, isso a equiparação do
espectador aos personagens da trama que está sendo projetada, ou seja, somos
todos humanos.
Ozu
narra suas histórias sem pressa, calmamente e com sabedoria típica da filosofia
oriental; o cotidiano e o enredo da trama passam como se passa o tempo
cronológico e psicológico das nossas vidas reais, ou seja, sem que a gente se aperceba
do seu passar, inexoravelmente e sempre contínuo devir. E com tantas reflexões
que são feitas nos filmes de Ozu, e, portanto, sobre a existência e, assim
sobre nossas rotineiras, mas irrepetíveis vidas.
No
filme “Começo de primavera”, uma das reflexões é sobre o Japão do Pós-Segunda
Guerra Mundial, abrindo-se para uma nova fase em sua existência como nação e o
começo de sua industrialização e do trabalho assalariado, principalmente, para
os homens, mas também para algumas mulheres. Outra parcela das mulheres
continua como donas de casa ou em outras funções subservientes a um Japão ainda
preso às tradições patriarcais e machistas.
Um
casal vive aparentemente em harmonia, até o marido se envolver com uma colega
de trabalho, que gera fuxicos entre seus colegas e amigos, o que já leva à
reflexão sobre a amizade verdadeira; as fofocas chegam à esposa. No início do
caso amoroso, a amante se diz satisfeita em ser a outra, mas, de repente, passa
a odiar a esposa do amado. Exige algo sério, que o jovem assalariado não
considera. O conflito está instaurado, mas é questionado e refletido sem
estardalhaços, mas com parcimônia pelo diretor Ozu e com um enredo
transcorrendo normalmente, sem pressa, como nossos os cotidianos e como o dia-a-dia
das personagens da obra, ou seja, de todos nós.
Então,
a obra fílmica descortina uma reflexão sobre o começo, o fim e o recomeço das
relações amorosas, sobre o perdão, o mais nobre dos sentimentos humanos, a calma
e paciência, sabedorias nipônicas, reflexões sobre o começo e o fim da vida, em
termos de finitude terrena mesmo, mas sempre levando em conta questões existências,
espirituais e metafísicas; outra proposta é pensar o filme sobre o seu caráter
social, o começo primaveril da Tóquio, como uma megalópole, sua industrialização
crescente, o trabalho assalariado como uma faca de dois gumes: ascensão social,
mas nem sempre plenitude e harmonia existencial, amorosa e nem plena realização
nas relações interpessoais (e até espirituais); a reconstrução do Japão também
de certa forma abordada, depois da Guerra é sugerida e refletida em algumas
cenas e diálogos.
Enfim,
o “começo” a que o título se refere é o início da vida do ser humano em sua
plenitude e paz interior e com os outros ao seu redor, ou até o re-começo de
sua existência, basta também pensar na “primavera”: o re-início do ciclo da
natureza e, portanto, também o começo e recomeço do ciclo existencial humano. O
começo e o fim se complementam, mas a primavera sempre se fará existir e
persistir, seja como começo, seja como recomeço dos ciclos da natureza ou da
existência humana.
Ah,
e as imagens frequentes dos trens indo-e-vindo em várias cenas do filme não são
gratuitas, são espelhos reflexivos do início e reinício de todas as vidas, no cotidiano
das existências humanas, no alvorecer, no anoitecer e no alvorecer de novo... Portanto,
o que seria meramente rotineiro é a essência do ser humano. A deviniência do
Cosmos é também nossa, pois estamos inseridos em todo esse imenso Universo de “re-começo(s)”.
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