A MEMÓRIA COMO TESTEMUNHO NA OBRA ANGÚSTIA, DE
GRACILIANO RAMOS
RAFAEL VESPASIANO
FERREIRA DE LIMA
Brasília – DF, dezembro de 2010.
Centro Universitário de Brasília – UniCEUB
Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES
Curso de Letras
A MEMÓRIA COMO TESTEMUNHO NA OBRA ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Monografia apresentada
como requisito parcial para conclusão do Curso de Licenciatura em Letras pela
Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES do Centro Universitário de
Brasília – UniCEUB, tendo como Professora-Orientadora Ana Luiza Montalvão Maia.
SUMÁRIO
Introdução 7
Capítulo 1: A linguagem
narrativa e as relações com a memória 9
Capítulo
2: Graciliano Ramos e o romance de 30 19
Capítulo 3: A análise do
romance Angústia de Graciliano Ramos
pelo viés do
memorialismo 32
Conclusão 53
Referências 55
INTRODUÇÃO
O tema escolhido para a pesquisa trata da categoria do
memorialismo como forma de testemunhar os medos do protagonista do romance corpus da pesquisa, Angústia, de Graciliano Ramos. A pesquisa, assim, tem como objetivo
principal, evidenciar que o uso do viés do memorialismo na obra corpus, é de relevante importância para
revelar a dor do narrador-protagonista, Luís da Silva.
A metodologia utilizada se estrutura em dois momentos: a) o
da pesquisa bibliográfica realizada por meio do levantamento e fichamento de
livros, artigos, periódicos, etc., que serviram de sustentáculo para conferir o
argumento de autoridade para a pesquisa, fontes de críticos literários como
Antonio Candido, Fernando Cristóvão Alves, Afrânio Coutinho, Lúcia Helena
Carvalho, entre outros; b) o estudo de caso que se refere a uma análise de como
as rememorações, realizadas por meio do fluxo de consciência, através da narrativa
em primeira pessoa e, constituídas de lembranças e esquecimentos, promovem o
testemunho da angústia e dor do narrador-protagonista, Luís da Silva, no
romance corpus da pesquisa, Angústia.
A pesquisa divide-se em três capítulos: o primeiro capítulo
mostra as relações entre linguagem narrativa e memória; o segundo capítulo
trata da 2ª fase do Modernismo Brasileiro, em especial, o romance de 30 e a
relação de Graciliano Ramos, autor do corpus,
com a temática desenvolvida por essa etapa do movimento modernista; e, no
terceiro capítulo, realiza-se a desconstrução da obra Angústia, abordando os aspectos que fizeram o escritor do romance corpus da pesquisa, optar pelo viés do
memorialismo para testemunhar a dor/angústia, do protagonista da obra, Luís da
Silva.
Fica evidente que o viés do memorialismo é escolhido pelo
autor do corpus da pesquisa,
Graciliano Ramos, como recurso mais apropriado para testemunhar a dor do
protagonista da obra, as angústias de Luís da Silva rememoradas num incessante
fluxo de consciência, num processo mnemônico de muita dureza, tensão e
densidade
psicológica,
característica das obras graciliânicas.
CAPÍTULO I
A LINGUAGEM NARRATIVA E AS RELAÇÕES COM A MEMÓRIA
Há diversos tipos de narrativas, classificadas de acordo
com o meio em que são usados: podem ser de plano verbal, icônico, audiovisual,
figurativo etc. Existindo desde sempre na humanidade. Nesta pesquisa
considerar-se-á a narrativa de ficção, a obra
Angústia
de Graciliano Ramos, “isto é, aquela alçada ao plano literário e que se realiza
exclusivamente por meio da palavra.” (ATAÍDE, 1974, p.13)
A linguagem literária é conotativa, permite várias
interpretações, em virtude de apresentar um enfoque subjetivo. A literatura é a
“arte da linguagem”, por isso como as
emoções e fatos são apresentados importa
muito e a memória como recurso da linguagem é sempre relevante para ressaltar
fatos, momentos e aspectos da narrativa. Os romances marcados predominantemente
pelas evocações do passado são chamados romances memorialísticos. Graciliano
Ramos, autor do corpus da pesquisa, é
um romancista cuja obra transita entre a ficção e a confissão.
Dos quatro romances iniciais do autor alagoano, os três
primeiros são narrados em primeira pessoa: em Caetés (1933), o narrador é João Valério, o romance de estreia de
Graciliano Ramos, é segundo Candido (2006a, p.18), “um deliberado preâmbulo; um
exercício de técnica literária mediante o qual pode aparelhar-se para os
grandes livros posteriores.” Por isso, o tom memorialístico não se faz tão
presente, pressupondo uma pasmaceira na vida e no espírito das personagens,
inclusive em João Valério. Já neste livro, todos os fatos, cenas e personagens
dependem do narrador, pois o autor Graciliano preocupa-se com o caso
individual, assim o narrador-protagonista é dominante e impõe sua visão sobre
as coisas, fatos e personagens analisadas.
Em seu segundo romance, São
Bernardo (1934), o narrador Paulo Honório aparece como uma das personagens
mais complexas da obra graciliânica. E para re-construir-se como pessoa, passa
a escrever suas memórias e das pessoas que cercaram sua vida. As personagens e
as coisas surgem como modalidades dele, como propriedades de Paulo Honório,
dada sua personalidade dominadora. Por meio da escrita de suas memórias, Paulo
Honório redime-se como ser humano; assim sendo São Bernardo é de um forte teor memorialístico, e já evidencia o
autor Graciliano maduro e na plenitude dos recursos literários. (CANDIDO, Op. cit., p. 43)
O tom memorialístico
do escritor alagoano ganha forma e força com São Bernardo e como afirma Candido (Op. cit., p.46):
(...) se a percepção
literária do mundo sensível aparece aqui (São Bernardo) refinada, é igualmente notável
o progresso (de Caétes para aquele)
verificado nos mecanismos do monólogo inteiror, gênese dos sentimentos e evocação da experiência vivida (grifos meus)
No terceiro romance
de Graciliano Ramos, com foco narrativo em primeira pessoa, Angústia (1936), corpus da pesquisa, tem-se como protagonista Luís da Silva, um
narrador que para Fernando Cristóvão (1986, p.18) “encarna o humilhado
procurando desesperadamente o acesso à dignidade.” Por esse sentimento de
humilhação, o protagonista é um indivíduo violento, cruel, amargo e
profundamente negativista.
O tom memorialístico na obra é evidente, pois Luís da Silva
narra as frustrações pessoais, em tom de memória, em quase ininterrupto fluxo
de consciência, em um monólogo interior que demostra a angústia do narrador,
mas também angustia o leitor. “Angústia é provavelmente o mais lido e
citado, pois a maioria da crítica e dos leitores o considera a sua obra-prima.”
(CANDIDO, Op. cit., p.47). Para
compreender melhor tal assertiva do crítico Antonio Candido é necessário
analisar o caráter memorialístico do corpus
da pesquisa (Angústia), com esse
intuito, passa-se às seguintes considerações.
Para se entender o tom memorialístico do corpus, precisa-se diferenciar tempo cronológico e tempo psicológico; trabalhar a questão
da opção ou pelo foco narrativo em primeira pessoa ou em terceira pessoa; definir o conceito de fluxo de consciência, e melhor
aprofundar a noção de memória nas
obras narrativas.
A definição de tempo literário parte da conceituação de
tempo, que é a velocidade pela qual a narrativa se desenrola. Pode-se ter dois
tipos de tempo: a) tempo cronológico ou objetivo; b) tempo psicológico ou
interior ou subjetivo. Para Ataíde (Op.
cit., p.47), “o tempo cronológico consiste num esforço do homem para opor
uma barreira ao tumulto subjetivo, às presentificações da memória, à duração
interior que é imprevisível e incontrolável.”
Por isso, o tempo cronológico é objetivo, uma escala rígida
e convencional, que existe para controlar as relações humanas diárias. Este
tempo exterior é oposto ao tempo interior, subjetivo, o qual é mensurado pela
experiência de cada um. Ou seja, varia de indivíduo para indivíduo, é um tempo
atemporal.
Segundo Ataíde (Op.
cit., p.48), se a sociedade ocidental criou o tempo da pontualidade
inglesa, a literatura ocidental está pondo em crise esta mesma noção. A
narrativa moderna centra o seu foco no tempo, “o tempo cronológico versus o
tempo psicológico é o grande tema das grandes obras modernas.”
O crítico Fernando
Cristóvão cita o teórico A. A. Mendilow que afirma:
Tudo o que se
reivindica, e a reivindicação é grande, é que o elemento temporal em ficção é
da maior importância, e que em grande parte determina a escolha e o tratamento
do assunto por parte do autor, o modo pelo qual este articula e dispõe os
elementos de sua narrativa e o modo como usa a linguagem para expressar o seu
senso do processo e do significado de viver.” (MENDILOW, apud CRISTÓVÃO, Op. cit.,
p.80).
Na narrativa há a evolução dos fatos em sucessão
contingente, na qual são apresentadas as personagens e acontecimentos do
romance. Para Fernando Cristóvão
(Op.
cit., p.80) “está nos poderes do narrador manipular” tal sucessão dos
fatos. “Pode fazê-lo das mais diversas maneiras”, por supressão das
personagens, pela alteração do ritmo e recuperação do passado, antecipação do
futuro, aceleração ou retardo dele, mistura de perspectivas.
Essa luta contra o tempo cronológico e a favor de sua
substituição por um tempo psicológico ou lógico tem sido, para Fernando
Cristóvão (Op. cit., p.81), a
tendência dominante do romance, desde o século XVIII aos dias atuais, o
estudioso cita os escritores Proust, Dostoiévski, Joyce, Faulkner, dentre
outros.
Isso é também a
tendência de muitos romancistas que iniciam a carreira literária com romances
onde domina o tempo cronológico e amadurecem a sua obra, libertandose do tempo
cronológico progressivamente, adentrando pelo romance de tempo psicológico.
“Assim acontece com Graciliano Ramos, que, do romance de tempo cronológico em
que se estreou, rapidamente evoluiu para o romance de tempo psicológico.” (...)
“De gradual interiorização (...) ganhou em densidade significativa”
(CRISTÓVÃO, Op. cit., p.81)
A narração meramente decorrida no fluir do tempo
cronológico coloca os fatos humanos e os objetos meramente em um nível de tempo
de desgaste que não ultrapassa a periferia. Diferente é a narração que valoriza
e dá uma contextura psicológica, pois penetra no mais íntimo das realidades. “O
tempo passa então a fazer da vida psicológica em mais elevado grau, através da
memória que a edifica, não só no
tempo, mas com e contra ele.” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.81) (grifos do autor) .
Mas, o primeiro romance do autor alagoano, Caetés, é essencialmente um romance de
tempo cronológico. Em São Bernardo um
equilíbrio entre as tendências cronológicas e psicológicas, embora já haja
vantagem para as segundas. Vidas Secas
e, principalmente, Angústia são
romances de tempo psicológico, ainda que em graus diversos.
Ainda segundo Fernando Cristóvão é, porém, em Angústia que o processo do tempo
psicológico chega ao ápice. Mesmo não faltando indicações cronológicas
destinadas à compreensão do enredo, mas mesmo, sendo úteis não adquirem
importância
fundamental. É que o autor não aprendeu a
omiti-las e tem receio de que o leitor se perca na apresentação conflituosa dos
estados de alma de Luís da Silva.
A personagem Luís da Silva está livre para que seu relato
seja francamente de tempo interior “que avança em ondas conduzido pela memória
involuntária e entregue a associações dinâmicas” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.100)
Fernando Cristóvão também
asservera:
O romance não o é tanto da paixão de Marina
e da morte de Julião
Tavares como da agitação
tumultosa das humilhações dum Luís da Silva, que se confessa narrando o que
motiva o seu estado de alma. Mais do que a história dum crime, Angústia é a história do estado de alma
dum humilhado que se liberta. E é na manifestação desse estado de alma, feita
através do monólogo interior que Angústia
marca o triunfo definitivo na obra de Graciliano, do tempo psicológico sobre o
cronológico. (CRISTÓVÃO, Op. cit.,
p.100)
E o monólogo é o artifício mais adequado para traduzir o
escoamento do tempo interior, já que os nexos entre evocações e associações
configurarem-se subjetivamente. Partindo do presente para o passado, num mesmo
movimento narrador e leitor têm um igual e simultâneo ritmo no fluir do tempo.
Pelo monólogo, a intensidade do tempo da personagem é tão grande como a do
tempo do leitor.
No romance Angústia,
os monólogos aparecem em grande quantidade, estabelecendo o tempo psicológico
por excelência, termo duma evolução “tão timidamente anunciada em Caetés” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.101). O caminho
foi trilhado por Graciliano Ramos que do romance do tempo cronológico passou ao
romance do tempo predominantemente psicológico. O efeito resultante foi o
objetivo pretendido pelo autor: “libertar os acontecimentos e personagens da
tirania cronológica que impõe um tipo de conhecimento demasiado superficial
para ser verdadeiro” (CRISTÓVÃO, Op. cit.,
p.101).
Ao deixar de lado a
cronologia, é possível ir “fundo” na psicologia humana, onde as relações de
causa e efeito não são meramente insinuados pela linearidade do tempo, mas
podem ser encontradas na consideração de desejos do inconsciente que interferem
no comportamento humano.
A leitura de Angústia
é descontínua, em virtude das frequentes paragens e supressões, criando no
leitor uma “certa angústia expectante” (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.102). O crítico vai além ao afirmar:
O tempo de Graciliano
é, cumulativamente, precipitado e lento.(...) É igual ao tempo do homem
moderno, jogado entre as acelerações do progresso e as compensações e pausas
das suas defesas de ruptura e ócio. Tempo de herói fracassado, uno e múltiplo, que
já não olha a sociedade como perfeita, hierarquizada e governada pela
autoridade divina que consolide superiormente as instituições humanas estáveis.
(...) Para ele o mundo não decorre num tempo constante e sereno. (CRISTÓVÃO, Op. cit., p.102-103)
Este tempo descontínuo é o das personagens graciliânicas
Paulo Honório, Fabiano e Luís da Silva. Esse é o texto de Graciliano Ramos:
direto, seco, rápido sem ornamentos inúteis. Um tempo de leitura rápida e
segmentável que recupera o leitor com pressa para fora-do-tempo da reflexão,
“pois busca um saber não transmitido mas a elaborar pelo narrador, pelas
personagens, pelo leitor.” (CRISTÓVÃO, Op.
cit., p.103)
E, para ressaltar, a importância do tempo psicológico na
obra Angústia é necessário, reforçar
que tal tempo é expresso no foco narrativo em primeira pessoa, com o
narradorprotagonista Luís da Silva contando suas frustrações. O foco narrativo
em primeira pessoa na obra de Graciliano Ramos é importante pelo que o
romancista entende por objetividade e verdade, já que uma das maiores
preocupações do autor alagoano “foi a objetividade, na significação e
interpretação do real.” (CRISTÓVÃO, Op.
cit., p.29)
Procurou a objetividade sempre em seus romances, o real
psicológico, e exprime-se tanto nas narrativas em primeira pessoa como na
terceira pessoa. Graciliano Ramos não escrevia nada que não fosse adquirido e
filtrado por sua experiência, não poderia escrever sobre algo que não tivesse
vivenciado. É o caso do objeto de estudo, a obra Angústia, na qual a estrutura acional do enredo se fundamenta nas
recordações de infância, que podem elucidar as diversas fases do desenrolar da
narrativa. Tal fato é comprovado na obra Cartas
(RAMOS, Graciliano. 1992, p.197) em que destaca: “(...) só conseguimos deitar
no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além
disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos
expor o que somos.”
É importante destacar o conceito de fluxo de consciência
que para Carvalho é “a apresentação idealmente exata, não analisada, o do que
se passa na consciência de uma ou mais personagens” (1981, p.51); este recurso
literário é de muita utilidade para o transcorrer e a compreensão da narrativa
de Graciliano Ramos. Carvalho prossegue
afirmando que o fluxo de consciência corresponde a “estados de consciência
pré-verbais” (Op. cit., p.54),
apresentados de forma truncada, caótica ou meramente associativa.
Não só isso caracteriza o fluxo de consciência, mas também
a natureza do material psicológico exposto na obra. Em Angústia, corpus da
pesquisa, o escritor busca apresentar
verbalmente as reminicências da infância do narrador Luís da Silva. Para
Carvalho (Op. cit., p.61), se até
hoje as relações entre pensamento e linguagem não estão perfeitamente explicadas,
existindo entre eles uma inter-dependência, “a ficção do tipo fluxo da
consciência é perfeitamente justificada”.
Segundo Graciliano Ramos, liberdade total não existe: ou se
está preso à sintaxe ou ao Departamento de Ordem Política. A liberdade adquirida,
gradativa e historicamente, pelo romance tornou-o um gênero de caráter
flexível, maleável.
A memória é composta de lembranças e esquecimentos é
representada pela linguagem. E a linguagem em Graciliano Ramos é forçada a
adquirir a contundência dos objetos cortantes, e a tensão em que ela se mantém
é o próprio pensamento a se policiar contra os riscos do entorpecimento. Entre
a realidade e o artista tem lugar invariavelmente uma áspera convivência, que
na verdade é mútua agressão.
Numa compreensão da coerência da memória expressa pela
linguagem que se dá de forma inteira na obra de Graciliano o que evidencia a
coerência de sua obra, está intimamente estruturada na preocupação do autor na
unidade de seus romances.
No caso, de Angústia,
corpus da pesquisa, a estratégia
desenvolvida por Graciliano é tentar fazer com que a linguagem, mais do que
expressar, possa concretizar em si a própria realidade.
Ao usar a memória como recurso na construção de seus
romances, Graciliano procura alcançar o máximo de autenticidade entre os
espaços de lembranças e esquecimentos, e parece ser o desejo de encontrar um
ponto de apoio, uma base sólida de orientação dentro da realidade – sempre
enganosa, fugidia e em mutação, tal qual a memória. Mas, apesar de todos os
contratempos que a memória suscita, Graciliano busca no memorialismo a base
para a reconstituição em seus romances de vivências comoa lembrança de
passagens de sua vida. Não é possível deixar de destacar que Graciliano ao
enveredar pelo memorialismo, enfatiza o artista às voltas com a problemática
entre texto e contexto, de cortar o passo à imaginação, entendida como
instrumento inadequado para a sondagem da verdade das coisas.
O percurso literário
temporal do autor do corpus, é uma
“subversão do tempo cronológico” (BAPTISTA, s/d, p.51), pois as narrativas
romanescas graciliâncias, quer em primeira pessoa, quer em terceira pessoa, são
marcadas de forma singular e particularíssima de “uma concepção temporal
subjetiva, onde o tempo e a memória possuem, especialmente, o caráter de
duração interior”, assim “resgatam ritmos temporais qualitativos, que desdobram
intermitentemente o passado no presente.” (BAPTISTA, Op.
cit., p.51)
As personagens graciliânicas são “desconstruídas e
re(construídas)”, num “universo intemporal cujo pólo de prevalência é do
pensamento, das ideias, impressões e reelaborações mentais.” (BAPTISTA, Op. cit., p.51), pois a força da ficção
de Graciliano reside em grande parte no fato de atingir extraordinária
densidade dramática na representação dos problemas modernos, especialmente no
que se refere ao conflito dos seres humanos com o seu destino.
A modernidade que tanto se cobra à sociedade brasileira
encontra-se emperrada no impasse gerado pelo confronto entre forças contrárias
que persistem tencionadas dialeticamente. Sabe-se que Graciliano Ramos foi um
dos poucos escritores modernistas a não acreditar no processo de modernização
implantado no país a partir dos anos 30.
Por isso, a obra de Graciliano ultrapassa as discussões em
torno do “regionalismo” que, em décadas passadas, dominou a crítica literária e
que se queria a todo custo impor à obra do escritor. O autor do corpus da pesquisa soube preservar, por
meio da memória, a autenticidade da ambientação geográfica e cultural onde se
desenvolve o romance, que era o mundo de suas origens e, como dizia, o único
sobre o qual poderia falar. Mas nunca perdeu a dimensão universal do drama
humano, do sujeito submetido à complexidade dos seus desejos e afetos.
A preocupação do escritor Graciliano em detectar o drama
individual sem esquecer o drama do homem universal evidencia o posicionamento
do intelectual dos países periféricos (base colonial): em ter acesso aos bens
culturais universais e conviver com o atraso local. Por isso, o capítulo 2
tratará dessa dualidade local x universal no escritor
Graciliano Ramos no contexto do “romance de
30”, o que determina a sempre atualidade de sua obra.
CAPÍTULO II
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE DE 30
Para compreender a obra do escritor Graciliano Ramos,
faz-se necessário analisar o período literário ao qual o escritor pertence. O
autor alagoano encontra-se entre os
“romancistas de 30” do Modernismo
brasileiro do século XX. Neste capítulo abordar-se-á o estilo literário de
Graciliano Ramos, em três etapas, a saber: primeiramente, será feita uma breve
periodização da Literatura Brasileira, ou nas palavras do crítico Antonio
Candido, do sistema literário; depois, será
abordada a relação entre Literatura Brasileira, Subdesenvolvimento e
Regionalismo e, por último, focar-se-á o contexto histórico e as
características estéticas do “Romance de 30” em si, sobretudo a figura do autor
do corpus da pesquisa, Graciliano
Ramos.
O aspecto mais interessante da literatura nos países da
América Latina, para Candido (2006) é a transposição e a adaptação dos padrões
estéticos e intelectuais da Europa às condições sociais e físicas do Novo
Mundo. Sendo assim, as nossas literaturas “são essencialmente europeias” (...)
“tanto mais quanto foram transpostas à América na era do Humanismo” (CANDIDO, Op. cit., p.198). Ou seja, herdamos uma
literatura extremamente erudita, cheia de exigências formais e aberta para uma
visão realista e ao mesmo tempo alegórica da vida. Contudo, este tipo de
literatura foi transposta para terras desconhecidas, habitadas por povos de cor
e tradição diferentes (indígenas, no caso do Brasil), aos quais se juntaram
povos trazidos da África, o que aumentou a complexidade do panorama.
As literaturas da América Latina foram obrigadas a imprimir
na expressão herdada da Europa certas características, que as tornaram capaz de
exprimir também a nova realidade natural, social e humana. Dessa forma,
surgiram as literaturas nacionais da América Latina, que foram se tornando
variantes diferenciadas das matrizes europeia, chegando até em alguns casos
influir nelas.
Percebe-se que no Brasil, mais especificamente, a literatura foi a expressão da cultura do
colonizador, e depois do colono europeizado. Os primeiros livros da Literatura
Brasileira promoviam a celebração da Metrópole e do colonizador, louvando as
normas da colonização, defendendo e justificando a obra do colonizador. Porém,
no século XVIII começam a surgir obras literárias que questionam todo esse poder
da Metrópole e do colonizador europeu. Já que a colonização portuguesa ia
criando a sua própria contradição, pois as classes dominantes da Colônia
começam ter os seus interesses divergindo em relação aos da Metrópole, e isso
refletia-se na Literatura.
Portanto, a visão da nova realidade que se oferecia,
propunha a abordagem de novos temas, diferentes dos que nutriam a literatura da
Metrópole. E a necessidade crescente de usar de maneira diferente as “formas”,
adaptando os gêneros às necessidades de expressão dos sentimentos e da
realidade local.
O crítico Antonio
Candido desenvolve o conceito de sitema literário”para explicar o exposto
acima. A Literatura Brasileira estaria esquematizada em três etapas:
(1) a era das
manifestações literárias, que vai do século XVI ao meio do século XVIII; (2) a
era de configuração do sistema literário, do meio do século XVIII à segunda
metade do século XIX; (3) a era do sistema literário consolidado, da segunda
metade do século XIX aos nossos dias. (CANDIDO, 1999, p.14)
O crítico entende como sistema
a articulação entre quatro elementos: autores
e obras, por meio de veículos que
permitem o seu relacionamento, definindo uma
„vida literária‟; públicos,
restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que
elas circulem; tradição, que é o
reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionando como exemplo ou
justificativa daquilo que se quer fazer, mesmo que seja
para rejeitar.
Assim, na primeira etapa, que abrange o Quinhetismo, o
Barroco e parte do Arcadismo, só pode-se afirmar que existiram manifestações literárias, pois só se
tinham autores e obras, faltando público e tradição; a segunda etapa abrange a
parte final do Arcadismo e o Romantismo, esta é a fase da configuração do sistema literário, pois têmse autores, obras e um
público mais amplo de leitores, faltando a tradição literária, mas esta já a
formar-se; a terceira etapa abrange do Realismo até os dias atuais, e é a era
do sistema literário consolidado,
pois os quatro elementos do sistema consolidam-se, autores, obras, público
leitor e tradição, já que no Realismo surgem os primeiros grandes críticos e
historiadores literários brasileiros, configurando e sistematizando a tradição
literária brasileira. A figura-síntese da consolidação do sistema literário brasileiro, para Antonio Candido, é o escritor
Machado de Assis.
Portanto, a Literatura Brasileira foi adquirindo suas
peculariedades ao longo do tempo, assumindo uma temática própria, passando a
ter suas especificidades, sua cor local, suas características peculiares que a
diferenciam das outras e faz dela uma Literatura distinta, refletindo a cor
local. Lógico, sem esquecer, que a Literatura Brasileira é uma transposição e
adaptação das literaturas europeias, disso não se pode fugir, pois o Brasil foi
originalmente colônia, só esse fato já demonstra, nossa dependência no que se
refere às origens da Literatura. Consegue-se independência política e
literária, mas devese muito às literaturas europeias, isso é justificado ainda
pelo fato do Brasil ser um país periférico ou subdesenvolvido, tema que será
abordado a seguir.
Até a década de 1930 predominava no Brasil a noção de „país
novo‟ “que ainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes
possibilidades de progresso futuro.” Sem grandes mudanças no cenário mundial e
na distância que separa o Brasil dos países ricos ou desenvolvidos, o que
predomina agora é a noção de „país subdesenvolvido‟. Conforme a primeira
perspectiva salientava-se a grandeza ainda não
realizada, conforme a
segunda, destaca-se a pobreza atual.
A partir dessas perspectivas, pode-se compreender melhor
certos aspectos da criação literária na América Latina, em especial, no Brasil;
ajudando também a entender o “Romance de
30”, ao qual pertence o autor do corpus
da pesquisa, Graciliano Ramos.
Com efeito, a ideia de „país novo‟ produz
na literatura, atitudes fundamentais, como o interesse pelo exótico, derivado
pela surpresa ante a grandiosidade física do Novo Mundo e surgindo também a
ideia de esperança quanto às possibilidades. Tal ideia via a América como um
lugar privilegiado, o que foi expresso em projeções utópicas que atuaram na
fisonomia da conquista e da colonização.
Mais adiante, quando as contradições da colonização levaram
as classes dominantes das colônias à separação política em relação às
metrópoles, surge a ideia complementar de que a “América tinha sido
predestinada a ser a pátria da liberdade, e assim consumar os destinos do homem
do Ocidente.” (CANDIDO, Op. cit.,
p.170). Esse estado eufórico foi herdado pelos intelectuais latino-americanos,
que o transformaram em instrumentos de afirmação nacional, a literatura se fez
linguagem de celebração, favorecida pelo Romantismo, que transformou o exotismo
em estado de alma, com o intuito de afirmar ou definir uma identidade nacional
de países recém-emancipados politicamente das metrópoles europeias. A ideia de
pátria se vinculava estreitamente à de natureza e dela extraía sua justificativa.
Porém, as visões desalentadas dependiam da mesma ordem de
associações, como se a desorganização das instituições constituíssem um
paradoxo inconcebível em face das grandezas naturais. A visão que resulta,
então, é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro,
restando a confiança que a remoção do imperialismo traria, por si só, o
progresso. Mas, em geral, não se trata mais de um ponto de vista passivo.
Surgindo daí uma disposição para o combate, que se alastra pelo continente,
tornando a ideia de subdesenvolvimento uma força propulsora, que dá novo cunho
ao empenho político dos intelectuais latino-americanos.
“A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda
Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde
o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção
regionalista (...)” (CANDIDO, Op. cit.,
p.171), esta abandona a amenidade e o
pitoresco, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto
pitoresco, ou no cavalherismo ornamental, com que antes se abordava o homem
rústico. E aqui “entra em cena” o autor do corpus
da
pesquisa, Graciliano
Ramos.
O Modernismo é de fundamental importância para a tomada de
consciência do subdesenvolvimento pela Literatura Brasileira, pois sabendo que
nossas literaturas (latinoamericanas e como também as da América do Norte) são
basicamente ramificações das metropolitanas, ressaltando que tal fato em nada
diminui o valor dos modernistas, mas permite interpretar o Modernismo como
episódio historicamente importante do processo de fecundação criadora da
dependência – modo peculiar dos nossos países serem originais.” (CANDIDO, Op. cit., p.184)
No caso brasileiro, os criadores do nosso Modernismo
derivam em grande parte das vanguardas europeia. Elas marcaram uma libertação
extraordinária dos meios expressivos e nos prepararam para alterar
sensivelmente o tratamento dos temas; as vanguardas foram para nós todos,
fatores de autonomia e auto-afirmação.
A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920; da
intensa consciência estético-social dos anos 30 e 40; da crise de
desenvolvimeto econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes,
começa-se a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência
cultural. Encara-se, assim, com maior objetividade e serenidade o problema das
influências, elas passam a ser vistas como vinculação normal no plano da cultura.
“Isto não apenas dará aos escritores da América Latina a
consciência da sua unidade na diversidade” (CANDIDO, Op. cit., p.186), mas favorecerá a produção de obras de teor maduro
e original, que serão lentamente assimiladas também pelos países metropolitanos
e imperialistas.
Ao se retomar a questão da ficção regionalista e dado o
subdesenvolvimento da América Latina, o regionalismo foi e ainda é força
estimulante na literatura. Pode-se, segundo Candido, distinguir-se três
momentos ou fases do regionalismo na Literatura Brasileira. O primeiro remota
ao Romantismo, à fase de consicência de „país novo‟, correspondente à situação
de atraso; o regionalismo, nesse momento, é sobretudo pitoresco decorativo e
funciona como descoberta, reconhecimento da realidade do país e sua
incorporação ao temário da literatura. O segundo momento da ficção regionalista
é o da pré-consciência do subdesenvolvimento, funcionando como consciência da
crise, motivando o documentário e, com o sentimento de urgência, o empenho
político.
Em plena fase de pré-consciência do subdesenvolvimento
encontra-se Graciliano Ramos, autor do corpus
da pesquisa, alta expressão dessa
fase (também denominada “Romance de 30”), pois o escritor alagoano não se permite
a idealizações ou ao pitoresco, prefera mostrar as agruras e angústias do homem
de forma universal, é o caso de Luís da Silva, o protagonista de Angústia, corpus da pesquisa. Graciliano Ramos faz isso sem deixar de
ambientar suas obras na região nordestina, mostrando suas características, só
que não de forma pitoresca, mas sim de forma natural e indissociável do drama
humano, seja na região nordestina sertaneja, é o caso de Vidas Secas, seja nas áreas urbanas do nordeste, é o caso do corpus da pesquisa, já que Angústia é um romance ambientado na
cidade de Maceió, capital alagoana.
O regionalismo, portanto, foi uma etapa necessária, que fez
a literatura, sobretudo o romance e o conto, focalizar a realidade local. Mas
de um certo ângulo talvez não se possa dizer que acabou. “A realidade econômica
do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como objeto vivo, a despeito
da dimensão urbana ser cada vez mais atuante.” (CANDIDO, Op. cit., p.192). Por isso é preciso redefinir o problema.
Verifica-se, na fase de consciência eufórica de „país novo‟, caracterizada pela
ideia de atraso, o regionalismo pitoresco. Este regionalismo está há muito
superado ou rejeitado para o nível da subliteratura. O regionalismo pitoresco
ocorreu principalmente no século XIX, surgindo no Romantismo, e durou até o
início do século XX, com o sertanejismo prémodernista.
Na fase de pré-consciência do subdesenvolvimento, pelos
anos de 1930 e 1940, teve-se o regionalismo problemático, que se chamou de
„romance social‟, „romance do nordeste‟, „Romance de 30‟ ou „neo-realismo‟,
várias são as denominações para o mesmo fenômeno: o regionalismo precursor da
consciência de subdesenvolvimento.
Entre os que naquele momento propuseram com vigor analítico
e algumas vezes forma artística de boa qualidade a desmistificação da realidade
americana, estão: Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Érico Veríssimo, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos, entre outros. “O que os caracteriza, todavia, é a
superação do otimismo patriótico e a adoção de um tipo de pessimismo (...)”
(CANDIDO, Op. cit., p.193), que
focaliza o homem pobre como elemento refratário ao progresso, este homem
volta-se contra as classes dominates e
vê na sua degradação uma consequência da espoliação econômica.
Para Candido, a superação desta modalidade de regionalismo
e o ataque que vêm sofrendo por parte da crítica são demonstrações de
amadurecimento, por isso muitos autores rejeitariam o qualificativo de
regionalistas, que de fato não tem mais sentido.
O que se vê agora é uma florada novelística marcada pelo
refinamento técnico, que leva os traços antes pitorescos a se descarnarem e
adquirirem universalidade. Nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo,
a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo
interior. Isto leva o crítico Antonio Candido a propor a distinção de uma
terceira fase, denominada de super-regionalista. Este é o terceiro momento da
ficção regionalista a que me referi anteriormente.
A tendência
super-regionalista corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento,
deste super-regionalismo é tributária, no Brasil, a obra revolucionária de
Guimarães Rosa, solidamente plantada no que se pode chamar a “universalidade da
região” (CANDIDO, Op. cit., p.195).
Só que essa tendência superregionalista já fora esboçada no momento anterior,
no regionalismo problemático, por Graciliano Ramos, dado o já exposto, pois o
autor alagoano já tem como recurso narrativo o monólogo interior, por exemplo.
E trabalha a universalidade do drama humano, caso do romance Angústia, corpus da pesquisa. Sendo assim, Graciliano Ramos é também um
precursor do super-regionalismo.
Trabalhar-se-á a partir de agora, as características mais
importantes do “regionalismo problemático” ou “romance de 30”. Historicamente,
o ano de 1926 é de fundamental importância para a futura eclosão do
regionalismo de 30, pois naquele ano é realizado no Recife, o Congresso
Brasileiro de Regionalismo, e que foi o primeiro no gênero, não só no Brasil
como na América. O movimento lança manifesto e sugere todo um trabalho em prol
do espírito de região e tradição. Comanda o empreendimento Gilberto Freyre que
resume o movimento:
Resistindo à ideia de
que o progresso material e técnico deve ser tomado como a medida da grandeza do
Brasil, os regionalistas brasileiros viam no amor à província, à região, ao
município, à cidade ou à aldeia nativa, condição básica para obras honestas,
autênticas, genuinamente criadoras e não um fim em si mesmo. (FREYRE, apud COUTINHO, 2001, vol. V, p.32)
É importante ressaltar ainda que a ficção brasileira é
oriunda do Romantismo do século XIX. Ela atingiu um grau de maturidade com
Machado de Assis, no Realismo. A partir daí, duas linhas formam-se, correndo em
paralelo, até os dias atuais. Segundo Afrânio Coutinho (Op. cit., p.264), exitem duas tradições bem nítidas na ficção
brasileira.
“Em ambas, a preocupação dominante é o
homem.” (COUTINHO, Op. cit., p.264).
De um lado, o homem em relação com o meio em que se situa: é a corrente
regionalista ou regional, “(...) na qual, em sua maioria, o homem é visto em
conflito ou tragado pela terra e seus elementos, uma terra hostil, violenta,
superior às suas forças.” (COUTINHO, Op.
cit., p. 264). Esse meio tanto pode ser as áreas rurais, como as cidades,
grandes centros urbanos, zonas suburbanas ou pequenos aglomerados urbanos.
“Ambas ressaltando a pequenez do homem em relação aos problemas que o ambiente
lhe opõe.” (COUTINHO,
Op. cit. , p.264).
Do outro lado, o homem diante de si mesmo e dos outros
homens, constituindo a corrente psicológica e de análise de costumes,
preocupada com os dramas de consciência, indagações sobre os atos e suas
motivações, em busca da visão da personalidade e da vida humana.
Essas duas linhas correm paralelas, mas também se misturam
e confundem-se em um mesmo autor e/ou em uma mesma obra, aperfeiçoando os seus
recursos expressivos. Não há que encarar, portanto, as duas correntes como
isoladas. Casos existem de escritores que aliam a análise psicológica e de
costumes ao enquadramento regional, como é o caso do escritor do corpus da pesquisa; ou o documentário
urbano e social à análise psicológica, como no caso ainda de Graciliano Ramos e
o romance Angústia, corpus da pesquisa. Graciliano Ramos é,
assim, um caso particular, pois é regionalista, mas também tem contato íntimo
com a corrente psicológica. O autor transita entre as duas correntes e as
mescla habilmente, dado o seu domínio da linguagem narrativa.
Para Afrânio Coutinho (2001, Op. cit., p.272), a temática do “Romance de 30”, configura-se e
sistematiza-se na base dos cenários e dos costumes, sem todavia obscurecer o
papel da imaginação, das leis dos gêneros, e sem esquecer a linguagem, que é
progressivamente submetida „à força expressional da fala‟. A matéria ficcional
é regional, pois nasce à sombra da oralidade, assim, a ficção obedece a
determinantes regionais. Varia a matéria ficcional de autor para autor, mas só
em consequência do ambiente que é diferente.
Há, dessa forma, “(...) uma evolução coerente da ficção
brasileira desde o início no sentido da brasilidade, pela absorção dos
elementos ficcionais locais.” (COUTINHO, Op.
cit., p.272). O crítico Afrânio Coutinho prossegue na mesma página: “(...)
E mesmo quando o interesse é pela análise do caráter, é em função do ambiente
social.” Nesse aspecto, Graciliano Ramos, autor do corpus da pesquisa, é um exemplo evidente, pois a matéria ficcional
graciliânica adquire dimensão em profundidade (sondagem psicológica), como é
verificado no corpus da pesquisa, o
romance Angústia.
O Modernismo Brasileiro tem sua primeira fase, de 1922 a
1930, na qual predominou a poesia. Em 1928, porém, surgiram duas obras
capitais, que marcam o início da segunda fase, durante a qual sobretudo domina
a ficção: A Bagaceira, de José
Américo de Almeida, e Macunaíma, de
Mário de Andrade. O experimetalismo da primeira fase dá lugar, na segunda, a
uma explosão novelística, nas duas direções tradiconais da ficção brasileira: a
regionalista e a psicológica e de costumes, ambas marcadas por um cunho de
brasilidade.
A publicação de A
Bagaceira é o primeiro sinal de um vasto movimento ficcionista, com base no
ambiente sócio-geográfico do Nordeste. E o início do chamado „ciclo do
Nordeste‟. Assim sendo Afrânio Coutinho afirma:
A fórmula era buscar
no ambiente social, cultural e geográfico os elementos temáticos, os tipos de
problemas, os episódios, que seriam transformados em matéria de ficção. A
técnica era realista, objetiva, os escritores buscando valer-se de uma coleta
de material in loco, à luz da
história social ou da observação de campo, tornando os seus romances
verdadeiros documentários ou painéis descritivos da „situação‟
histórico-social. (COUTINHO, Op. cit.,
p.278)
E num momento de intensa propaganda de reforma social e
mesmo de revolução, como a década de 30, os livros dessa fase constituíram-se
em uma verdadeira literatura engagée,
de participação política, no sentido de mostrar as mazelas do estado vigente
como premissa à necessária transformação revolucionária. Muitos desses autores
tornaram-se até militantes políticos, vindo a constituir uma verdadeira
literatura de esquerda. Caso do autor do corpus
da pesquisa, Graciliano Ramos era comunista declarado e acreditava que o país
só alcançaria uma situação de melhor qualidade de vida e de igualdade social,
por meio da revolução.
Importante fazer algumas considerações a respeito do contexto
histórico do
“Romance de 30”. A Guerra Mundial de 1914
marcou o fim do colonialismo clássico europeu. Os velhos impérios ruíam e novas
potências surgiam no cenário histórico da era industrial. O Brasil, uma das
principais nações de um continente semi-colonizado, complemento dos impérios
europeus, agonizava. O antigo sistema exportador de matérias-primas
alimentícias e o importador de manufaturados esgotara suas possibilidades. A
imigração, a industrialização, a urbanização daí resultante, a agitação
político militar, a crise econômica, demonstrava que o velho sistema ruía. Uma
estrutura mais complexa – gerada pela necessidade de substituir as importações – própria dos subsistemas
periféricos da nova fase da era industrial/capitalista, o substituiria. O
engenho era substituído pelas usinas. O café perdia importância. São alguns
exemplos de tais mudanças.
Então parece claro: o “Romance de 30” é integrante, produto
e reflexo dos primórdios do Brasil moderno, que se superpunha ao Brasil
arcaico/agrário da costa e de suas imediações. E „moderno‟ quer dizer marcado
pelas estruturas urbano-industriais de um capitalismo cujos centros situavam-se
e situam-se no exterior. Nesta fase dos primórdios, as elites dissidentes
modernizadoras e os grupos a elas ligados descobriram, de repente, o Brasil. Ou
seja, os romancistas de 30 chamaram a atenção do povo brasileiro, para as
coisas do Brasil. Com a decadência do colonialismo europeu, os escritores
passaram a ressaltar, no Romance de 30, as novas condições socioeconômicas do
Brasil. O Romance de 30 era, enfim, ao mesmo tempo, o retrato do Brasil agrário/arcaico,
mas também sem perder de vista o aspecto moderno do momento.
A obra literária de Graciliano Ramos focaliza as questões
sociais, principalmente as do nordeste brasileiro, mas analisa psicologicamente
as personagens, mostrando suas angústias e dramas humanos individuais, mas que
são também do homem universal, como forma de testemunho. É o caso do romance Angústia, corpus da pesquisa, que será desconstruído no capítulo seguinte sob
esse viés, a saber: a memória como forma
de testemunho do drama humano. Um drama de sempre.
CAPÍTULO III
A ANÁLISE DO ROMANCE ANGÚSTIA
DE GRACILIANO RAMOS
PELO VIÉS DO MEMORIALISMO
O problema que originou a pesquisa trata da relação da memória como forma de testemunho. A memória aparece fragmentada na obra corpus da pesquisa, Angústia de Graciliano Ramos. A fragmentação decorre do próprio
processo memorialístico que se apresenta entre lembranças e esquecimentos.
Dentre as lembranças a serem destacadas na obra Angústia é possível agrupá-las em três
momentos que subsediam-na como testemunho: a) a infância de Luís da Silva, narrador-protagonista do romance; b) o interior de Alagoas, região de origem de
Luís da Silva e, c) a tradição familiar nordestina, que marcou a
formação da personalidade do protagonista. Esses três momentos são rememorados
pelo narrador no decorrer da obra e constituem o sustentáculo que alicerçam o
processo neurótico de angústia vivida pelo protagonista.
A partir de agora,
dividir-se-á o presente capítulo em dois momentos, a saber: no primeiro será
feita uma breve síntese do enredo da obra corpus
da pesquisa; e, no segundo momento, serão apresentados fragmentados de Angústia para evidenciar o forte viés
memorialístico da obra e o caráter testemunhal da mesma. Será evidenciado que o
assassinato cometido por Luís da Silva, cujo o objeto é Julião Tavares, não é
motivado apenas por ciúmes, mas, principalmente, pela sua angústia oriunda
daqueles três blocos de rememorações (infância,
interior e tradição familiar nordestina).
Ou seja, a traição da sua noiva, Marina, com Julião Tavares, é apenas o estopim
para o crime, porém este é cometido mais pela angústia e traumas de Luís da
Silva, originários desde os tempos de infância,
aflorada com a traição de Marina, assim as lembranças/memórias desse período vêm à tona, testemunhando e justificando o
seu crime.
1. Síntese do enredo
Luís da Silva, narrador-protagonista de Angústia, é um ser frustrado, violento,
cruel, que traz em si reservas consideráveis de amargura, pessimismo e negação.
“(...)Nele, há depravação dos valores, sentimento de abjeção ante o qual tudo
se colore de tonalidade corrupta e opressiva” (CANDIDO, 2006, p.48). Sendo
assim, Luís da Silva não tem nenhuma auto-estima, falta-lhe a confiança
necessária para viver. Desta maneira, a vida torna-se pesadelo sem saída, onde
os delírios norteiam e suprimem a distinção do real e do fantástico.
“(...) Luís fixara
residência na capital do estado natal, Maceió. Era funcionário público e, nas
horas vagas e noturnas, jornalista e escritor” (SANTIAGO, IN: RAMOS, Graciliano. Angústia,
63 ed., 2008, p.287). Luís conhece e apaixona-se por Marina, mas o
relacionamento amoroso não caminha para o final feliz. Pelo contrário, conduziu
o apaixonado ao ciúme da amada e ao ódio do rival. Enforca Julião Tavares,
jovem e arrogante milionário, conhecido estuprador de mocinhas pobres e
ambiciosas. Luís faz justiça com as próprias mãos.
Luís da Silva após cometer o crime, passa por um estado
febril e nervoso. Recuperado dos delírios, o protagonista procura, através das memórias dos acontecimentos, esclarecer
e testemunhar o motivo (real) do ato criminoso. O testemunho para Luís da Silva
é fundamental, pois esse recurso possibilita à personagem rememorar os fatos e,
assim, entender o ocorrido. A memória com
suas lembranças e esquecimentos é o meio usado para testemunhar sua dor,
angústia.
Nesse processo memorialístico, o narrador-protagonista
procura exteriorizar as suas fragilidades, medos, numa espécie de romance
confessional do seu crime: o testemunho mnemônico do assassinato de Julião
Tavares, porém é mais do que isso, é o testemunho da dor/angústia de uma pessoa
marcada desde a infância pelo
sofrimento: o crime é apenas o ápice dessa angústia.
Luís da Silva, após o crime, sente-se ainda mais sujo
física e moralmente do que antes e este sentimento de abjeção volta-se sobre
ele próprio. Acuado por delírios apavorantes, sente necessidade de compartilhar
a experiência solitária e infeliz. Começa, assim, a escrever e resumir todas as reminiscências que vêm à tona de sua
vida, desde a infância até o
assassinato de Julião Tavares, proferindo “(...) sentença judicial
autopunitiva, anterior à justiça dos homens” (SANTIAGO, in: Angústia, 63 ed., 2008, p.288)
2. Análise pelo viés memorialístico
A personagem Luís da Silva busca refúgio no passado, para
fugir do presente e, no passado encontrar justificativa do ato fatal. Mas, como
encontrá-la, se ele está preso pelas convenções sociais, pelo convívio com as
outras pessoas? Possivelmente, se tivesse ficado no interior de Alagoas, na província quieta e distante, nada lhe teria
acontecido. Agora, onde encontrar a paz e a calma? O passado, ao mesmo tempo
refúgio e suplício, é a primeira força motriz no espírito de Luís da Silva.
Pesam sobre si tão consideráveis estigmas do passado, em especial da infância, que o narrador-personagem
procura nela origens da motivação para o crime e, à medida que caminha no
tempo, percebe a marca de um comportamento, sempre intermitente que o lança na
fatalidade dolorosa.
A causa da angústia presente de Luís da Silva é,
justamente, a sua infância. As memórias, as reminiscências latentes da infância são locus de obsessão, para justificar o assassinato de Julião Tavares.
O assassínio de Julião é o emergir de um inconsciente deformado constituído na infância angustiante de Luís da Silva.
Sendo assim, a causa (infância) e o
efeito (crime) da angústia estão ligados indissoluvelmente pelas memórias da infância. Luís da Silva procura então libertar-se da angústia
presentemente vivida, por meio do testemunho da sua infância também dolorosa, porém é em vão, pois o protagonista não
percebe que remontar às origens da angústia, não é, a solução para libertar-se
da dor/angústia vivida até o presente momento da enunciação. Não há catarse
para as sombras que assaltam Luís da Silva.
Luís da Silva se afunda, portanto, num lodaçal de dúvidas e
inquietações, de onde procura sair depois, através de outra via, a derradeira:
o crime, que será aceito como único caminho para a libertação.
As lembranças de Luís da Silva da sua infância servem também para ressaltar a decadência da família
rural. Ela é apresentada por recordações de infância,
evocadas inesperadamente no corpo da narrativa, explicando ou justificando
determinando comportamento ou ação de Luís da Silva (em especial o crime
cometido por ele). Essas recordações estão centradas invariavelmente nos mesmos
fatos, que perseguem a mente da personagem, motivando-a a agir por impulsos
mórbidos. Uma infância cheia de
traumas, marcada pela solidão, e uma juventude sofrida, explicam a
agressividade de
Luís da Silva, para com as pessoas que o
cercam e que ele destrói, destruindo-se também. Quando garoto testemunhou a
decadência moral e financeira de sua família, o que lhe traumatizou, deformando
sua personalidade e a forma de apreender o mundo.
Assim, a estruturação acional do enredo se fundamenta nas memórias de infância, que elucidam as diversas facetas do desenrolar da trama e
os aspectos da psiquê de Luís da Silva, da mesma forma que os traumas infantis explicam muitas atitudes do
comportamento do homem adulto.
Luís da Silva, embora covarde, é um indivíduo prediposto ao
crime por razões perfeitamente compreensíveis, localizadas em seu pequeno
universo de criança, cujas lembranças mostra a chave de sua agressividade
contida, e finalmente liberada em parte, no assassinato de Julião Tavares.
Reconhece em si a influência da figura paterna, cuja morte não conseguiu chorar:
(...) Quem me acordou
foi Rosenda, que me trazia uma xícara de café.
- Muito obrigado,
Rosenda.
E comecei a soluçar como
um desgraçado.
Desde esse dia tenho
recebido muito coice. Também me apareceram alguns sujeitos que me fizeram
favores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensibilizou tanto como aquele
braço estirado, aquela fala mansa que me despertava.
- Obrigado, Rosenda.
Iam levando o cadáver de
Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade chorava por
causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos.
(RAMOS, Graciliano. Angústia. 63 ed.,
2008, p.13)
Herdou o gosto da leitura
do pai, que o levou à profissão de jornalista:
(...) Os negócios na
fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias
inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de
milho para cigarros, lendo o Carlos Magno
(...) (RAMOS, Graciliano. Op. cit.,
p.13)
A influência é negativa, a ponto de as lembranças guardadas
do pai serem associadas à ideia de morte:
e é a morte dele que lhe ficou
profundamente gravada, principalmente a imagem dos pés: “(...) sujos, com
tendões da grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas. Eram magros,
ossudos, enormes”. (RAMOS, Graciliano.
Op. cit, .p.21)
Esta imagem volta ainda em duas situações: quando acompanha
Marina, voltando da casa da parteira que fez o aborto do filho de Julião
Tavares; impressiona-se com a palidez mortal da ex-noiva, e em seu cerébro
cinco mortes se sobrepõem: a do pai –
que se deu num passado remoto, sem sensibilizá-lo, a do filho de Marina e de
Julião – que acaba de acontecer, trazendo-lhe ódio e desejos de vingança, a do
rival – que acontecerá, de acordo com uma intenção latente, a de Marina – que
poderia ter acontecido, satisfazendo-o; a de Cirilo de Engrácia que acontecera
num passado próximo, sensibilizando-o pela semelhança de contextos:
Marina estava como uma
defunta em pé. Pensei em Cirilo de Engrácia, visto dias antes em fotografia –
um cangaceiro morto, amarrado em uma árvore. Parecia vivo e era medonho. O que
tinha de morto eram os pés, suspensos, com os dedos quase tocando o chão. Os
pés de Camilo Pereira da Silva, ossudos, magros, eram assim desgovernados. Os
de Marina estavam metidos na areia. E Marina parecia morta. (RAMOS, Graciliano.
Op. cit., p.217)
A outra situação se dá no delírio pós-criminal, quando
todas as lembranças, até então esparsas, se precipitam, fechando-se o romance:
“Os pés de Camilo Pereira da
Silva, escuros, ossudos, saíam por uma das
pontas do marquesão, medonhos”. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.277)
Luís da Silva não evoca nenhum fato agradável de relacionamento
com o pai. Sobre suas memórias paira
uma sombra fúnebre e até mesmo a impressão de que Camilo desejou matá-lo, nas
aulas de natação, o que lhe suscita a vontade de afogar Marina:
(...) li a história de um
pintor e de um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da Pedra
que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a cara de Camilo Pereira
da Silva, e o cachorro parecia-se comigo. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.18)
A memória do avô
paterno se manifesta em dois níveis: o do poderoso e valente justiceiro, líder
do povo da vila que o acompanha à cadeia, para soltar, contra a lei, um cangaceiro, o do polígamo simpático e
honesto, que prestava assistência a suas amantes negras durante o parto, mesmo
quando o filho não era dele. Este nível corresponde ao dos fatos que a criança
não chegou a testemunhar, tendo-os escutado de terceiros. O outro se relaciona
aos fatos que Luís da Silva presenciou e que giram em torno da caduquice de
Trajano. O mais significativo deles é o da cascavel que se enrola em seu
pescoço, prestes a enforcá-lo, enquanto o velho gritava tira... tira... tira... Esta imagem é da maior relevância no
planejamento e execução do crime. Veja-se, por exemplo, uma de suas aparições:
As cascavéis
torciam-se por ali. Uma delas enroscou-se no pescoço de Trajano, que dormia no
banco do alpendre. Trajano acordou, mas não acordou inteiramente, porque estava
caduco. Levantou-se tropeçando, gritando, e sapateou desengonçado como um
doente de coréia. Uma alpercata saltou-lhe do pé. E ele, arrepiado, metia os
dedos entre os aneis do colar vivo:
- Tira, tira, tira.
(RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.176)
Nas memórias da
meninice de Luís da Silva, as cobras e a sua simbologia em diversas situações
ocupam lugar de destaque: tomar banho
com elas no poço da Pedra, pois dentro dágua eram inofensivas; admira o assassino Chico Cobra, que não
puderam prender porque se protegeu, cercando-se de serpentes; assistia, na vila, à
chegada de presos amarrados em cordas;
horroriza-se com a figura de seu Evaristo, enforcado
numa corda fina, que se torcia e destorcia; compara Amaro Vaqueiro com o
Sol, quando prendia as novilhas com uma
corda, cena que o angustiava e que pretendia ver terminada logo.
Quando Luís da Silva surpreende Julião Tavares com olhos
gulosos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, a aversão,
aparentemente gratuita que lhe inspira o negociante, corporifica-se em desejo
violento de destruição. Coibido, contudo, pelas exigências morais da realidade,
o desejo sufocado se transforma em inquietação angustiante.
Insastisfeito, o desejo busca forma de representação,
deslocando-se para uma cena antiga da infância,
vivida na fazenda do avô: “As cobras arrastavam-se no pátio. Eu juntava
punhados de seixos miúdos que atirava nelas até matá-las” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.93). O elemento cobra
solicita, então, no jogo das associações, outra cena infantil, que se oferece no discurso como micronarrativa: “Certo
dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no
banco do copiar. (...) A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra
batida e gritava: „Tira, tira, tira‟” (RAMOS, Graciliano. Op. cit, p.93)
Através da conexão entre a brincadeira infantil, matar cobras, e
o episódio tragicômico, cobra enrolada
no pescoço do velho, vai-se esboçando pela primeira vez a figuração
plástica de uma cena de enforcamento, projeção do desejo inconsciente de
agressão, que se deixa ler agora no texto manifesto: “Desejei atirar todos
aqueles paralelepípedos em cima de Julião Tavares” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.93)
Se a pequena história do avô já esboçava a cena desejada, a
referência ao caso popular, do “sujeito que namorou a noiva de outro”, vem
acrescentar precisão ao quadro, traduzindo o destino inevitável que merecem
aqueles que desafiam os sentimentos de honra do homem sertanejo (tradição familiar nordestina). E não são
raros os casos de cruel vingança por honra ofendida, principalmente quando o
motivo da ofensa é mulher.
Um salto leva a uma terceira projeção especular do desejo
de morte, com a história do “moleque
da bagaceira”. Explicitação fantástica do desejo de destruição cruel, esse
conto sensacional, como o considera o sujeito-narrador, surge no enunciado por
doação de seu Ramalho, que, relatando-o a Luís da Silva, o oferece como um
objeto mágico, através do qual pode o sujeito dar vazão aos instintos
destruidores, deslocando-os, em transfarência, para a encenação representativa
da tortura e punição do infrator, uma
história de sexo, desonra e vingança, assim narrada:
Um moleque da
bagaceira tinha arrancado os tampos da filha do senhor de engenho. Sabendo da
patifaria, o senhor de engenho mandara amarrar o cabra e à boca da noite
começara a furá-lo devagar, com ponta de faca. De madrugada o paciente ainda
bulia, mas todo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e meteram-lhe pela
garganta a punhal. Em seguida tiraram-lhe os beiços, porque vinha amanhecendo e
era impossível continuar a tortura (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.133)
Na verdade, o singular interesse dessa narrativa reside na
complexa rede de significantes que tece o seu corpo textual. Assim, a violação
sexual, se enlaça à violação da hierarquia social (moleque da bagaceira x filha
de senhor de engenho). Pois a infração maior, que provoca tão cruel punição, é
a violação da hierarquia social: o moleque se torna criminoso porque tansgride
os limites sociais que o separam do senhor de engenho; fosse o senhor de
engenho a violentar uma negra dos terreiros, como fazia o velho Trajano, e nada
aconteceria. Como, da mesma forma, na ação nuclear, nada acontece a Julião
Tavares (filho de Tavares e Cia.) por abusar de Marina (filha de operário), o
que desperta em Luís da Silva, entre múltiplos sentimentos, o desejo de
justiça: bem aventurados os que têm sede
de justiça – repetirá ele muitas vezes ao ver Marina
ultrajada.
Merecem ainda ser notados o gesto cultural de amarrar o
infrator, revelando a presença implícita da corda,
e a satisfação que o sujeito obtêm na contemplação imaginária da tortura lenta.
O caso do moleque da bagaceira afigura-se, assim, como
explicitação máxima do desejo inconsciente, que agora exorbita em representação
alucinada, esgarçando a fronteira entre o real e o imaginário. Contrabandeando
o desejo censurado, o inconsciente faz este desejo exteriorizar-se através de
um discurso estranho, paranoico, em que dados da ficção se mesclam a objetos
reais, deformando-os e deformando-se num todo fantasmal:
(...) eu ia pouco a
pouco distiguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre
era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia,
estavam cobertos de buracos que esguinchavam sangue (...) A poça crescia, em
pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.135-136)
O sangue da cena alucinada derrama-se pelo discurso,
encarnando-o: “Quando ele [ seu Ramalho] desceu a calçada, estremeci:
pareceu-me que tinha sujado os sapatos de sangue” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.136). Chega até mesmo a ganhar odor real, deslocado agora para a figura
de Antônia: “Antônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passou
bamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um cheiro forte de sangue. Provavelmente
estava menstruada e não se lavava.” (RAMOS, Graciliano. Op.
cit., p.136)
Reitera-se outras vezes no romance a cor vermelha,
associando-se essa coloração a uma imagem antiga, à nódoa vermelha que cobria o
corpo morto do pai. Neste traço, reside, a razão essencial da resistência que o
sujeito manifesta pela morte com
sangue. Resistência inquietante, porque o sangue constitui uma inscrição penosa
no inconsciente, por causa de sua associação com a morte do pai, intimamente desejada. E é por isso, que rejeita a morte violenta, com derramamento de
sangue.
Com certeza, será por temor a essa verdade que, finalmente,
quando se entrelaçam, ao nível do discurso, a representação do conto de seu
Ramalho e a figura verdadeiramente motivadora do desejo destruidor (Tavares), a
imagem do moleque vai embranquecendo, as feridas secando, metamorfoseando-se na
imagem de um homem com um pedaço de corda
no pescoço:
O homem tinha os olhos
esbugalhados e estrebuchava desesperadamente. Um pedaço de corda amarrado no pescoço
entrava-lhe na carne branca, e duas mãos repuxavam as extremidades da corda,
que parecia quebrada. Só havia as pontas, que as mãos seguravam: o meio tinha
desaparecido, mergulhado na gordura balofa como toicinho (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.137)
A morte com
sangue desloca-se, assim, para a representação da morte por asfixia, que o sujeito vive na imaginação como real e que
se encontra igualmente ligada na memória
a uma cena infantil de que participa
a figura paterna, a cena do poço.
Ao receber de seu Ivo o rolo de corda, Luís da Silva vê-se tomado de estranha inquietação. A
simples possibilidade de nomear o objeto o faz tremer:
Evitava dizer o nome
da coisa que ali estava em cima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-me
que, se pronunciasse o nome, uma parte das minhas preocupações se revelaria.
Enquanto estivera dobrada, não tinha semelhança com o objeto que me perseguia.
Era um rolo pequeno, inofensivo. Logo que se desenroscara, dera-me um choque
violento, fizera-me recuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão de que
aquilo me ia amarrar ou morder (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.178)
Porque havia se convencido da necessidade de Julião Tavares
ser eliminado – Era evidente que Julião
Tavares devia morrer – a presença da corda
constitui por si mesma a materialização daquele desejo. A sua inquietação
aumenta com a conscientização do ato decisivo, o que o impelirá para a ação
consumadora do crime, em movimento
imperioso e irreversível.
Antes de receber a corda,
o desejo de matar Julião Tavares só se manifestava através de representações:
cenas de tortura, imagens de defuntos
antigos, casos de vingança, enfim, experiências penosas revivescidas pelo
sujeito, as quais, exteriorizam-se de forma distorcida e deformada. Por efeito
da doação, a corda configura-se, na
sua realidade palpável, como o elemento essencial que faltava para compor o
quadro do assassinato preconcebido. Além do mais, segundo o código cultural,
ela se conota de características demoníacas registrado pela sabedoria popular
que Luís da Silva guardou com a voz de Rosenda: “Rosenda me disse que no
momento em que um cristão bota o laço no pescoço o diabo monta nos ombros dele”
(RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.188)
Entretanto, a convicção de que aquele seria o instrumento
do assassinato não se dá assim clara e imediatamente. Luís da Silva, que recua
diante do objeto ameaçador, vê-se despertado para uma série de memórias em que corda aparece explicitada ou deslocada para representações
similares como a sua variante cobra.
Na história de Chico Cobra, corda aparece sob a representação metafórica cobra, que aqui sugere especificamente instrumento de defesa, com o
qual o criminoso se protege da perseguição
policial: “Quando Chico Cobra matou um homem na feira, entrou na mata, fez um
rancho de palha e cercou-se de surucucus e outros viventes semelhantes. Todas
as diligências da polícia para prendê-lo falharam.” (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.178)
Fabrício, entretanto, era cangaceiro, autor de façanhas mmaravilhosas e o primeiro homem
assassinado que o narrador-personagem viu. Morto segundo a tradição cultural
nordestina – “nu da cintura para cima, cosido de facadas” (RAMOS, Graciliano. Op. cit.,
p.180).
Na sua descrição, a palavra corda não
se oferece textualizada, mas sugerida nos seus correlatos constelares – prisão e morte:
Quitéria falava de
Fabrício como de uma criatura extraordinária, narrava façanhas maravilhosas
dele. (...) Mais tarde fugi de casa echeguei-me à cadeia pública, onde o corpo
de Fabrício estava exposto, o tronco nu, os olhos vidrados. Esse cangaceiro
tornou-se para mim excessivamente grande, e nenhum dos defuntos que encontrei
depois, na vida e em livros, foi como ele (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.180)
A história de Fabrício encontra-se ampliada em outra
micronarrativa sobre um criminoso de morte,
que acrescenta a aura de dignidade e admiração, que um homicida, no sertão
nordestino, provoca na população, em um julgamento coletivo:
Às vezes, horas depois
de entrar na vila a rede coberta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia a
praça, conduzindo o criminoso amarrado. (...) o matador tinha os braços presos,
da barriga para cima estava todo embirado de cordas. (...) E o criminoso,
pisando com força, atrevessando o quadro, a cabeça erguida (...) Olhavam para
ele com admiração, e os cachimbos se envaideciam por havêlo pegado vivo.
(RAMOS, Graciliano. Op. cit.,
p.182-183)
Ao acompanhar o percurso da palavra corda, através do jogo de associações em que se apresenta
relacionado com crime, prisão e morte, pode-se
surpreender a figura do criminoso se revestir, progressivamente, de
heroicidade, deslize significante que se faz visível no episódio de Amaro
vaqueiro:
E a corda de couro
girava. Na extremidade o laço ia acima e vinha abaixo. Na escola de seu Antônio
Justino, decorando a geografia, eu comparava Amaro vaqueiro ao sol. Amaro
vaqueiro era uma espécie de sol trepado num mourão. O laço que girava em redor
dele era a terra. De repente essa terra esquisita caía sobre a novilha careta e
prendia-lhe os chifres. (RAMOS, Graciliano. Op.
cit., p.184)
Amaro vaqueiro, assim, reveste-se de traços épicos. Na
figura de Amaro pode-se, então, depreender o desejo de dominação circulando
ocultamente o gesto assassino de Luís da Silva. Amaro vaqueiro é o senhor do
seu laço ( a corda de couro) e com
ele domina as novilhas; a corda que
gira é como a Terra. Ter o domínio do laço significa ter o domínio da Terra,
metáfora de força, de heroísmo, qualidades que Luís da Silva obsessivamente
deseja possuir. No relato de Amaro, o perseguidor é o herói e os perseguidos
são os animais, ou seja, a „bestialidade‟. Aspectos estes que o caracterizam
como contraponto heróico da trama principal, por projetar anseios de coragem e
heroísmo do homem fraco e comum.
Funcionando como oposto dessa micronarrativa heróica,
tem-se a história de seu Evaristo, que se suicida, abrindo novo ângulo de
leitura para o ato criminoso do narradorprotagonista, que comentar-se-á mais
adiante.
Pode-se, desde já, observar que corda, em sua polissemia, desliza sucessivamente de arma de defesa
a instrumento de prisão; de
instrumento de autodestruição a metáfora de poder, ressaltando, na variedade de
nuances, o jogo das significações opostas, que articula e circunda a trama
principal da narrativa de Angústia:
prisão x liberdade; altivez x humilhação; homicídio x suicídio; heroísmo x
covardia.
Ao acompanhar o relato do crime na trama, depara-se
inicialmente com um Luís da Silva espreitando os passos do outro, seguindo-o e
perseguindo-o, para, finalmente, sobre ele saltar e estrangulá-lo. Enquanto
espreita, cresce-lhe o ódio. E os olhos atentos, os dedos crispados e a atenção
felina, o reinscrevem entre os seus antepassados sertanejos. Recupera, nesse
instante, gestos e cólera de cangaceiros e
jagunços, que a memória recolheu da experiência infantil,
dos relatos de cantadores e da leitura. Exemplos que parecem modelar-lhe a
ação, dirigindo suas atitudes segundo um código comportamental preexistenete,
consagrado pela tradição cultural do
sertão nordestino como heroico. Cada passo e gesto do perseguidor evocam um
parâmetro no passado: gestos de ontem, de heróis que a mitologia infantil elegeu, e que se sucedem em
contraponto com as ações do presente, na trama narrativa.
O jogo das significações nos dá os significantes cangaço, perseguição e prisão, desencadeiando
e conectando as micronarrativas que serão comentadas a partir de agora.
Sumindo e reaparecendo como um balão colorido em noite de São João, Julião
Tavares provoca em seu
perseguidor a memória junina, cena do
passado real:
As meninas de Teotoninho
Sabiá cantavam (...) debaixo de um mamoeiro de folhas torradas, Carcará assava
milho verde na fogueira e largava risadas enormes. Meu pai dizia: „Hi! parece
um papa-lagartas‟. Eu não sabia que espécie de bicho era o papalagartas nem por
que meu pai se lembrava dele ouvindo as gargalhadas de Carcará. Tudo tão
simples! (...) Teresa era boa, chupava o dedo mindinho e chorava quando
chegavam as redes e os homens amarrados de cordas (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.231-232)
O significante cangaço,
condutor dessa associação de variantes, aparece no episódio citado substituído
por Carcará e “papa-lagartas”, enquanto “cordas”
se incumbe de remeter a narrativa nuclear. Tudo leva a entender que o homem
que largava risadas ao pé da fogueira seja um jagunço e matador. Seu
apelido remete à ave de rapina. O termo
papa-lagartas não faz então mais que repeti-lo, insistindo nos significantes matar, comer e sobreviver,
configuradores da imagem de jagunço.
Completando a cena reaparece a descrição de redes e homens amarrados de cordas entrando na vila, resumo de casos
de morte e prisão.
Segue-se a descrição do quadro de um cangaceiro morto – Cirilo de Engrácia: “Cirilo de Engrácia, morto,
em pé, amarrado a uma árvore, coberto de cartucheiras e punhais, tinha os
cabelos compridos e era medonho” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.232)
Várias vezes reaparece a visão de Cirilo de Engrácia morto,
servindo para prefigurar, na narrativa, o morto Julião Tavares: em pé, amarrado a uma árvore. Assim o vê Luís da Silva enquanto
persegue o rival, na representação oferecida pela imagem guardada na memória. Com isso, a representação de
Cirilo oscila entre perseguido e perseguidor. Cirilo se assemelha a Julião
Tavares, vítima naquele instante de Luís da Silva; já como cangaceiro, encarna o assassino frio a quem o mesmo Luís da Silva
deseja se igualar. No fundo da cena, contudo, é o narrador-protagonista quem se
considera perseguido e vítima como Cirilo, enquanto o negociante passa a ser
visto como o perseguidor, representação simbólica da ordem social hostil ao
protagonista.
Percebe-se o significante cangaço a se disseminar através do jogo dos pares antitéticos
perseguido/perseguidor, assassino/vítima. Essa disseminação continua, porém, a
fazer-se pelas micronarrativas seguintes, como ocorre com a de Cabo Preto, que
introduz o contraponto entre a ordem social antiga e a ordem social vigente,
acrescentando o par protegido/protetor, correlato aos anteriores:
Muitos anos antes os
cabras de Cabo Preto haviam-se escondido na capoeira para não assustar sinha
Germana. (...) Os cangaceiros eram amigos de Trajano, sinha Germana esquipava
no caminho iluminado pelo sol cru. Nenhum ódio. Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva tinha umas reses que definhavam e entendia-se perfeitamente
com os emissários de Cabo Preto (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.233-234)
No passado, o avô de Luís da Silva, Trajano, senhor de
engenho, trocava favores com os cangaceiros.
Oferecia-lhes cobertura e deles recebia proteção e respeito. No presente, os
guarda-civis, desglorificados, protegem igualmente o poder estabelecido.
Num Estado autoritário, a polícia
apresenta-se como espécie de cangaço
institucional. Tem carta branca para agir de forma arbitrária e despótica a
serviço do poder repressor do estado, e seus agentes, como os jagunços de ontem, obedecem, sem
questionar, as ordens hierárquicas, conforme exemplifica o guarda-civil da
narrativa de Angústia: “Se houver
greve nas fábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas, atira, tremendo” (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.196)
Na relação do jagunço
com o velho poder senhorial não há ódio. Ao jagunço
não lhe é dada a consciência moral de seus atos; cabe-lhe obedecer, na certeza
de que o poder de seu senhor emana do divino. Assim se passa com José Baía.
Luís da Silva recorda
José Baía, célebre por
suas façanhas, que culminavam sempre em morte:
José Baía vinha contar-me histórias no copiar
(...) Tão bom José Baía! O clavinote dele tinha vários riscos na coronha.
Ninguém falava alto a José Baía, ninguém lhe mostrava cara feia. (...) Não me
seria possível imaginar José Baía atacado de uma crise de ódio como a que me
fazia pregar as unhas nas palmas. Provavelmente ele ficava sossegado na
capoeira (...) O ouvido atento a qualquer rumor que viesse do caminho estreito,
o joelho no chão, em cima do chapéu de couro, o olho na mira, a arma escorada
na forquilha, com certeza não pensava, não sentia (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.234-235)
No seu íntimo não se dá conflito, tão condicionado está à
obediência. Sem a intervenção da censura moral, pode exercer sua função com
frieza e precisão. É, pois, como representação do matador paciente e frio, que José Baía vem juntar-se às demais
imagens de jagunços. Marca-lhe,
contudo, a diferença a especial conotação de afeto com que sua lembrança se
encontra inscrita em Luís da Silva e que o configura como a versão mais
completa do herói sertanejo. Amigo e protetor, pacífico contador de histórias,
José Baía acompanha o narrado como modelo ideal de grandeza, síntese-perfeita
de ferocidade e brandura.
Por outro lado, a micronarrativa de José Baía suplementa a
de Cirilo de Engrácia, oferecendo, antecipadamente, o relato da possível prisão do assassino:
Entraste um dia na
vila, amarrado de cordas, negro de suor e poeira, cercado por uma tropa de
cachimbos. Os teus olhos claros se arregalavam num espanto verdadeiro.
Envelheceste e és outro, uma inutilidade feita pela justiça. Os teus ouvidos e
a tua vista se estragaram, as tuas mãos tremem, estás sério (...) (RAMOS,
Graciliano. Op. cit., p.235)
Essa referência insistente a José Baía e aos seus
celebrados feitos é indício da angustiante presença de tudo quanto acabara por
significar crime ou ato violento: romance de memórias, de sondagem interior, está evidente que se fixem, para
mais tarde despontar as passagens ligadas ao crime. A memória incumbe-se de selecionar as lembranças que vão jorrando
torrencialmente em Luís da Silva e escolhe as condicionadoras do drama.
O maior herói de sua infância
é, portanto, José Baía, pistoleiro a serviço do avô, autor de várias mortes, a consciência tranquila porque
cumpria ordens. Contava-lhe histórias de onças, que ouvia com prazer e temor.
Momentos antes de matar Julião Tavares, Luís o evoca com insistência, como se ansiasse por uma reincarnação do capanga em
seu ser covarde e doentio, chama-lhe de irmão, imagina-o cumprindo pena em uma
cadeia nojenta, une-se a ele indissociavelmente, e só assim adquire coragem
para saltar sobre Julião, como as onças das histórias: “Retirei a corda do
bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao
pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se
naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas
afastaram-se.” (RAMOS, Graciliano.
Op. cit., p.237)
Movido pelo exemplo de homens fortes, cangaceiros e jagunços, heróis do mundo sertanejo, Luís da Silva
cumpre a tradição cultural da tocaia. Textualizada
sob a forma de uma variante singular, que não utiliza arma de fogo, a tocaia se
reinscreve, através da motivação do narrador, típica de emboscada, pela perseguição e espreita paciente e
nervosa, para, finalmente, com a aproximação segura do inimigo, executar o ato
final, selvagem, felino.
De acordo com o código
cultural próprio do sertão, é esta uma forma legítima de luta. Luta que
raramente se dá cara a cara. E o jagunço,
hábil matador, vê-se consagrado, temido por sua astúcia e admirado pela
coragem. Nesta grandeza passada, Luís da Silva se contempla, tentando, num
único gesto, eliminar a intrusa presença do rival e se elevar perante seus
próprios olhos como homem, para reatar o fio rompido de heroicidade nordestina.
Encontra-se ainda evocada a micronarrativa do suicídio de
seu Evaristo, que sombreia as outras micronarrativas pelo significante morte. A figuração do corpo morto do
velho suicida seria mera redundância se sua história não oferecesse outros
significantes que lhe assinalam a diferença. Entre eles, orgulho e humilhação, paradoxais, mas básicos. Pois, é para fazer
valer sua hombridade de ser humano e afirmar ainda uma vez sua já fragilizada
altivez que seu Evaristo suicida.
A significação desse ato deve ser procurada nos limites entre
a coragem e a covardia, como uma forma de recusa definitiva a uma existência
desonrosa e como afirmação incontestável da individualidade do ser, da sua
liberdade, do direito inalienável de dispor da própria vida.
A verdade é que a história de seu Evaristo contribui para
aumentar a complexidade da leitura do significante morte, já que sugere uma significação suplementar impossível de se
omitir: o ato assassino, núcleo da ação, inscreve-se ele próprio como gesto
ambíguo de homicídio e suicídio, pois o crime é, na verdade, um ato que provoca
mais angústia, pois Luís da Silva passa a sofrer mais ainda depois do crime, do
que já sofria antes do mesmo, configura-se, assim, o crime um castigo, ao invés
de libertação.
Matar Julião foi-lhe a mais dura das provas; era um desafio
à sua timidez, à sua introspecção, o que o tornava revoltado contra tudo e
todos.
Presa de suas memórias,
Luís da Silva passará da inércia degradante para a mais brutal atividade, à
cuja realização sucede o prestar de contas com o passado, de onde a tremenda
luta que o atira numa angústia miserável, obsessão e pesadelo
intermináveis.
Algoz e confidente do ato, Luís da Silva procura em si o
impossível consolo e a inexistente justificativa, esquecido de que encontrará
apenas mais culpa e angústia. Voltando-se freneticamente para o passado, à
procura da fugaz compensação para a realidade cotidiana, o narrador acaba por
resvalar em arestas perfurantes desse mundo que mais e mais se funde com sua
própria dor e seu drama.
A ideia fixa em cometer
o assassínio de Julião Tavares diz respeito a um crescente dramático, que
certas causas remotas atestam o despertar das primeiras manifestações do crime,
quer por reflexo dum ambiente sobrecarregado de banditismo, e de audácia
criminosa, como o da fazenda em que cresce, quer por sentir na carne quão
significativo lhe seria a realização dum semelhante. Tudo isso conjugado lhe
impele à concretização da ideia fixa: cometer o crime. Após a feitura do mesmo,
Luís da Silva será unicamente a lembrança do que foi e do que fez. Sua angústia
é quase a consequência do complexo de culpa que o assalta, por sentir a
inutilidade do esforço praticado. O desespero é mais causado pela sensação de
vazio experimentada ante o que supunha decisivo para sua
vida interior.
Voltado que está para o passado, não raro Luís da Silva irá
desvendando no seu âmago certas sensações ali deixadas por cenas e passagens
que atestam como disponibilidade para o crime. Vivendo num ambiente saturado de
cangaço, criado à solta, é evidente
sentisse logo nos primeiros anos a tentação de praticar atos julgados
corriqueiros para indivíduos, como José Baía, afeitos à profissão de
matar.
Luís da Silva prepara minuciosamente o assassínio de Julião
Tavares, mas mesmo aqui em que poderia ocorrer apenas a descrição dos fatos
exteriores à sua consciência, tem-se a inserção estilística de sua emotividade,
de forma bastante confessional:
Retirei a corda do bolso e em alguns
saltos, silenciosos como os das onças de José
Baía, estava ao pé de
Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente.
A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se.
Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu
havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava
arrastar-se, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A
obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e
do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma
alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figuras
insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me
convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que
meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória do Mestre Antônio Justino, os
berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do
diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. (RAMOS, Graciliano. Op. cit., p.237-238)
Neste trecho, o crime é representado de forma resumida, mas
a evocação comparativa da infância (“silenciosos como os das onças de
José Baía”), perturba o fluxo linear, retardando a ação, mas adquirindo tom
confessional e memorialístico, além de criar “suspense” e dando profundidade ao
relato. Pois, predomina a consciência da personagem, que avalia a situação, em
relação a ordem social da qual é originária
(interior
de Alagoas), na qual vivia-se em meio a características feudais e patriarcais
(onde um criminoso, como José Baía, seria digno de admiração), porém no
presente da enunciação, iso já não tem mais tanta validade. Já que Luís da
Silva percebe a atitude anti-social praticada por ele (e que seria “normal” no
passado).
Cometido o crime, impulsionado por um passado aterrador em
que se misturam recordações de um ambiente infestado dos mais perniciosos
exemplos, pelo contato direto com experiências prematuras na criança ao
presenciar atitudes violentas, além de outros fatos, não restou a Luís da Silva
senão mergulhar cada vez mais em seus complexos. Inútil o crime, mais arraigava
no espírito a convicção de que o ato falhado originava-se de um acervo de memórias marcadas de funestas
experiências. Daí a angústia, em que tomba depois de perceber a gratuidade do
ato. Autômato a praticar um ato fatal, o recobro momentâneo dos sentidos
deu-lhe a sensação mortificante da angústia, que o acompanhará para todo o
sempre.
CONCLUSÃO
Pode-se afirmar que Graciliano Ramos é um dos poucos escritores,
que obriga o leitor a se envolver psicologicamente com o drama vivido pelas
personagens de suas obras, pois ao usar o recurso do memorialismo como forma de
testemunho, valendo-se da narrativa em primeira pessoa, com incessante fluxo de
consciência e rememorações, faz o leitor perceber, no caso, da obra corpus da pesquisa, Angústia, a dor do protagonista da mesma, Luís da Silva.
O viés do memorialismo foi, portanto, escolhido pelo
escritor alagoano para ressaltar as agruras de Luís da Silva, pois como é a
própria personagem principal do romance, que narra seu drama, o viés do
memorialismo foi o mais apropriado para Graciliano Ramos testemunhar a dor da
sua personagem, Luís da Silva, um homem frustrado, angustiado, revoltado contra
tudo e todos, paranoico, solitário, que no desespero, pensa que o único meio de
sair dessa situação, é a morte do rival, Julião Tavares, que “roubara” o
interesse amoroso de Luís da Silva, Marina. Ao perceber que o assassinato de
Julião não diminuiu sua angústia, resta a ele rememorar avidamente suas
memórias, buscando entender os fatos ocorridos em sua vida, contudo, as
rememorações de Luís da Silva, não conseguirão salvá-lo do sofrimento a que ele
está submetido perpetuamente.
As personagens graciliânicas são sempre, assim, densas
psicologicamente e sempre passando por problemas, questões ou crises
existenciais, é o caso de Luís da
Silva, protagonista do corpus da pesquisa, Angústia,
romance escrito por Graciliano Ramos e, que enfoca o drama de Luís da Silva,
contudo o drama dele é tão universal e atemporal, que pode ser de qualquer um
de nós.
Enfim, o melhor recurso encontrado pelo escritor Graciliano
Ramos, foi o do memorialismo, para demonstrar e testemunhar com propriedade a
angústia de Luís da
Silva.
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