(“TENDA
DOS MILAGRES”, JORGE AMADO, ROMANCE, 1969”):
(“A
ACEITAÇÃO DA MISCIGENAÇÃO CULTURAL COMO CONDIÇÃO FUNDAMENTAL PARA QUE A
SOCIEDADE SE LIVRE DOS PRECONCEITOS ÉTNICOS”):
(CRÍTICA POR RAFAEL VESPASIANO)
““Tenda
dos Milagres”, escrito pelo romancista Jorge Amado e, publicado originalmente
no ano de 1969, pela editora Martins Fontes -, no ano seguinte ao AI-5, o mais
duro ato institucional decretado pela Ditadura Militar Brasileira, que derrubou
o presidente eleito Jango, por meio de um golpe de estado militar, em 1964 -, é
um dos romances de Amado mais coesos. É um livro maduro de sua veia como ficcionista. Um livro de
crítica social que até então se perdera depois da ‘trilogia inicial’ da fase
cacaueira (1931-34).
Retomou o escritor à veia de crítica social, desta vez ao
Estado Novo com “Capitães de Areia”, em 1937; abrindo exceções posteriores como,
“O cavaleiro da Esperança”, livro que aborda a coluna Prestes e seu líder,
biografia de 1942, e, com a trilogia romanesca “Os subterrâneos da liberdade”, de
1954 -, uma pesada e densa crítica ao estado de exceção de Getúlio Vargas, o
Estado Novo, mais uma vez denunciado por Amado.
Depois veio uma sucessão de livros que perdeu muito desta
grande faceta de crítica social do escritor baiano, como os títulos arrolados,
que ficaram marcados pela sensualidade, erotismo, boemia, baixo calão e caricaturas
pouco funcionais para uma denúncia social, que Jorge Amado vinha fazendo, mas
lembrar a Ditadura estava para eclodir em 1964 e em 1958, os ânimos políticos e
sociais brasileiros já estavam acirrados e irascíveis em excesso, e, não sei
até que ponto isso pesou na escrita do grande autor baiano. Por exemplo os
títulos arrolados abaixo estavam sobre estas influências do contexto socioeconômico
desfavoráveis à liberdade de expressão plena:
• “Gabriela, cravo e
canela”, romance (1958);
• “A morte e a morte de Quincas Berro d'Água”, novela (1959);
• “Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso”, novelas
(1961);
• “Os pastores da noite”, romance (1964);
• “O Compadre de Ogum”, romance (1964);
• “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, romance (1966).
Porém, surpreendentemente, aos leitores brasileiros e para
crítica literária, Amado nos presenteia positivamente com uma obra-prima de
denúncia social e econômica e cultural universal, por isso um clássico romance,
da Literatura Brasileira, que é “Tenda dos Milagres”, que -, denuncia os
preconceitos socioeconômicos, religiosos, de renda, raciais, étnicos e
culturais, os quais o verdadeiro povo baiano sofria e sofre até hoje, e,
portanto, todo o povo brasileiro sofre dia-a-dia, pois são ligados às
verdadeiras raízes da formação antropológica da nossa nação, quais sejam: as
tradições anteriores a 1500, aquelas dos
indígenas que aqui já estavam antes de Cabral e Portugal chegarem para impor a
colonização; além de nossas formações culturais afro-brasileiras, a partir do
momento da escravidão no Brasil-colônia até, oficialmente, 1888, quando Isabel
assinou um papel.
Essas críticas sempre permeiam a obra como um todo do artista
Jorge Amado, aliada à uma prosa que é corrente, de deliciosa leitura, onde os
tipos, embora um tanto caricatos em exagero, virando muitas personagens
verdadeiras arquétipos ou pior caricaturas, mas, tão característicos de seus
personagens parecem que estão até hoje a nos espreitar em cada beco, em cada
local do Pelourinho.
Às vezes essas características das personagens são para o mal
desenvolvimento do enredo da obra, ora para o bem. O mesmo se dá no romance de
1969, contudo Tenda dos Milagres consegue superar este problema, por sua força
de crítica social e o caricatismo de algumas personagens, acabam ajudando a
derrubar até instituições acadêmicas consagradas da Bahia e do Brasil, com seu
pedantismo ainda cheirando a Sílvio Romero, em pleno século XX, aquele ‘crítico
literário’ que afirmou em ensaio que Machado de Assis não seria um bom
escritor, pois nascera mulato e além de tudo era gago.
Contudo, o bedel da UFBA, Pedro Archanjo, protagonista do
romance, defenestra e refuta todos os argumentos, não só de Romero, mas da
sociedade baiana, brasileira e mundial, que são defendidos por catedráticos da
instituição consagrada em Salvador, entre outras em quaisquer lugares do
planeta e em qualquer meio social e comunitário e cultural-religioso-político,
infelizmente, reacionários e preconceituosos, e, não abetos ao diálogo e ao
debate sadio de ideias e ideais. Não me refiro, apenas no tocante a Assis, mas
aqui na minha resenha, o ensaio do ensaísta sergipano serve como exemplo do que
“Tenda dos Milagres” trata: denúncia a todos os tipos de preconceitos, até
entre os ‘professados’ pelos integrantes da Academia e do meio literário.
(TRECHOS: “- Esse bedel é um homem de ciência, pode dar lição
a muito professor. ”. Frase do Professor sem ‘neuras’ Silva Virajá sobre
Archanjo, a qual, o mesmo professor completa com esta outra frase: “ – O talento
independe de pigmentação, de títulos, de condição social, tudo isso é tolice.
Meu Deus, como é possível que exista ainda gente que desconheça esta verdade? ”. (AMADO, 1969, p.219).).
Archanjo é o começo, meio e o fim da obra, e, tudo gira em
torno dele, mesmo depois dele morto; nascera ainda no século XIX, morrera anos
depois, por exemplo, após suposta participação direta ou indireta, na Semana de
Arte Moderna de 1922, entre outros fatos rememorados no romance, por uma
personagem que é um jornalista um tanto caricato, assim como o próprio
protagonista, às vezes o é. Porém, Archanjo
é o símbolo da luta de uma vida inteira, a personagem é a chave de Salomão,
para usar a expressão de Gilberto Amado, em ensaio homônimo, que aborda, de
certa forma, a formação da identidade da nação brasileira e do meio cultural
nacional do início do século XX. Assim, Archanjo é a sabedoria transcendental
visionária de que só a miscigenação sociocultural no mundo trará paz para as
nações e para Humanidade, em todos os níveis, ou pelo menos, sabedoria para
lutar e evitar a existência em si de preconceitos contra pessoas e opções
culturais e étnicas destas, por puro desconhecimento ou por falta de entender o
próximo mesmo, ou seja de buscar, formação intelectual e identitária.
Archanjo luta, literariamente, e literalmente, se
necessário, pela igualde de direitos e opiniões, livres de amarras
a qualquer pessoa, de ser negro, por exemplo, coisa que não é decidido por
ninguém, nem por aquele que é negro!; opção ou iniciação religiosa, candomblé
ou umbanda, que seja; jogadores de capoeira e não de xadrez, enfim. Isso tudo é
da vida e irrepetível, portanto, o bedel, na verdade é um doutor em sabedoria
de Vida em comunidade e respeito ao próximo, livre de preconceitos, coisa que
ele ministra e leciona com propriedade.
Pedro Archanjo é Ojuobá, os olhos de Xangô, o pai do povo
injustiçado da Bahia e por tabela do mundo. Dos negros, dos mestiços, da gente
pobre. Rei do terreiro, dos afoxés, amigo dos seus pares, conselheiro de
quantos o procuram. Pedro Archanjo é o bedel da Faculdade de Medicina, mas é
também o mentor da ‘Tenda dos Milagres’, uma casa de cultura (popular?), uma
oficina de impressão, uma casa de espetáculos, enfim uma quase universidade
popular assentada na ladeira do Tabuão.
No início do século XX, Archanjo e sua tenda dos milagres
funcionam. O bedel lidera o centro cultural, justamente, um mestiço,
intelectual autodidata (como Machado de Assis o foi no século XIX-XX), sem
formação acadêmica, mas doutor pelo calejar da vida, pela vivência das ruas,
pelo convívio com seu povo.
Um religioso-místico, envolvido e digno representante do sincretismo
religioso da Bahia, mas ao mesmo tempo uma inteligência racional a serviço de
uma causa: a defesa da mestiçagem das raças, etnias e culturas, como maneira de
combate aos diversos preconceitos e a elevação da cultura negra, muito
diferente, por exemplo de Sílvio Romero, José Veríssimo, Dr. Bernard,
professavam no século XIX, nos meios acadêmicos do Brasil e da Europa.
Acharam o livro de 1969, muito atual em relação à Humanidade
do século XXI, 2016?!... Aí não é acaso; é continuidade do que uma classe
dominante quer que continue assim na Terra Inteira. Mas vários Jorge Amados
surgirão se necessário para escreverem ficção-real como a de Archanjo para
denunciar tais arbitrariedades e sugerir artisticamente o mundo livre de
amarras contra a Vida Plena Humana em convívio com a Natureza; ou, se ‘eles’
ganharem ‘viva’ às atitudes preconceituosas, não ou sim?.
Jorge Amado pode parecer, às vezes, omisso politicamente e
literariamente, em algum romance, mas até em “Gabriela”, “Jubiabá” e “Dona Flor”,
por exemplo, através dos enredos, dos narradores e das personagens, de cada uma
de suas obras, direta ou indiretamente, algumas sugestões de luta contra as arbitrariedades
daqueles que não conseguem lidar com as opções culturais, liberdades religiosas
e sociais de cada um de nós -, desde que sejam éticas e morais, e, não prejudiquem
a ninguém -, o romancista brasileiro grita de alguma forma para que o povo
oprimido se faça ouvir e aprender como Archanjo aprendeu e ensinou à muita
gente a lutar dessa forma contra o açodamento étnico brasileiro e quiçá mundial
de tantos.
Um Castro Alves da prosa e do século XX, ou melhor de sempre,
pois, “Tenda dos Milagres” é universal. Queiram ou não queiram... apesar de
qualquer fator crítico-literário de restrição teórica literária acadêmica, que
venham a levantar, no caso em específico desta obra-prima. Mas, reiterando, que
também vejo defeitos nela, quem sabe uma pequena obra-prima, um libelo
social?!...
Porém, aparece,
infelizmente, mais uma constatação interrogativa e sugerida: assim, em suma, o escritor baiano, mesmo
dentro da crítica literária, que em boa parte o ver como um escritor mediano,
com muitos mais aspectos negativos para ser enquadrado em ‘alta literatura’?;
por outro lado, ao meu ver e de muitos, possui muitos aspectos positivos literários e
ficcionais também, que pelo menos o fazem querido do povo sofrido baiano,
brasileiro e mundial, pois suas obras, e a personagem Pedro Archanjo lutam
contra a opressão, a desigualdade e os preconceitos quais sejam.
Isso prova a
universalidade, que já abordei acima da obra em tela. Mesmo, que infelizmente,
ela seja atualíssima, para os dias de hoje, deste século XXI sinistro e
preconceituoso, de setembro de 2016. O que prova o caráter de Literatura de
alto nível de Amado e, portanto, “Tenda dos Milagres”, de 1969, já é um
clássico de âmbito universal e literário.”.
REFERÊNCIAS
BILIOGRÁFIAS:
AMADO,
Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo:
Martins Fontes, 1969.
AMADO,
Gilberto. “A chave de Salomão”. In.: A chave de Salomão e outros escritos. São
Paulo: José Olympio, 1971.
ROMERO,
Sílvio. História da literatura
brasileira. 5 vols. São Paulo: José
Olympio, 1953.
VERÍSSIMO,
José. Estudos de literatura brasileira. 7
vols. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.
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