sábado, 10 de setembro de 2016

(“TENDA DOS MILAGRES”, JORGE AMADO, ROMANCE, 1969”): (“A ACEITAÇÃO DA MISCIGENAÇÃO CULTURAL COMO CONDIÇÃO FUNDAMENTAL PARA QUE A SOCIEDADE SE LIVRE DOS PRECONCEITOS ÉTNICOS”)

(“TENDA DOS MILAGRES”, JORGE AMADO, ROMANCE, 1969”):

(“A ACEITAÇÃO DA MISCIGENAÇÃO CULTURAL COMO CONDIÇÃO FUNDAMENTAL PARA QUE A SOCIEDADE SE LIVRE DOS PRECONCEITOS ÉTNICOS”):

(CRÍTICA POR RAFAEL VESPASIANO)

““Tenda dos Milagres”, escrito pelo romancista Jorge Amado e, publicado originalmente no ano de 1969, pela editora Martins Fontes -, no ano seguinte ao AI-5, o mais duro ato institucional decretado pela Ditadura Militar Brasileira, que derrubou o presidente eleito Jango, por meio de um golpe de estado militar, em 1964 -, é um dos romances de Amado mais coesos. É um livro maduro de sua veia como ficcionista. Um livro de crítica social que até então se perdera depois da ‘trilogia inicial’ da fase cacaueira (1931-34).
Retomou o escritor à veia de crítica social, desta vez ao Estado Novo com “Capitães de Areia”, em 1937; abrindo exceções posteriores como, “O cavaleiro da Esperança”, livro que aborda a coluna Prestes e seu líder, biografia de 1942, e, com a trilogia romanesca “Os subterrâneos da liberdade”, de 1954 -, uma pesada e densa crítica ao estado de exceção de Getúlio Vargas, o Estado Novo, mais uma vez denunciado por Amado.
Depois veio uma sucessão de livros que perdeu muito desta grande faceta de crítica social do escritor baiano, como os títulos arrolados, que ficaram marcados pela sensualidade, erotismo, boemia, baixo calão e caricaturas pouco funcionais para uma denúncia social, que Jorge Amado vinha fazendo, mas lembrar a Ditadura estava para eclodir em 1964 e em 1958, os ânimos políticos e sociais brasileiros já estavam acirrados e irascíveis em excesso, e, não sei até que ponto isso pesou na escrita do grande autor baiano. Por exemplo os títulos arrolados abaixo estavam sobre estas influências do contexto socioeconômico desfavoráveis à liberdade de expressão plena:
•   “Gabriela, cravo e canela”, romance (1958);
• “A morte e a morte de Quincas Berro d'Água”, novela (1959);
• “Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso”, novelas (1961);
• “Os pastores da noite”, romance (1964);
• “O Compadre de Ogum”, romance (1964);
• “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, romance (1966).
Porém, surpreendentemente, aos leitores brasileiros e para crítica literária, Amado nos presenteia positivamente com uma obra-prima de denúncia social e econômica e cultural universal, por isso um clássico romance, da Literatura Brasileira, que é “Tenda dos Milagres”, que -, denuncia os preconceitos socioeconômicos, religiosos, de renda, raciais, étnicos e culturais, os quais o verdadeiro povo baiano sofria e sofre até hoje, e, portanto, todo o povo brasileiro sofre dia-a-dia, pois são ligados às verdadeiras raízes da formação antropológica da nossa nação, quais sejam: as tradições anteriores a 1500, aquelas  dos indígenas que aqui já estavam antes de Cabral e Portugal chegarem para impor a colonização; além de nossas formações culturais afro-brasileiras, a partir do momento da escravidão no Brasil-colônia até, oficialmente, 1888, quando Isabel assinou um papel.
Essas críticas sempre permeiam a obra como um todo do artista Jorge Amado, aliada à uma prosa que é corrente, de deliciosa leitura, onde os tipos, embora um tanto caricatos em exagero, virando muitas personagens verdadeiras arquétipos ou pior caricaturas, mas, tão característicos de seus personagens parecem que estão até hoje a nos espreitar em cada beco, em cada local do Pelourinho.
Às vezes essas características das personagens são para o mal desenvolvimento do enredo da obra, ora para o bem. O mesmo se dá no romance de 1969, contudo Tenda dos Milagres consegue superar este problema, por sua força de crítica social e o caricatismo de algumas personagens, acabam ajudando a derrubar até instituições acadêmicas consagradas da Bahia e do Brasil, com seu pedantismo ainda cheirando a Sílvio Romero, em pleno século XX, aquele ‘crítico literário’ que afirmou em ensaio que Machado de Assis não seria um bom escritor, pois nascera mulato e além de tudo era gago.
Contudo, o bedel da UFBA, Pedro Archanjo, protagonista do romance, defenestra e refuta todos os argumentos, não só de Romero, mas da sociedade baiana, brasileira e mundial, que são defendidos por catedráticos da instituição consagrada em Salvador, entre outras em quaisquer lugares do planeta e em qualquer meio social e comunitário e cultural-religioso-político, infelizmente, reacionários e preconceituosos, e, não abetos ao diálogo e ao debate sadio de ideias e ideais. Não me refiro, apenas no tocante a Assis, mas aqui na minha resenha, o ensaio do ensaísta sergipano serve como exemplo do que “Tenda dos Milagres” trata: denúncia a todos os tipos de preconceitos, até entre os ‘professados’ pelos integrantes da Academia e do meio literário.

(TRECHOS: “- Esse bedel é um homem de ciência, pode dar lição a muito professor. ”. Frase do Professor sem ‘neuras’ Silva Virajá sobre Archanjo, a qual, o mesmo professor completa com esta outra frase: “ – O talento independe de pigmentação, de títulos, de condição social, tudo isso é tolice. Meu Deus, como é possível que exista ainda gente que desconheça esta verdade? ”.  (AMADO, 1969, p.219).).

Archanjo é o começo, meio e o fim da obra, e, tudo gira em torno dele, mesmo depois dele morto; nascera ainda no século XIX, morrera anos depois, por exemplo, após suposta participação direta ou indireta, na Semana de Arte Moderna de 1922, entre outros fatos rememorados no romance, por uma personagem que é um jornalista um tanto caricato, assim como o próprio protagonista, às vezes o é. Porém, Archanjo  é o símbolo da luta de uma vida inteira, a personagem é a chave de Salomão, para usar a expressão de Gilberto Amado, em ensaio homônimo, que aborda, de certa forma, a formação da identidade da nação brasileira e do meio cultural nacional do início do século XX. Assim, Archanjo é a sabedoria transcendental visionária de que só a miscigenação sociocultural no mundo trará paz para as nações e para Humanidade, em todos os níveis, ou pelo menos, sabedoria para lutar e evitar a existência em si de preconceitos contra pessoas e opções culturais e étnicas destas, por puro desconhecimento ou por falta de entender o próximo mesmo, ou seja de buscar, formação intelectual e identitária.  
Archanjo luta, literariamente, e literalmente, se necessário, pela igualde de direitos e opiniões, livres de amarras a qualquer pessoa, de ser negro, por exemplo, coisa que não é decidido por ninguém, nem por aquele que é negro!; opção ou iniciação religiosa, candomblé ou umbanda, que seja; jogadores de capoeira e não de xadrez, enfim. Isso tudo é da vida e irrepetível, portanto, o bedel, na verdade é um doutor em sabedoria de Vida em comunidade e respeito ao próximo, livre de preconceitos, coisa que ele ministra e leciona com propriedade.
Pedro Archanjo é Ojuobá, os olhos de Xangô, o pai do povo injustiçado da Bahia e por tabela do mundo. Dos negros, dos mestiços, da gente pobre. Rei do terreiro, dos afoxés, amigo dos seus pares, conselheiro de quantos o procuram. Pedro Archanjo é o bedel da Faculdade de Medicina, mas é também o mentor da ‘Tenda dos Milagres’, uma casa de cultura (popular?), uma oficina de impressão, uma casa de espetáculos, enfim uma quase universidade popular assentada na ladeira do Tabuão.
No início do século XX, Archanjo e sua tenda dos milagres funcionam. O bedel lidera o centro cultural, justamente, um mestiço, intelectual autodidata (como Machado de Assis o foi no século XIX-XX), sem formação acadêmica, mas doutor pelo calejar da vida, pela vivência das ruas, pelo convívio com seu povo.
Um religioso-místico, envolvido e digno representante do sincretismo religioso da Bahia, mas ao mesmo tempo uma inteligência racional a serviço de uma causa: a defesa da mestiçagem das raças, etnias e culturas, como maneira de combate aos diversos preconceitos e a elevação da cultura negra, muito diferente, por exemplo de Sílvio Romero, José Veríssimo, Dr. Bernard, professavam no século XIX, nos meios acadêmicos do Brasil e da Europa.
Acharam o livro de 1969, muito atual em relação à Humanidade do século XXI, 2016?!... Aí não é acaso; é continuidade do que uma classe dominante quer que continue assim na Terra Inteira. Mas vários Jorge Amados surgirão se necessário para escreverem ficção-real como a de Archanjo para denunciar tais arbitrariedades e sugerir artisticamente o mundo livre de amarras contra a Vida Plena Humana em convívio com a Natureza; ou, se ‘eles’ ganharem ‘viva’ às atitudes preconceituosas, não ou sim?.
Jorge Amado pode parecer, às vezes, omisso politicamente e literariamente, em algum romance, mas até em “Gabriela”, “Jubiabá” e “Dona Flor”, por exemplo, através dos enredos, dos narradores e das personagens, de cada uma de suas obras, direta ou indiretamente, algumas sugestões de luta contra as arbitrariedades daqueles que não conseguem lidar com as opções culturais, liberdades religiosas e sociais de cada um de nós -, desde que sejam éticas e morais, e, não prejudiquem a ninguém -, o romancista brasileiro grita de alguma forma para que o povo oprimido se faça ouvir e aprender como Archanjo aprendeu e ensinou à muita gente a lutar dessa forma contra o açodamento étnico brasileiro e quiçá mundial de tantos.
Um Castro Alves da prosa e do século XX, ou melhor de sempre, pois, “Tenda dos Milagres” é universal. Queiram ou não queiram... apesar de qualquer fator crítico-literário de restrição teórica literária acadêmica, que venham a levantar, no caso em específico desta obra-prima. Mas, reiterando, que também vejo defeitos nela, quem sabe uma pequena obra-prima, um libelo social?!...
 Porém, aparece, infelizmente, mais uma constatação interrogativa e sugerida:  assim, em suma, o escritor baiano, mesmo dentro da crítica literária, que em boa parte o ver como um escritor mediano, com muitos mais aspectos negativos para ser enquadrado em ‘alta literatura’?; por outro lado, ao meu ver e de muitos,  possui muitos aspectos positivos literários e ficcionais também, que pelo menos o fazem querido do povo sofrido baiano, brasileiro e mundial, pois suas obras, e a personagem Pedro Archanjo lutam contra a opressão, a desigualdade e os preconceitos quais sejam.
Isso prova a universalidade, que já abordei acima da obra em tela. Mesmo, que infelizmente, ela seja atualíssima, para os dias de hoje, deste século XXI sinistro e preconceituoso, de setembro de 2016. O que prova o caráter de Literatura de alto nível de Amado e, portanto, “Tenda dos Milagres”, de 1969, já é um clássico de âmbito universal e literário.”.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFIAS:
AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
AMADO, Gilberto. “A chave de Salomão”. In.: A chave de Salomão e outros escritos. São Paulo: José Olympio, 1971.
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 5 vols. São Paulo:  José Olympio, 1953.
VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. 7 vols. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977. 

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