quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Gauguin: um pintor de fim do século XIX: pintor moderno. "Primeira Parte: retratos e autorretratos impressionistas e/ou simbolistas".

(Crítica por Rafael Vespasiano)

Parte 1 de 3.

“Gauguin é um pintor do fim do século XIX, que ainda bem, para as Artes, é difícil de ‘encaixá-lo’ numa escola artística, o que prova sua universalidade e modernidade até hoje. Um artista inconformado com seu status burguês francês de Belle Époque, de nascimento, que buscava mais suas origens ancestrais junto a sua origem mestiça -, francesa, espanhola, peruana-incas -, o que forjava uma índole questionadora, de sensível índio, mas não vamos cair nos maniqueísmos positivistas e naturalistas, da crítica artística do século XIX, tal qual Sílvio Romero, no Brasil, ao analisar o escritor ‘mulato/mestiço’, Machado de Assis.
O que que quis dizer como sensível e índio é que essas duas facetas são perceptíveis em seus vários autorretratos e isso não é determinismo psicológico ou do meio ou do momento histórico, mas do hereditário e disso não se foge, no caso dos aspectos físicos indígenas, suas origens não eram de peruanos-incas?!... Quanto à sensível, isso cresceu em sua formação como ser humano e artista inconformado com a classificação dos simbolistas e impressionistas como ‘clássicos’ e ‘superiores’; enquanto, as gravuras orientais japonesas, que admirava; assim como as esculturas e cerâmicas tribais incas-peruanas, ou em geral as artes ancestrais da América Pré-colombiana, de uma maneira geral, tanto estas quantos as obras originais eram classificadas e subclassificadas pela crítica europeia como meramente ‘exóticas’ e/ou de ‘primitivismo artístico’.
Isso mexia com a sensibilidade artística de Gauguin, que as apreciava (e muito, como todas elas fazendo parte das tradições para sua formação e evolução artístico-criadora ao longo dos anos, como veremos). Isso, mexia com sua emotividade que era extremamente passional, mas não por determinismos naturalistas e positivistas de conceitos já ultrapassados de raça, cor, etc. Essa passionalidade era sua, da sua persona, da sua personalidade, assim como a de qualquer um no século XXI, por exemplo. Um de um Van Gogh, também artista plástico do século XIX amigo-inimigo-companheiro de artes-confidente de Gauguin, durante quase toda a vida dois dos artistas, para o bem ou para o mal, em qualquer aspecto para os dois pintores.
Gauguin conheceu Lima, Peru, com a mãe, passando quatro anos na localidade, ainda criança, o que marcou profundamente sua vida e formação futura como artista. A mãe foi afetuosamente lembrada em Escritos de um selvagem, e depois pintada, num quadro de 1890, com traços ‘exóticos improváveis’. (Mazzanti, 2011). Percebam que o diário autobiográfico e teórico escrito pelo próprio Gauguin, possui no título o termo ‘selvagem’, mas não de maneira desrespeitosa, porém valorizando sua ancestralidade. Já o termo ‘exótico’ utilizado pela crítica de artes Anna Mazanti, talvez pelo fato de Gauguin querer ‘exagerar’ os traços físicos maternos com suas ancestrais peruanas, porém numa interpretação forçosa, pois o semblante físico de sua mãe, mesmo com a ancestralidade devidamente registrada, não era tão perceptível, como na interpretação por Gauguin à sua mãe, no retrato desta.
Gauguin sempre foi um peregrino, sua primeira esposa, a dinamarquesa percebeu logo isso, Mette Gad, justificando a conduta não linear do pintor. Sua esposa experimentou a dicotomia do esposo: entre um corretor da bolsa de valores e o pintor; o conflito entre o artista que mudou, junto a outros, a face da pintura e o homem oprimido pela necessidade sustentar a família (tiveram cinco filhos); o eterno cabo de forças entre vocação como artista e a responsabilidade como burguês de família europeia, do século XIX.
  Gauguin optara definitivamente pelas artes, mas foi morar na Dinamarca com Mette e a família. “A mudança foi desastrosa e marcou a separação definitiva do casal. Gauguin passou a manter um diálogo epistolar constante com Mette, marcado pelas mágoas mútuas e questões relacionadas à indiferença e ao egoísmo do pintor.” (MAZZANTI, 2011, p. 12).
O impressionismo da primeira fase de Gauguin, o que foi confirmado por diversos artistas impressionistas também, além de críticos de arte contemporâneos e posteriores, e, artistas simbolistas, escritores em especial, que apreciavam a pintura impressionista que ia ao encontro aos ideais artísticos da Literatura e Poesia Simbolista. O escritor do Simbolismo, Auguste Strindberg, um dos mais importantes do movimento, percebeu que Gauguin se fortalecia na dor, e, tirava proveito do sofrimento para sua arte e suas ideias, e tirava proveito para si do desconforto que acabava gerando nos outros. Como qualquer artista que se preze a Dor é a força motriz maior da Arte, seja literária, ou pictórica, o que motiva os grandes temas e as obras-primas, lógico, temos várias exceções.
O não-pertencimento vivenciado pelo artista que o levou à uma vida errante, o que é perceptível em seus autorretratos, como já afirmado mais acima. Percebe-se tais fatos em retratos e autorretratos, no caso destes últimos, vê-se essa persona dividida e incentivada a uma propensão a uma nômade exaltada nesses autorretratos, como verificamos esteticamente, nos olhares enigmáticos e na escolha da composição e na iconografia (Mazzanti, 2011), exemplos são os: Autorretrato com Cristo amarelo, 1889, e, em Autorretrato com Auréola, 1889.
Dos autorretratos que datam de 1877, ano do seu primeiro autorretrato, àqueles e célebres datados 1888 e 1889, tem-se uma evolução artística natural, que passa de um olhar e estilo incertos e imaturos; Gauguin passa, amadurecido, a uma nova concentração metafórica e pictórica, “que o levou a construir uma máscara. Ela simbolizava o não-pertencimento ao meio burguês europeu e ao mesmo tempo fazia uma referência idólatra e formal ao Japão e à escultura primitiva e selvagem.” (MAZZANTI, 2011, p. 12).
Prefiro trocar os termos ‘primitiva’ e ‘selvagem’ por ‘ancestral’, ‘tribal’ e ‘étnica tradicional’. Vale ressaltar aqui também o famoso autorretrato Os Miseráveis, 1888, no qual Gauguin se ‘pintou’ no papel da personagem protagonista do romance de Victor Hugo, Jean Valjean: “o bandido malvestido de nobreza e doçura interior”, o herói literário revive no autorretrato de Gauguin com “o olhar, flamejante e esquivo, de ¾ em assimetria compositiva, a exemplo das gravuras japonesas, marca na força da máscara abstrata, (como descreveu o amigo Claude-Émile Schuffenecker (...)), a natureza revolucionária do impressionismo. (MAZZANTI, 2011, p. 12-13).
Gauguin confessou que nesse autorretrato se via “bandido numa sociedade que o impediu de renovar o impressionismo e o forçou a um exílio voluntário na Bretanha.” (Ibidem. p. 13). Na Bretanha, em 1888, ao lado de outros jovens pintores, Gauguin começou a formar um programa artístico renovador, que o guiou na concepção de Os Miseráveis, a execução das linhas e das cores, o contorno dos olhos e do nariz, definindo um semblante questionador, desafiante ao espectador e de um home forte, porém sensível, e, maltratado pela sociedade. Numa síntese orgânica de cerâmica pré-colombiana e/ou medieval – tudo organizado sobre um ‘tapete persa’. Neste autorretrato, Gauguin procura sintetizar a imagem do artista moderno/universal: pobres vítimas do sistema social, de quem nos vingamos fazendo o bem, artisticamente.

Autorretrato (Os Miseráveeis). 1888. Óleo sobre tela.
Museu Van Gogh, Amsterdam, Holanda:

   


“O retrato é construído de acordo com uma geometria cerrada, em que o nariz bem perfilado é o ponto de encontro de duas diagonais, a que vem do canto superior direito do quadro e que prossegue até o pescoço. Na parte oposta, que corta a figura ao longo do quadro e o separa em duas zonas bem distintas, descendo ao longo da linha do ombro direito. A cor é arbitrária: azul-verde para os dois retratos, o de Gauguin e o do amigo Bernard, à direita, enquanto o fundo é inteiramente revestido de um amarelo-ouro e decorado com grandes flores brancas.” (PRINCI, 2011, p. 73).


Nos autorretratos sempre aflora a personalidade complexa de Gauguin que assumia que tinha duas facetas: a natureza índia e a sensível. A sensível, segundo o próprio artista, desaparece de forma que a índia possa proceder com firmeza. Discordo em termos das considerações de (MAZZANTI, 2011, p. 13): “A índole índia é o primitivo, aquela que se livra das minúcias da composição e da simples imitação da natureza e reconhece em valor simbólico nas linhas como indicadoras da estrutura primária da realidade. Nas linhas primitivas, a natureza ‘sensível’ é latente.” Quanto às questões pictóricas e de formas artísticas, de pleno acordo, mas discordo quanto ao ‘primitivo’ essencialmente’ selvagem, e o ‘sensível’ primitivo e selvagem não poder se manifestar de maneira direta, porém de forma latente.
Gauguin conviveu na célebre Casa Amarela de Van Gogh, outro artista rebelde e recluso e errante. Os dois trocaram experiências mas brigaram muito, concordavam muito em termos artísticos mas discordavam dos mesmos na mesma proporção. Antes de Gauguin deixar a cidade de Arles, pintou um retrato de Van Gogh, ‘um espelho de si mesmo’, também em ¾, com economia de traços e cores emotivas. Prevalecem os traços primitivos, quase animalescos, no rosto do pintor holandês, como a demonstrar a dificuldade de convivência de ambos -, (Um retrato de certa forma simbolista, com alto poder de sugestão, como pregavam os artistas do Simbolismo, que apreciavam aos dois pintores, apesar de Gauguin e Gogh, não serem filiados ao Impressionismo acadêmico ou ao de Renoir e Monet, dos quais os simbolistas adoravam em especial, os dois impressionistas citados por último, já que tudo que cheirasse a academicismo, os simbolistas também detestavam, por exemplo não viam com bons olhos o trabalho de Manet) -,; O olhar fixo no vazio ‘cansado e saturado’, como o próprio retratado recordou tempos depois, que ele fora retratado por Gauguin por um método contrário a imitar à realidade, pura e simplesmente. (Mazzanti, 2011).

Vicente Van Gogh Pinta Girassóis. 1888. Óleo sobre tela.
Museu Van Gogh, Amsterdam, Holanda:




Entre 1889 e 1890, Gauguin realizou autorretratos religiosos de cunho e tom de agudas crises interiores. Cristo no Jardim das Oliveiras, Autorretrato com cristo Amarelo e a paródia simbólica-diabólica Autorretrato com Auréola. Nesse período, Gauguin rompera com Van Gogh, perdeu o apoio do seu irmão Theo Van Gogh e de Degas, do qual Gauguin admirava o trabalho, e, este, Degas admirava também o trabalho artístico de Gauguin. Porém, Degas não compreendeu a pesquisa linguística simbólico-abstrata de Gauguin, e, este se sentiu de fato um incompreendido, um rebelde, um decadentista típico do Simbolismo, com o qual já flertava.

Cristo no Jardim das Oliveiras. 1889:


O Autorretrato com cristo Amarelo, de 1890, é um Gauguin retratado por si mesmo como um sofredor pela humanidade no Jardim de Getsêmani, emblemático faz a junção coma cerâmica disposta no canto superior direito do quadro, realizando uma comparação entre as fisionomias de Cristo e a que está representada no vaso, é uma figura mais simples, o artista desenhou dois símbolos o Cristo e o Vaso, o Cristo redentor dos pecados da Humanidade, o ‘sensível’, e, o ‘selvagem’, o vaso, mas que podemos encarar, talvez como o Santo Graal? No qual Arimatéia recolheu o sangue de Cristo Crucificado...? Ou mera decoração? Numa manifestação de sua própria entidade (Gauguin), impressionista, contrária às regras de uma civilização que nega a inocência originária e primitiva. As duas leituras se complementam, a minha e a de Mazzanti (2011, p. 13-14)? Fica o questionamento sugestivo da primeira fase de Gauguin: impressionista-simbolista, mas já antropofágica, antecipando as vanguardas artísticas europeias modernas, em muito, originadas apenas nas primeiras décadas do século XX.
Autorretrato com Cristo Amarelo. 1889. Óleo sobre tela.
Coleção dos Herdeiros Denis Saint-Germain-em-Laye, França:

Antropofagia, movimento estético-artístico-literário sempre muito melhor trabalhado qualitativamente pelos latino-americanos e hispano-americanos. Basta citar os dois grandes expoentes do movimento antropofágico universal: Oswald de Andrade e Mário de Andrade, ambos brasileiros, por sinal. Que reconheceram o trabalho antecipador de Gauguin. E, lógico, este já é um antecipador de status artístico reconhecido, ainda em fins do século XIX, na Europa e nos seus exílios voluntários, da antropofagia artística.
Basta vermos as cerâmicas realizadas em 1889, entre as quais a que reproduziu no autorretrato, Gauguin atingiu um repertório vasto e heterogêneo, na direção de uma pintura sempre mais “pura, simplificada, ritmada, decorativa” (F. Cachin, 1988. Apud. MAZZANTI, 2011, p. 14). Desse processo, o exemplo, Vaso Autorretrato em Forma de Cabeça Grotesca, inverno de 1889.

Vaso Autorretrato em Forma de Cabeça Grotesca, inverno de 1889. Porcelana grés esmaltada.
Museu d´Orsay, Paris:

O exemplo extremo de tudo exposto até agora é o autorretrato caricatural com auréola, um concentrado de conteúdos simbólicos em que o pintor explicita mais uma vez a sua persona dividida: na oposição entre auréola/divina e serpente/diabólica, entre pecador e santo; Gauguin construiu uma máscara facial em que a intensidade contrastes das cores colabora para formar um poema de autoestima.

Autorretrato com Auréola. 1889. Óleo sobre madeira.
National Gallery of Art, Washington, EUA:


Longe dos cânones decorativos da máscara facial da gravura japonesa, predominam linhas vetoriais que dão voz combativa e simbólica de força e luta do artista contra o status quo da pintura acadêmica, conservadora de fôrmas e institucional, já ultrapassada há muito tempo.
(Para terminar este primeiro post do blog sobre Gauguin serão três, contando com este, que se dedicou mais: a uma apresentação bioartística, motivos teóricos e conceituais, tradições e referências para o artista, antecipações motivadas por Gauguin para a arte moderna, e estudos mais detalhados de autorretratos e alguns retratos realizados, pelo artista, voltaremos a este tema, futuramente; além de termos falado de sua primeira fase impressionista-simbolista, sem perder de vista que ele está aqui neste post, em processo de amadurecimento, que passará por fases dos exílios na Bretanha e na Polinésia Francesa, pontos culminantes de suas obras, a maioria formada por obras-primas da modernidade das artes visuais; além de alguns retornos a Paris e outros locais; até chegar a uma estagnação e decaída qualitativa em sua produção artística, já para antecipar a vós, leitores; voltaremos também a sua relação positiva-negativa com Van Gogh.  Ah, quanto ao Autorretrato com Cristo Amarelo, voltaremos abordá-la junto às obras Cristo Crucificado (Cristo Amarelo) e Vaso Autorretrato em Forma de Cabeça Grotesca, já que estas duas obras de Gauguin estão reunidas no autorretrato referido, anteriormente, num tríptico, por assim dizer primoroso.).
Para finalizar por aqui, como dizíamos: vale ressaltar o retrato do amigo que não o abandonou neste momento, antes dos parênteses longo e explicativo da proposta geral deste meu trabalho, abordamos os autorretratos de motivo religioso e o abandono dos amigos que não o compreendiam mais; porém, o retratado agora é um amigo que acompanhou Gauguin na costa da Bretanha, Jacob Meyer de Haan, que Gaugin desenhou segundo a própria imagem, ironicamente demoníaca, para revestir um móvel na sala de almoço de uma pousada local. O jovem aparece retratado numa posição de pensador e, fervoroso simpatizante de ideias teosóficas e schopenhauerianas, olha de maneira perturbada e meditativa para dois livros: Sartor Resartus, de Carlyle e Paraíso Perdido, de Milton. Manuais dos poetas malditos do Simbolismo decadentista, com os quais Gauguin se identificava, como já exposto”. 

Retrato de Jacob Meyer de Haan. 1889:

        


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GAUGUIN-VOLUME 8-ANNA MAZZANTI [PERFIL]; ELIANA PRINCI [OBRAS]-TRADUÇÃO DE MÔNICA ESMANHOTTO E SIMONE ESMANHOTTO. COLEÇÃO GRANDES MESTRES VOL. 8. SÃO PAULO: ABRIL, 2011.

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