(Crítica por Rafael Vespasiano)
Parte 1 de 3.
“Gauguin
é um pintor do fim do século XIX, que ainda bem, para as Artes, é difícil de ‘encaixá-lo’
numa escola artística, o que prova sua universalidade e modernidade até hoje. Um
artista inconformado com seu status burguês francês de Belle Époque, de
nascimento, que buscava mais suas origens ancestrais junto a sua origem mestiça
-, francesa, espanhola, peruana-incas -, o que forjava uma índole questionadora,
de sensível índio, mas não vamos cair nos maniqueísmos positivistas e
naturalistas, da crítica artística do século XIX, tal qual Sílvio Romero, no
Brasil, ao analisar o escritor ‘mulato/mestiço’, Machado de Assis.
O
que que quis dizer como sensível e índio é que essas duas facetas são
perceptíveis em seus vários autorretratos e isso não é determinismo psicológico
ou do meio ou do momento histórico, mas do hereditário e disso não se foge, no
caso dos aspectos físicos indígenas, suas origens não eram de peruanos-incas?!...
Quanto à sensível, isso cresceu em sua formação como ser humano e artista inconformado
com a classificação dos simbolistas e impressionistas como ‘clássicos’ e ‘superiores’;
enquanto, as gravuras orientais japonesas, que admirava; assim como as
esculturas e cerâmicas tribais incas-peruanas, ou em geral as artes ancestrais
da América Pré-colombiana, de uma maneira geral, tanto estas quantos as obras
originais eram classificadas e subclassificadas pela crítica europeia como
meramente ‘exóticas’ e/ou de ‘primitivismo artístico’.
Isso
mexia com a sensibilidade artística de Gauguin, que as apreciava (e muito, como
todas elas fazendo parte das tradições para sua formação e evolução
artístico-criadora ao longo dos anos, como veremos). Isso, mexia com sua
emotividade que era extremamente passional, mas não por determinismos
naturalistas e positivistas de conceitos já ultrapassados de raça, cor, etc.
Essa passionalidade era sua, da sua persona, da sua personalidade, assim como a
de qualquer um no século XXI, por exemplo. Um de um Van Gogh, também artista
plástico do século XIX amigo-inimigo-companheiro de artes-confidente de
Gauguin, durante quase toda a vida dois dos artistas, para o bem ou para o mal,
em qualquer aspecto para os dois pintores.
Gauguin
conheceu Lima, Peru, com a mãe, passando quatro anos na localidade, ainda criança,
o que marcou profundamente sua vida e formação futura como artista. A mãe foi
afetuosamente lembrada em Escritos de um
selvagem, e depois pintada, num quadro de 1890, com traços ‘exóticos
improváveis’. (Mazzanti, 2011). Percebam que o diário autobiográfico e teórico
escrito pelo próprio Gauguin, possui no título o termo ‘selvagem’, mas não de
maneira desrespeitosa, porém valorizando sua ancestralidade. Já o termo ‘exótico’
utilizado pela crítica de artes Anna Mazanti, talvez pelo fato de Gauguin
querer ‘exagerar’ os traços físicos maternos com suas ancestrais peruanas,
porém numa interpretação forçosa, pois o semblante físico de sua mãe, mesmo com
a ancestralidade devidamente registrada, não era tão perceptível, como na interpretação
por Gauguin à sua mãe, no retrato desta.
Gauguin
sempre foi um peregrino, sua primeira esposa, a dinamarquesa percebeu logo
isso, Mette Gad, justificando a conduta não linear do pintor. Sua esposa
experimentou a dicotomia do esposo: entre um corretor da bolsa de valores e o
pintor; o conflito entre o artista que mudou, junto a outros, a face da pintura
e o homem oprimido pela necessidade sustentar a família (tiveram cinco filhos);
o eterno cabo de forças entre vocação como artista e a responsabilidade como
burguês de família europeia, do século XIX.
Gauguin
optara definitivamente pelas artes, mas foi morar na Dinamarca com Mette e a
família. “A mudança foi desastrosa e marcou a separação definitiva do casal.
Gauguin passou a manter um diálogo epistolar constante com Mette, marcado pelas
mágoas mútuas e questões relacionadas à indiferença e ao egoísmo do pintor.”
(MAZZANTI, 2011, p. 12).
O
impressionismo da primeira fase de Gauguin, o que foi confirmado por diversos
artistas impressionistas também, além de críticos de arte contemporâneos e
posteriores, e, artistas simbolistas, escritores em especial, que apreciavam a
pintura impressionista que ia ao encontro aos ideais artísticos da Literatura e
Poesia Simbolista. O escritor do Simbolismo, Auguste Strindberg, um dos mais
importantes do movimento, percebeu que Gauguin se fortalecia na dor, e, tirava
proveito do sofrimento para sua arte e suas ideias, e tirava proveito para si
do desconforto que acabava gerando nos outros. Como qualquer artista que se
preze a Dor é a força motriz maior da Arte, seja literária, ou pictórica, o que
motiva os grandes temas e as obras-primas, lógico, temos várias exceções.
O
não-pertencimento vivenciado pelo artista que o levou à uma vida errante, o que
é perceptível em seus autorretratos, como já afirmado mais acima. Percebe-se
tais fatos em retratos e autorretratos, no caso destes últimos, vê-se essa
persona dividida e incentivada a uma propensão a uma nômade exaltada nesses
autorretratos, como verificamos esteticamente, nos olhares enigmáticos e na
escolha da composição e na iconografia (Mazzanti, 2011), exemplos são os: Autorretrato com Cristo amarelo, 1889,
e, em Autorretrato com Auréola, 1889.
Dos
autorretratos que datam de 1877, ano do seu primeiro autorretrato, àqueles e
célebres datados 1888 e 1889, tem-se uma evolução artística natural, que passa
de um olhar e estilo incertos e imaturos; Gauguin passa, amadurecido, a uma
nova concentração metafórica e pictórica, “que o levou a construir uma máscara.
Ela simbolizava o não-pertencimento ao meio burguês europeu e ao mesmo tempo
fazia uma referência idólatra e formal ao Japão e à escultura primitiva e
selvagem.” (MAZZANTI, 2011, p. 12).
Prefiro
trocar os termos ‘primitiva’ e ‘selvagem’ por ‘ancestral’, ‘tribal’ e ‘étnica
tradicional’. Vale ressaltar aqui também o famoso autorretrato Os Miseráveis, 1888, no qual Gauguin se ‘pintou’
no papel da personagem protagonista do romance de Victor Hugo, Jean Valjean: “o
bandido malvestido de nobreza e doçura interior”, o herói literário revive no
autorretrato de Gauguin com “o olhar, flamejante e esquivo, de ¾ em assimetria compositiva,
a exemplo das gravuras japonesas, marca na força da máscara abstrata, (como
descreveu o amigo Claude-Émile Schuffenecker (...)), a natureza revolucionária
do impressionismo. (MAZZANTI, 2011, p. 12-13).
Gauguin
confessou que nesse autorretrato se via “bandido numa sociedade que o impediu
de renovar o impressionismo e o forçou a um exílio voluntário na Bretanha.” (Ibidem.
p. 13). Na Bretanha, em 1888, ao lado de outros jovens pintores, Gauguin
começou a formar um programa artístico renovador, que o guiou na concepção de Os Miseráveis, a execução das linhas e
das cores, o contorno dos olhos e do nariz, definindo um semblante
questionador, desafiante ao espectador e de um home forte, porém sensível, e,
maltratado pela sociedade. Numa síntese orgânica de cerâmica pré-colombiana
e/ou medieval – tudo organizado sobre um ‘tapete persa’. Neste autorretrato, Gauguin
procura sintetizar a imagem do artista moderno/universal: pobres vítimas do
sistema social, de quem nos vingamos fazendo o bem, artisticamente.
Autorretrato (Os
Miseráveeis). 1888. Óleo sobre tela.
Museu
Van Gogh, Amsterdam, Holanda:
“O
retrato é construído de acordo com uma geometria cerrada, em que o nariz bem
perfilado é o ponto de encontro de duas diagonais, a que vem do canto superior
direito do quadro e que prossegue até o pescoço. Na parte oposta, que corta a
figura ao longo do quadro e o separa em duas zonas bem distintas, descendo ao
longo da linha do ombro direito. A cor é arbitrária: azul-verde para os dois
retratos, o de Gauguin e o do amigo Bernard, à direita, enquanto o fundo é
inteiramente revestido de um amarelo-ouro e decorado com grandes flores
brancas.” (PRINCI, 2011, p. 73).
Nos
autorretratos sempre aflora a personalidade complexa de Gauguin que assumia que
tinha duas facetas: a natureza índia e a sensível. A sensível, segundo o
próprio artista, desaparece de forma que a índia possa proceder com firmeza.
Discordo em termos das considerações de (MAZZANTI, 2011, p. 13): “A índole
índia é o primitivo, aquela que se livra das minúcias da composição e da
simples imitação da natureza e reconhece em valor simbólico nas linhas como
indicadoras da estrutura primária da realidade. Nas linhas primitivas, a
natureza ‘sensível’ é latente.” Quanto às questões pictóricas e de formas
artísticas, de pleno acordo, mas discordo quanto ao ‘primitivo’ essencialmente’
selvagem, e o ‘sensível’ primitivo e selvagem não poder se manifestar de
maneira direta, porém de forma latente.
Gauguin
conviveu na célebre Casa Amarela de Van Gogh, outro artista rebelde e recluso e
errante. Os dois trocaram experiências mas brigaram muito, concordavam muito em
termos artísticos mas discordavam dos mesmos na mesma proporção. Antes de
Gauguin deixar a cidade de Arles, pintou um retrato de Van Gogh, ‘um espelho de
si mesmo’, também em ¾, com economia de traços e cores emotivas. Prevalecem os
traços primitivos, quase animalescos, no rosto do pintor holandês, como a
demonstrar a dificuldade de convivência de ambos -, (Um retrato de certa forma
simbolista, com alto poder de sugestão, como pregavam os artistas do Simbolismo,
que apreciavam aos dois pintores, apesar de Gauguin e Gogh, não serem filiados
ao Impressionismo acadêmico ou ao de Renoir e Monet, dos quais os simbolistas
adoravam em especial, os dois impressionistas citados por último, já que tudo
que cheirasse a academicismo, os simbolistas também detestavam, por exemplo não
viam com bons olhos o trabalho de Manet) -,; O olhar fixo no vazio ‘cansado e
saturado’, como o próprio retratado recordou tempos depois, que ele fora
retratado por Gauguin por um método contrário a imitar à realidade, pura e
simplesmente. (Mazzanti, 2011).
Vicente Van Gogh Pinta
Girassóis. 1888. Óleo sobre tela.
Museu
Van Gogh, Amsterdam, Holanda:
Entre
1889 e 1890, Gauguin realizou autorretratos religiosos de cunho e tom de agudas
crises interiores. Cristo no Jardim das
Oliveiras, Autorretrato com cristo Amarelo e a paródia simbólica-diabólica Autorretrato com Auréola. Nesse período,
Gauguin rompera com Van Gogh, perdeu o apoio do seu irmão Theo Van Gogh e de
Degas, do qual Gauguin admirava o trabalho, e, este, Degas admirava também o
trabalho artístico de Gauguin. Porém, Degas não compreendeu a pesquisa
linguística simbólico-abstrata de Gauguin, e, este se sentiu de fato um
incompreendido, um rebelde, um decadentista típico do Simbolismo, com o qual já
flertava.
Cristo no Jardim das
Oliveiras. 1889:
O
Autorretrato com cristo Amarelo, de
1890, é um Gauguin retratado por si mesmo como um sofredor pela humanidade no
Jardim de Getsêmani, emblemático faz a junção coma cerâmica disposta no canto superior
direito do quadro, realizando uma comparação entre as fisionomias de Cristo e a
que está representada no vaso, é uma figura mais simples, o artista desenhou
dois símbolos o Cristo e o Vaso, o Cristo redentor dos pecados da Humanidade, o
‘sensível’, e, o ‘selvagem’, o vaso, mas que podemos encarar, talvez como o
Santo Graal? No qual Arimatéia recolheu o sangue de Cristo Crucificado...? Ou
mera decoração? Numa manifestação de sua própria entidade (Gauguin),
impressionista, contrária às regras de uma civilização que nega a inocência
originária e primitiva. As duas leituras se complementam, a minha e a de
Mazzanti (2011, p. 13-14)? Fica o questionamento sugestivo da primeira fase de
Gauguin: impressionista-simbolista, mas já antropofágica, antecipando as
vanguardas artísticas europeias modernas, em muito, originadas apenas nas
primeiras décadas do século XX.
Autorretrato com Cristo
Amarelo. 1889. Óleo sobre tela.
Coleção
dos Herdeiros Denis Saint-Germain-em-Laye, França:
Antropofagia,
movimento estético-artístico-literário sempre muito melhor trabalhado
qualitativamente pelos latino-americanos e hispano-americanos. Basta citar os
dois grandes expoentes do movimento antropofágico universal: Oswald de Andrade
e Mário de Andrade, ambos brasileiros, por sinal. Que reconheceram o trabalho
antecipador de Gauguin. E, lógico, este já é um antecipador de status artístico
reconhecido, ainda em fins do século XIX, na Europa e nos seus exílios
voluntários, da antropofagia artística.
Basta
vermos as cerâmicas realizadas em 1889, entre as quais a que reproduziu no
autorretrato, Gauguin atingiu um repertório vasto e heterogêneo, na direção de
uma pintura sempre mais “pura, simplificada, ritmada, decorativa” (F. Cachin,
1988. Apud. MAZZANTI, 2011, p. 14). Desse processo, o exemplo, Vaso Autorretrato em Forma de Cabeça Grotesca, inverno de 1889.
Vaso Autorretrato em
Forma de Cabeça Grotesca, inverno de 1889. Porcelana grés
esmaltada.
Museu
d´Orsay, Paris:
O
exemplo extremo de tudo exposto até agora é o autorretrato caricatural com
auréola, um concentrado de conteúdos simbólicos em que o pintor explicita mais
uma vez a sua persona dividida: na oposição entre auréola/divina e
serpente/diabólica, entre pecador e santo; Gauguin construiu uma máscara facial
em que a intensidade contrastes das cores colabora para formar um poema de
autoestima.
Autorretrato com Auréola.
1889. Óleo sobre madeira.
National
Gallery of Art, Washington, EUA:
Longe
dos cânones decorativos da máscara facial da gravura japonesa, predominam
linhas vetoriais que dão voz combativa e simbólica de força e luta do artista
contra o status quo da pintura acadêmica, conservadora de fôrmas e institucional,
já ultrapassada há muito tempo.
(Para
terminar este primeiro post do blog sobre Gauguin serão três, contando com este,
que se dedicou mais: a uma apresentação bioartística, motivos teóricos e
conceituais, tradições e referências para o artista, antecipações motivadas por
Gauguin para a arte moderna, e estudos mais detalhados de autorretratos e
alguns retratos realizados, pelo artista, voltaremos a este tema, futuramente;
além de termos falado de sua primeira fase impressionista-simbolista, sem
perder de vista que ele está aqui neste post, em processo de amadurecimento,
que passará por fases dos exílios na Bretanha e na Polinésia Francesa, pontos
culminantes de suas obras, a maioria formada por obras-primas da modernidade
das artes visuais; além de alguns retornos a Paris e outros locais; até chegar
a uma estagnação e decaída qualitativa em sua produção artística, já para
antecipar a vós, leitores; voltaremos também a sua relação positiva-negativa
com Van Gogh. Ah, quanto ao Autorretrato com Cristo Amarelo, voltaremos
abordá-la junto às obras Cristo
Crucificado (Cristo Amarelo) e Vaso Autorretrato em Forma de Cabeça Grotesca, já
que estas duas obras de Gauguin estão reunidas no autorretrato referido,
anteriormente, num tríptico, por assim dizer primoroso.).
Para
finalizar por aqui, como dizíamos: vale ressaltar o retrato do amigo que não o
abandonou neste momento, antes dos parênteses longo e explicativo da proposta
geral deste meu trabalho, abordamos os autorretratos de motivo religioso e o
abandono dos amigos que não o compreendiam mais; porém, o retratado agora é um
amigo que acompanhou Gauguin na costa da Bretanha, Jacob Meyer de Haan, que
Gaugin desenhou segundo a própria imagem, ironicamente demoníaca, para revestir
um móvel na sala de almoço de uma pousada local. O jovem aparece retratado numa
posição de pensador e, fervoroso simpatizante de ideias teosóficas e
schopenhauerianas, olha de maneira perturbada e meditativa para dois livros: Sartor Resartus, de Carlyle e Paraíso Perdido, de Milton. Manuais dos
poetas malditos do Simbolismo decadentista, com os quais Gauguin se identificava,
como já exposto”.
Retrato de Jacob Meyer de
Haan.
1889:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GAUGUIN-VOLUME 8-ANNA
MAZZANTI [PERFIL]; ELIANA PRINCI [OBRAS]-TRADUÇÃO DE MÔNICA ESMANHOTTO E SIMONE
ESMANHOTTO. COLEÇÃO GRANDES MESTRES VOL. 8. SÃO PAULO: ABRIL, 2011.
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