quinta-feira, 4 de maio de 2017

ANTOLOGIA SIMBOLISTA E DECADENTE BRASILEIRA-PARTE 1-9: ALPHONSUS DE GUIMARAENS

ALPHONSUS DE GUIMARAENS:




Seleção e observações por Rafael Vespasiano. 

"Poeta transcendentalista, com fixação crepuscular e lunar, mística; com estados d´alma que revelam a epifania transcendental-espiritual de elevação ou revelação ao Ser, na dualidade físico-espiritual, rumo ao momento de transcendência da alma/espírito.

Porém, o poeta em alguns poema é extremante decadete, ou seja, sem perspectivas epifânicas ou transcendentes, apenas se resume no fim da matéria, na morte, no pó, acaba tudo,portanto no plano terreno, não há espaço para o espírito elevar-se se há alma para o eu-lírico em questão. vejamos os poemas":


KIRIALE:

"A CABEÇA DE CORVO (II)"

Ao Dr. Edmundo Lins

Na mesa, quando em meio à noite lenta
Escrevo antes que o sono me adormeça,
Tenho o negro tinteiro que a cabeça
De um corvo representa.

A contemplá-lo mudamente fico
E numa dor atroz mais me concentro:
E entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
Meto-lhe a pena pela goela a dentro.

E solitariamente, pouco a pouco,
Do bojo tiro a pena, rasa em tinta...
E a minha mão, que treme toda, pinta
Versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta
Ave que representa o meu tinteiro,
Vai-me seguindo a mão, que corre lesta.
Toda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo
Trevas em fora este agoirento corvo,
Pois dele sangra o desespero torvo
Destes versos que escrevo.

"O CACHIMBO (III)"

A Joaquim Soares Maciel Júnior

Uma visão do tenebroso Limbo.
Soturna e sepulcral, tens a teu lado:
Por um artista foi este cachimbo
À feição de caveira burilado.

Vê tu, formosa, é um crânio em miniatura
Onde tua caveira vou revendo:
O vazio das órbitas fulgura,
Sinistramente, quando à noite o acendo.

E às vezes, quando o eterno ideal me abrasa
O crânio, no cachimbo os olhos ponho:
Há também dentro dele fogo e brasa,
Sobe o fumo e desfaz-se como um sonho.

E quando à noite o acendo, a sua boca
Transparente e magoada se clareia:
E ri-se, e eu rio ao vê-la, aberta e louca,
Toda de beijos e de afagos cheia.



"SUCCUBUS (VI)"

Às vezes, alta noite, ergo em meio da cama
O meu vulto de espectro, a alma em sangue, os cabelos
Hirtos, o torvo olhar como raso de lama,
Sob o tropel de um batalhão de pesadelos

Pelo meu corpo todo uma Fúria de chama
Enrosca-se, prendendo-o em satânicos elos:
– Vai-te Demônio encantador, Demônio ou Dama,
Loira Fidalga infiel dos infernais Castelos!

Como um danado em raiva horrenda, clamo e rujo:
Hausto por hausto aspiro um ar de enxofre: tento
Erguer a voz, e como um réptil escabujo.

– Quem quer que sejas, vai-te, ó tu que assim me assombras!
Acordo: o céu, lá fora, abre o olhar sonolento,
Cheio da compunção dos luares e das sombras.

"OSSA MEA (II)"

Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar, mas que suplica.

Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...

Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...

Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...

DONA MÍSTICA:




"PULCHRA UT LUNA"

de Dona Mística

Na solidão suprema dos conventos,

Em horas de pavor tão sossegadas,

Vêem-se passar fantasmas sonolentos,

Vultos de freiras mortas e de fadas.

Soluça a paz dos grandes monumentos,

Debruçado à beira das estradas:

Sombras de luto, pelos lutulentos

Caminhos, choram mágoas já choradas.

Vozes de além, pungentes de mistério,

Cantam: e os sinos dobram nas ermidas,

Acompanhando o cantochão funéreo…

(Brancas visões remotas, enfadonho

Enterro infindo de ilusões queridas

Na solidão suprema do meu Sonho!)


CÂMARA ARDENTE:

"PERISTYLUM"

No sacro e fulvo peristilo jalde,
Entre silêncios de cristal imoto,
O meu Amor em nuvens se desfralde
Na perfeição astral do Eterno-Voto:

E pecador, a procurar embalde
A estrada espiritual do Céu remoto,
A aspiração da Fé sublime escalde
O meu peito medievo de devoto:

Longe da turbamulta que me cerca,
Eu fortaleça o coração vetusto
Para que nada do meu Ser se perca:

Neste poema de Amor, amplo e celeste,
Eu cante o extremo Epitalâmio augusto
À sombra funerária de um cipreste...

"X"

Hirta e branca... Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
 Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.

De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.

Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.

Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
 Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente...

PASTORAL AOS CRENTES DO AMOR E DA MORTE:

"ISMÁLIA (XXXIII)"

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…



"IMMACULATA (XX)"

Quando te fores, branca, de mãos postas,
E me deixares neste val de pranto,
Deitada assim, como as demais, de costas
Sobre o teu leve esquife de pau-santo:

Quando as rosas dos seios, decompostas,
Vierem causar à própria morte espanto,
E nessas tábuas vis, onde te encostas,
Te for o lodo o derradeiro manto:

Ainda hei de ver as lúcidas violetas
Que floriram no teu olhar incerto,
Por sob as tuas sobrancelhas pretas...

Ai! como Inês tu não serás rainha:
Mas amada hás de ser no céu decerto
Porque na terra nunca foste minha...

"A CATEDRAL"

Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:

"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"






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