Barroco:
Aspectos Estéticos de uma Arte Engenhosa: Gregório de Matos e a Máscara Poética
Satírica.
(Autor
Prof.: Rafael Vespasiano Ferreira de Lima).
“Uma
dissonância entre o sujeito e seu efeito faz agradável harmonia. ” (Gracián).
“O
caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a
consciência do homem, nomeando o criado, recriando-o portanto, separou,
ordenou, uniu. ” (Osman Lins).
“O presente ensaio
propõe-se a demonstrar a novidade estética e estilística promovida pelo
Barroco, do século XVII, nas artes em geral, que descentralizou a verdade
absoluta e que abalou a estrutura ontoteológica da História do Ocidente. Num
primeiro momento, apresentaremos aspectos históricos e estilísticos do Barroco
de maneira abrangente. E, numa segunda etapa, nos deteremos na Literatura
Brasileira, em especial, no poeta Gregório de Matos e sua máscara poética satírica;
já que o poeta baiano fez uso de diversas máscaras: lírico-amorosa,
encomiástica, sacro-religiosa, burlesca, além de escrever poemas em outros
idiomas que não o Português (o Espanhol, por exemplo), e demonstrando que sua
poética estava inscrita na tradição de poetas barrocos europeus, fez traduções
de poemas desses mesmos poetas.
Num primeiro momento, abordemos o Barroco,
como estilo literário, para depois aprofundarmos, em específico, na poesia
satírica de Gregório de Matos, demonstrada em seus próprios poemas.
O Barroco é um período
estético (artes em geral), mas que se apresenta na Europa, também em todo seu contexto
sócio-histórico e ideológico, transcorrendo, cronologicamente, no século XVII,
mas a ele não fica restrito, nem antes, nem depois. É no Barroco que os
conflitos explodem, pois esse movimento procurou dar um basta na caminhada
histórica, ora meramente antropocêntrica (Renascimento, marcado pelo
racionalismo, pela perfeição e pela valorização do corpo), ora meramente
teocêntrica (Idade Média, medievalismo, marcado pela fé e pela valorização da
alma). O Barroco pretende, agora, conciliar a razão e a fé, a alma e o corpo, uni-los,
numa “tensão harmônica dos contrários”, numa dualidade dinâmica, numa dialética
analítica, crítica, não dogmática.
O Barroco, inicialmente,
contudo, foi visto e interpretado pela visão clássica e racional, sendo o
estilo classificado em termos pejorativos, como uma “arte irregular”, “pérola
irregular”, que não se encaixava na linha racional clássica, portanto, o
Barroco era considerado nessa perspectiva como uma arte “disforme”,
“imperfeita”, “grotesca”, “inferior”.
O crítico Afrânio
Coutinho (2001) afirma que o Barroco, nos séculos XVI e XVII era visto como:
uma argumentação
estranha e viciosa, evasiva e fugidia, que subvertia as regras do pensamento.
Originalmente, portanto, é negativo, pejorativo, sinônimo de bizarro, extravagante,
artificial, ampuloso, monstruoso, visando a designar, menoscabando, a arte
seiscentista, interpretada dessa maneira, como forma de decadência da arte
renascentista ou clássica. (COUTINHO, 2001, p.12)
O teórico Afrânio
Coutinho (2001) assevera, em relação à nova interpretação do Barroco, iniciada
em meados do século XIX, afirmando ainda que se deve aos estudos de Wölfflin,
“a sua definitiva reformulação à luz dos novos princípios que introduziu para a
interpretação da história da arte.” (COUTINHO, 2001, p.12). Coutinho prossegue:
graças aos
trabalhos de Wölfflin, a arte barroca foi revalidada, não mais concebendo-se
como uma expressão degenerada, antes como forma peculiar de um período da
história da cultura moderna com valor estético e significado próprios, do mesmo
modo que o termo recebeu definição precisa, introduzido no uso corrente da
crítica de arte e literatura, e, recentemente, nos manuais de história da
cultura e da literatura. (COUTINHO, 2001, p.12).
Para Wöfflin, segundo
Coutinho (2001, p.13), a arte barroca é “visual” e não mais “táctil”,
característica esta do Renascimento. Desta maneira, o Barroco “representa não
um declínio, mas o desenvolvimento natural do Classicismo renascentista para um
estilo posterior” (COUTINHO, 2001, p.13); “esse estilo, diferentemente do
clássico, já não é táctil porém visual, isto é, não admite perspectivas não
visuais, e não revela sua arte, mas a dissimula. ” (COUTINHO, 2001, p.13).
Como a teoria de Wöfflin
aplica-se mais às artes plásticas, ela foi aos poucos transposta e modelada
para também explicar o Barroco literário, isso foi feito no início do século
XX, entre outros, por René Wellek. A estética barroca é visual, por isso mesmo
dramática, passional, daí o predomínio do teatro e dos poemas excessivamente
dramáticos, emocionais e passionais. Até a oratória barroca é passional, não
dogmática, contudo dramática, um verdadeiro “teatro do sacramento” (Alcyr
Pécora).[1]
Para o crítico Afrânio
Coutinho então:
o Barroco tenta a
conciliação, a incorporação, a fusão (o
fusionismo é a sua tendência dominante) do ideal medieval, espiritual,
supraterreno, com os novos valores que o Renascimento pôs em voga: o humanismo, o gosto das coisas terrenas,
as satisfações mundanas e carnais. A estratégia pertenceu à Contrarreforma, no
início, consciente ou inconsciente, de combater o moderno espírito absorvendo-o
no que tivesse de mais aceitável. Daí nasceu o Barroco, novo estilo de vida,
que traduz em suas contradições e distorções o caráter dilemático da época, na arte, filosofia, religião, literatura.
(COUTINHO, 2001, p.15). [grifos meus]
“A ideologia barroca”,
ainda segundo Coutinho, “foi fornecida pela Contrarreforma e pelo Concílio de
Trento (...)” (COUTINHO, 2001, p.18). Pode-se compreender o Barroco como uma contrarreação
às tendências renascentistas de revalorização da Antiguidade Clássica, em
detrimento aos ideais da Idade Média. Essa contrarreação foi dirigida pela “Contrarreforma
católica, numa tentativa de reencontrar o fio perdido da tradição cristã,
procurando exprimi-la sob novos moldes intelectuais e artísticos. ” (COUTINHO,
2001, p.18).
O Barroco, então, é a
tentativa de conciliar o Teocentrismo medieval e o Antropocentrismo
renascentista. Daí, portanto, as características estilísticas do Barroco são:
(...) por isso, o
dualismo, a oposição ou as oposições, contrastes e contradições, o estado de
conflito e tensão, oriundos do duelo entre o espírito cristão, antiterreno, teocêntrico,
e o espírito secular, racionalista, mundano, que caracterizam a essência do
espírito barroco. Daí uma série de antíteses – ascetismo e mundanidade, carne e
espírito, sensualismo e misticismo, religiosidade e erotismo, realismo e
idealismo, naturalismo e ilusionismo, céu e terra, verdadeiras dicotomias
(...), tradutoras da tensão entre as formas clássicas e o ethos cristão, entre
as tradições medievais e o crescente espírito secularista inaugurado pelo
Renascimento. (COUTINHO, 2001, p.18-19).
Tudo isso marca, por
exemplo, a poesia de um Gregório de Matos e suas várias máscaras poéticas,
evidenciadas por essa “tensão harmônica dos contrários”, tipicamente barroca.
Daí o dinamismo, a passionalidade, o drama, as hipérboles, os paradoxos, as
dissonâncias, as desarmonias etc., do Barroco, e, portanto, também
características do estilo do poeta baiano.
Para o estudioso Gracián:
(...)o barroco
(...), favorece a novidade da frase e o serpentário sintático para que mais
surpreendente resulte o acordo com a razão doutrinária [barroca]. (...) De sua parte, a razão barroca concebe-se como
natural, pré-dada, de fundamento cristão-aristotélico. (GRACIÁN Apud LIMA, Luiz Costa, 1995, p.125).
Luiz Costa Lima (1995)
nos mostra que:
a cena visível
pelo quadro, pela peça ou pelo poema, não contém a simples correspondência com
o que se deveria ser. [grifos do autor] Entre a composição dos
textos e a verdade que afirmam agora haverá uma longa curva artificiosa [grifo meu]. (LIMA, Luiz Costa, 1995, p.126).
Assim sendo, o engenho do poema barroco pode ser
expresso por outro vocábulo, que seja: imaginação;
conciliando, numa “tensão harmônica dos contrários”, o juízo, que poderia ser expresso também por razão. Formando as dicotomias barrocas: engenho/imaginação e
juízo/razão, numa dualidade dinâmica, segundo Gracián, citado por Luiz Costa
Lima (1995).
Outro grande estudioso do
Barroco é Helmut Hatzfeld, que em seus ensaios reunidos em Estudos sobre o Barroco (2002), afirma que “os historiadores de
arte marcam como início formal do Barroco a pintura Juízo Final, de Michelangelo, em sua fase final, pois o artista é
majoritariamente renascentista.” (HATZFELD, 2002, p.74). Para o mesmo
estudioso, “os motivos barrocos mais sérios se referem a reflexões sobre a
vida, o homem e a passagem do tempo.” (HATZFELD, 2002, p.78).
Já que a intensificação
do temor religioso, oriundo do medievalismo, nos permite compreender os transes
místico-ascéticos dos poetas barrocos. Gregório de Matos fez uso desse
artifício literário em seus poemas sacro-religiosos. Daí surgir a austeridade
religiosa, o recolhimento ativo e passivo: sossego, iluminação e êxtase, para
não cair em tentação e possível queda ao inferno.
Hatzfeld assevera:
a exaltação do
sentimento heroico (...), até atingir as alturas celestiais, com desprezo do
mundo, (...), impõem uma e outra vez a seus leitores o difícil empenho de
escalar a montanha, partindo da escuridão da imperfeição até chegar à luz da
santidade, e das trevas da fé até a glória da iluminação. (HATZFELD, 2002,
p.74-75)
Criando os dualismos
dinâmicos típicos do Barroco: luz e trevas; claro e escuro; razão e fé etc.,
evidenciando, assim, a “tensão harmônica dos contrários”. O Barroco não é a
harmonia entre o terreno e o eterno, ao contrário é marcado por aquela tensão.
A transitoriedade da vida terrena, da vida mundana, leva ao tema, por exemplo,
da decomposição, já que a morte é o destino inevitável da vida humana (a
caveira é uma alegoria barroca, que metaforiza a morte, a decadência, segundo
Walter Benjamin).[2]
“A visão da morte é sugerida de modo indireto com a representação de ruínas
(...)” (HATZFELD, 2002, p.77). Aqui, apresenta-se o conceito de “ruína
alegórica” de Benjamin.
Depois de abordarmos
essas questões mais gerais do Barroco, no que se referiu a aspectos históricos,
estéticos e estilísticos. Passemos ao estudo, em específico, do Barroco
Brasileiro, e o poeta máximo dele, Gregório de Matos, em especial sua máscara
poética satírica.
O Barroco foi o primeiro
período literário brasileiro (fato singular na história da Literatura do
Ocidente). Haroldo de Campos (2011), em O
sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de
Matos, nessa obra teórica, o crítico-poeta contesta a teoria de Antonio
Candido (Literatura vista como “Sistema Literário”), de que o Barroco era
apenas uma mera “manifestação literária”, tese defendida por Candido, em seu
livro Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. (2012). Esta obra reduz a importância do Barroco e de
Gregório de Matos. Haroldo de Campos veio em socorro do Barroco e colocou o
estilo, em seu devido lugar de importância na literatura brasileira, e valorizou,
em especial, o poeta Gregório de Matos.
A poesia satírica de
Gregório de Matos revela uma visão grotesca do mundo, que está sustentada na
teoria da “carnavalização literária” de Bakhtin. Este ao analisar a obra de
François Rabelais, em seu livro A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (2010), propõe uma teoria que também serve
para abordar a máscara poética satírica de Gregório de Matos. Já que esta é
pautada pelos princípios estéticos do realismo
grotesco, que é marcado por um vocabulário
familiar e grosseiro, propondo uma visão de mundo específica, caracterizada
pelo riso, pela subversão dos valores oficiais, pelo caráter renovador e contestador da ordem vigente da Bahia (e
do Brasil) do Seiscentos (século XVII).
Vejam-se trechos do poema
“DEFENDE O POETA POR SEGURO, NECESSARIO, E RECTO SEU PRIMEYRO INTENTO SOBRE
SATYRIZAR OS VICIOS”, para que percebamos a subversão dos valores oficiais e o
tom de contestação do status quo da
Bahia seiscentista:
“Eu sou aquele, que os
passados anos
cantei na minha lira
maldizente
torpezas do Brasil,
vícios, e enganos.
(...)
Qual homem pode haver tão
paciente,
Que vendo o triste estado
da Bahia,
Não chore, não suspire, e
não lamente?
Isto faz a discreta
fantesia:
Discorre em um, e outro
desconcerto,
Condena o roubo, e
increpa a hipocrisia.
O néscio, o ignorante, o
inexperto,
Que não elege o bom, nem
mau reprova,
Por tudo passa
deslumbrado, e incerto.
E quando vê talvez na
doce trova
Louvando o bem, e o mal
vituperado,
A tudo faz focinho, e
nada aprova.
Diz logo prudentaço, e
repousado,
Fulano é um satírico, é
um louco,
De língua má, de coração
danado.
(...)
Se souberas falar, também
falaras,
Também satirizavas, se
souberas,
E se foras Poeta,
poetizaras.
(...)
Todos somos ruins, todos
preversos,
Só nos distingue o vício,
e a virtude,
De que uns são comensais,
outros adversos. (...)”. (MATOS, Gregório de. Crônica do viver baiano seiscentista. 1999, Vol. I, p.366-68).
Nesse poema, já
percebemos que o intuito do eu-lírico é satirizar os vícios da sociedade. O
poema é claramente barroco, basta observar o emprego de vocábulos tais como: “enganos”,
“desconcerto”, “incerto” etc. O que caracteriza as dicotomias barrocas: engano
e desengano; concerto e desconcerto; certeza e incerteza, reforçando o caráter
de ambiguidade típico da poética barroca. Outra dicotomia expressa no próprio
poema é: “vício” e “virtude”, objetos da sátira gregoriana. Percebe-se também
um tom metalinguístico no poema quando o eu-poético expressa: “Se
souberas falar, também falaras,/Também satirizavas, se souberas,/E se foras
Poeta, poetizaras.”. Refletindo nessa estrofe sobre o próprio fazer poético,
satírico.
A obra satírica de
Gregório de Matos vai de encontro ao dogmatismo e aos valores que regiam a
sociedade da época. Quando Bakhtin refere-se à linguagem poética de Rabelais,
pode-se transpor a mesma abordagem à obra do poeta baiano:
as imagens de
Rabelais [Gregório de Matos] se
distinguem por uma espécie de ‘caráter não-oficial’, indestrutível e
categórico, de tal modo que não há dogmatismo
[grifo meu], autoridade nem formalidade unilateral que possa harmonizar-se
com as imagens rabelaisianas [de Gregório
de Matos], decididamente hostis a toda perfeição definitiva, a toda
estabilidade, a toda formalidade limitada, a toda operação e decisão
circunscritas ao domínio do pensamento e à concepção do mundo. (BAKHTIN, 2010,
p.2)
A percepção da realidade
pelo poeta baiano coaduna-se com o riso satírico do realismo grotesco, pois sua
visão de mundo, do homem e das relações humanas é totalmente distinta.
Deliberadamente, Gregório de Matos se reveste de uma máscara poética satírica
para adotar uma concepção de mundo “não oficial”, não “dogmática”, exterior e
contrária à Igreja e ao Estado.
Veja-se um poema, no qual
o eu-lírico gregoriano satiriza um frade, e por meio dele, estende-se uma
sátira, por conseguinte à Igreja como instituição: “A CERTO FRADE NA VILLA DE
SAM FRANCISCO, A QUEM HUA MOÇA FIGINDOSE AGRADECIDA À SEUS REPETIDOS
GALANTEYOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE HUMA PANELLA DE MERDA”:
“1 Reverendo Frei Antônio
se vos der venérea fome,
praza a Deus, que Deus
vos tome,
como vos toma o demônio:
uma purga de antimônio
devia a moça tomar,
quando houve de vos
mandar
um mimo, em que dá a
entender,
que já vos ama, e vos
quer
tanto, como o seu cagar.
2 Foste-vos mui de
lampeiro
vós, e os amigos de cela
ao miolo da panela,
e achastes um camareiro:
metestes a mão primeiro,
de que vos
desenganásseis,
foi bem feito, que
achásseis,
cagalhões, que então sentistes,
porque aquilo, que não
vistes,
quis o demo, que
cheirásseis.
3 A hora foi temerária,
o caso tremendo, e atroz,
e essa merda para vós
se não serve, é
necessária:
se a peça é mui
ordinária,
eu de vós não tenho dó:
e se não dizei-me: é pó
mandar-vos a ponto cru
a Moça prendas do cu,
que tão vizinho é do có?
(...)”. (MATOS, Gregório de. Crônica do
viver baiano seiscentista. 1999, Vol.
I, p.249-50).
Com esses trechos já nos é suficiente, para
constatarmos o ataque virulento e satírico à ordem vigente e dogmática da época,
no caso em particular, uma sátira à Igreja, na figura de um frade. Uso de “vocabulário
familiar e grosseiro”, chulo e de baixo calão, para provocar um “riso
sério-jocoso” no leitor, de acordo com os estudos de Bakhtin (2010).
Satirizando assim, o eu-lírico gregoriano busca denunciar e ironizar, por meio
da sátira, os vícios da sociedade seiscentista baiana, incluindo os vícios da
Igreja Católica, que seria, dogmaticamente, símbolo de austeridade. Gregório de
Matos não perdoa e ridiculariza ao extremo o frade (a Igreja), com o uso
poético de palavrões e ofensas.
Essa percepção de mundo
propõe uma “dualidade do mundo” (BAKHTIN, 2010, p.5) dinâmica típica do
Barroco, na qual o sagrado e o profano, a luz e as trevas, a razão e a emoção,
o claro e o escuro, são poetizados de maneira dialética, mas não sintética,
porém analítica. Configurando a “tensão harmônica dos contrários”
característica fundamental do estilo Barroco. No caso, de Gregório de Matos,
aquela serve como subsídio para a crítica irônica e satírica da poesia
gregoriana. O sarcasmo também se faz presente nos seus poemas.
A poesia satírica de
Gregório de Matos é marcada pelo o que Bakhtin denominou de “carnavalização
literária” (2010), ou seja, pelo “riso festivo”, cômico, jocoso,
“carnavalesco”. O poeta baiano busca por essa máscara poética (satírica)
desconstruir os dogmas sociais e políticos da Bahia e do Brasil do século XVII.
Para isso faz uso de imagens do corpo (“baixo corporal”), da bebida (bebedeiras),
da comida (comilanças), da satisfação de necessidades fisiológicas e da vida
sexual. São imagens exageradas e hipertrofiadas, segundo Bakhtin (2010), as
quais são sempre usadas quando o poeta busca poetizar recorrendo ao “realismo
grotesco”.
Isso tem como função
buscar o “riso sério-jocoso” do leitor. Através da “carnavalização literária”
(Bakhtin, 2010), Gregório de Matos faz uso, em diversos poemas, do “baixo
corporal”, com o intuito de elevar o que está em baixo e rebaixar o que está em
cima. Esse artifício literário é típico do “realismo grotesco” de Gregório, que
“não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o
baixo é sempre o começo.” (BAKHTIN, 2010, p.19).
Ou seja, o rebaixamento
poético, valendo-se do “baixo corporal” é um artifício lírico que o poeta
baiano utiliza para satirizar e ironizar a sociedade baiana e brasileira do Seiscentos.
Pois esse mesmo “baixo material e corporal do realismo grotesco cumpre ainda
suas funções unificadoras, degradantes, destronadoras, mas ao mesmo tempo
regeneradoras.” (BAKHTIN, 2010, p.21).
Dessa forma, rebaixa-se o
que é motivo de sátira e de ironia, na visão do poeta, que ao elaborar os
poemas, busca o riso sério-jocoso dos seus leitores; mas
eleva-se o que é valorizado pela poesia, elevando, justamente, os atributos que
para Gregório de Matos contrariava os dogmas vigentes da época.
Bakhtin (2010) refere-se
ao fato do realismo grotesco colocar
ênfase nas partes
do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra
nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios,
protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os
órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a
gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais,
que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa
seus próprios limites. É um corpo eternamente incompleto, eternamente criado e
criador, dois elos observados no ponto onde se unem, onde entram um no outro. (BAKHTIN, 2010, p.23).
Essas características
observadas por Bakhtin na obra de Rabelais, também se fazem presentes nos
poemas satíricos de Gregório de Matos, marcadamente grotescos e
“sério-jocosos”. Na busca do poeta em desconstruir os dogmas da Bahia do
Seiscentos. O corpo do “realismo grotesco” de Gregório representa e encarna o
universo material e corporal (particular e individual; coletivo e popular
etc.), evidenciando a tensão harmônica dos contrários, típica dos poetas
barrocos, constituindo-se, assim, uma dualidade dinâmica na poesia barroca, nos
poemas do poeta baiano. Veja-se o poema: “A MESMA MARIA VIEGAS SACODE AGORA O
POETA ESTRAVAGANTEMENTE, PORQUE SE ESPEYDORRAVA MUYTO.”:
“1 Dizem, que o vosso cu,
Cota,
assopra sem zombaria,
que parece artilharia,
quando vem chegando a
frota:
parece que está de aposta
este cu a peidos dar,
porque jamais sem parar
este grão-cu de enche-mão
sem pederneira, ou murrão
está sempre a disparar.
2 De Cota o seu arcabuz
apontado sempre está,
que entre noite, e dia dá
mais de quinhentos
truz-truz:
não achareis muitos cus
tão prontos em peidos
dar,
porque jamais sem parar
faz tão grande bateria,
que de noite, nem de dia
pode tal cu descansar.
3 Cota, esse vosso
arcabuz
parece ser encantado,
pois sempre está
carregado
disparando tantos truz:
arrenego de tais cus,
porque este foi o
primeiro
cu de Moça fulieiro,
que tivesse tal saída
para tocar toda vida
por fole de algum
ferreiro.” (MATOS, Gregório de. Crônica
do viver baiano seiscentista. 1999, Vol. I, p.443).
Esse poema é uma prova
extrema do que Bakhtin (2010) denominou de “carnavalização literária”, pois o
eu-lírico gregoriano abusa do uso de imagens do corpo (“baixo corporal”); de
vocabulário chulo e grosseiro; menção à satisfação de necessidades fisiológicas
(excrescências de gases intestinais); são imagens exageradas e hipertrofiadas
(“este grão-cu de enche-mão”), as quais segundo Bakhtin (2010) são usadas
quando o poeta busca poetizar recorrendo ao “realismo grotesco”. É o caso desse
poema de Gregório de Matos.
Quanto ao denominado
“vocabulário chulo e/ou grosseiro”, é necessário apoiar-se numa base teórica
que o valide como artifício poético da sátira, como por exemplo, os estudos de
Dino Preti (1983), contidos no livro A
linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica. Preti assevera
que:
como os costumes,
submetidos a um processo competitivo de forças sociais opostas, em que se
alternam e se equilibram leis da continuidade e da renovação, controladas pelo
grau de aceitabilidade do povo, em diferentes épocas, assim também o estoque
lexical sofre a influência das pressões sociais que ora o prendem à tradição de
uma hipotética ‘boa linguagem’, ora o libertam para a aceitação de novos
vocábulos, novos conceitos, surgidos da necessidade de expressar ideais e
atividades mais recentes. (PRETI, 1983, p.60).
Gregório de Matos, em sua
máscara poética satírica, subverte a “boa linguagem”, para que assim sua sátira
libere e promova a “aceitação de novos vocábulos”, com o intuito de expressar
ideais novas, ou no caso do poeta baiano, este busca com o uso de “vocabulário
chulo e obsceno” desconstruir os dogmas vigentes na sociedade baiana do século
XVII. E, no caso, do poema acima, utiliza aquele vocabulário grosseiro, com uma
finalidade “lúdica”, típica do Barroco, de jogar com as palavras, num “impulso
lúdico”, o “ludismo” barroco; basta conferir os estudos de Affonso Ávila (1971)
a respeito do tema, em O lúdico e as
projeções do mundo barroco.
Dessa forma:
sob a perspectiva
moral, por exemplo, as frágeis linhas que marcam os limites dos ‘bons
costumes’, cujos conceitos continuamente se renovam dentro de uma continuidade,
são transpostas para o campo do léxico. Formas vulgares se incorporam à fala
culta ou vice-versa. A vida das palavras torna-se um reflexo da vida social e,
em nome de uma ética vigente, proíbem-se ou liberam-se palavras, processam-se
julgamentos de ‘bons’ ou ‘maus’ termos, apropriados ou inadequados aos mais
variados contextos. E tabus linguísticos aparecem como decorrência de tabus
sociais. (PRETI, 1983, p.60-61).
Isso se verifica, ao
interpretarmos o poema “A MESMA MARIA VIEGAS SACODE AGORA O POETA
ESTRAVAGANTEMENTE, PORQUE SE ESPEYDORRAVA MUYTO.”, de Gregório de Matos, pois o
poeta usa e abusa de termos chulos para ir de encontro aos “tabus sociais”,
indo contra os dogmas vigentes na Bahia seiscentista. A moralidade é posta à
prova, os “bons costumes” são satirizados, pela poesia gregoriana, no jogo
lúdico e engenhoso de seu “léxico vulgar” ou “obsceno”. O que importa para o
eu-lírico desse poema é contrariar a “ética vigente” dos “bons ou maus termos”
linguísticos da época, para ludicamente expressar uma sátira mordaz e
contundente aos interditos sociais e morais vigentes na Bahia do século XVII.
Para um crítico da obra
gregoriana, João Adolfo Hansen (2004), em seu livro teórico ímpar sobre o poeta
baiano, A sátira e o engenho: Gregório de
Matos e a Bahia do século XVII, Hansen explica que:
exibida como
efeito grotesco da aplicação de regras da fantasia poética para agredir rindo,
é a obscenidade que (...), lida segundo seu funcionamento retórico, que é
histórico, a obscenidade se evidencia nos poemas com maledicência que
hierarquiza tipos vis em nome do bem comum. Contra o vulgo, viu-se, é efetuada
como diversão do mesmo que, que se delicia com os mistos sórdidos e
fantásticos. Tripla articulação, pois, em que retórica, moral e política se
integram para mover e subordinar. (HANSEN, 2004, p.389).
Daí, entendemos o porquê
da poesia gregoriana se inscrever numa tradição poética de um Quevedo, por
exemplo. Pois:
quando se escreve
que não deve escandalizar, fala-se do corpo: sempre convencional, pois sempre
tatuado pela cultura, é absolutamente impossível pensá-lo num grau zero de si
mesmo. A obscenidade metaforiza justamente a não-linguagem impossível do corpo
que não se vê como signo quando exibido e, por isso, dá-se todo à representação
cega, ocupando a cena imaginária com sua natureza monstruosa. Esta é obscena
porque, como a sábia etimologia latina ensina, é ob scaena, fora da cena, pondo-se
impossivelmente fora da convenção simbólica como natureza bestial animada de
horrível vida própria. Na sátira, por isso, o obsceno nunca é erótico, porque
sempre é explícito. (HANSEN, 2004, p.389). [grifos
do autor].
Por
isso em poemas como, “CHEGANDO ALI O POETA COM THOMAZ PINTO BRANDÃO CONTA, O
QUE PASSOU COM ANTONICA HUMA DESHONESTA MERETRIZ.”, verifica-se o obsceno na
poesia gregoriana:
“Chegando
à Cajaíba, vi Antonica,
e
indo-lhe apolegar, disse-me caca,
gritou
Tomás em torno de matraca
Bu
bu pela mulher, que foge à pica.
Eu,
disse ela, não sou mulher de crica,
que
assomo como rato na buraca,
quem
me lograr há de ter boa ataca,
que
corresponda ao vaso, que fornica.
Nunca
fez mister dizer, quem merca,
porque
a minha beleza é mar que surca
alto
baixel, que traz cutelo, e forca.
E
pois você tem feito, com que perca,
diga
essas confianças à urca,
que
eu sei, que em cima de urca é puta porca.” (MATOS, Gregório de. Crônica do viver baiano seiscentista. 1999,
Vol. I, p.591-92).
Nesse
poema, tem-se obsceno, basta verificar que o vocábulo “ataca” é um termo chulo,
sinônimo de “pênis”, o termo “vaso” é também um vocábulo obsceno, pois se
refere à “vagina”. E todo o poema tem como temática uma relação sexual, porém esta
é poetizada de forma satírica e explícita, de maneira obscena, chula,
grosseira, explícita. Indo ao encontro dos estudos de Hansen (2004). E, em
conformidade, aos estudos de Bakhtin (2010), sobre “realismo grotesco” e
“carnavalização literária”, pois no poema acima os órgãos genitais são
hipertrofiados. Trata-se, portanto, do “baixo corporal”; além de ao final do
poema (última estrofe) ser feito alusão a uma mulher absurdamente feia e
grande, pois este é o significado da palavra “urca”. Mais uma vez o caráter
“disforme” de alguns seres nos poemas satíricos, inscritos no “realismo
grotesco”.
Gregório
de Matos para ironizar e satirizar a verdade absoluta, dogmática, também faz
uso do baixo calão e do baixo corporal. Vai do alto para o baixo e vice-versa,
para nesse rebaixamento-elevação, promover uma dialética entre “material e
espiritual”, típica dicotomia barroca, que constitui sempre uma dualidade
dinâmica. Ao usar o vocabulário erótico e chulo, manifesta, segundo, João
Carlos Teixeira Gomes (1985), “função injuriosa ou blasfematória”,
constituindo, “sobretudo uma função política, ativadora de choque e confronto.
Seu intuito era, expressamente, o de operar o rebaixamento das instituições consagradas(...)”. [grifo do autor] (GOMES, 1985, p.356).
É o momento, segundo
Gomes (1985), “de colocarmos, agora, a poesia de Gregório de Matos dentro das
coordenadas da cultura popular do Ocidente tal como a situou Bakhtin, tão
citado, hoje (...)”. (GOMES, 1985, p.356). O crítico russo estudou Rabelais,
mas os seus estudos também servem, como já afirmado anteriormente, para a
poesia gregoriana. Para Bakhtin, os escritores satíricos usavam imagens ligadas
ao baixo corporal: órgãos genitais, ventre, nádegas, todos os “orifícios” e
“protuberâncias”, “para afrontar a cultura oficial e o poder constituído.” (GOMES,
1985, p.356). E, assim, atacar as verdades dogmáticas do século XVII.
Para Bakhtin (2010), as
celebrações populares da Idade Média, entre elas, o carnaval, com importante
papel social, no qual o teórico russo identifica um poderoso elemento lúdico.
Portanto, “a ideia de uma concepção carnavalesca da vida aplica-se ao
rabelaisiano Gregório de Matos e Guerra” (GOMES, 1985, p.359). A
“carnavalização literária” que o poeta baiano faz uso permite-o utilizar “(...)
‘a ideologia do riso’ (...) como forma de acutilar o poder dominante.” (GOMES,
1985, p.359). Provocando a ausência de verdades absolutas.
Gregório e sua sátira
eram marcados de maneira que o
alvo de sua poesia
não eram os emblemas abstratos dos vícios, mas sim desafetos de carne-e-osso,
sobre os quais ele costumava despejar irritado – de padres a governantes –
epítetos injuriosos com manifesto sentido de retaliação. (GOMES, 1985, p.360).
Gregório de Matos
refere-se, constantemente, a situações ridículas do comportamento humano, para
satirizar e ironizar o dogmatismo da época. Por exemplo: alude a
deformações
físicas e funções fisiológicas como evacuação de excrementos ou de gases
intestinais, dores de barriga, regras menstruais, falos desmedidos ou
atrofiados, ânus ou vaginas metaforizados debochativamente, maus odores,
práticas sexuais como pederastia e lesbianismo, além de imagens degradadas ou
animalescas (...), tudo isto compondo um quadro de franca e deliberada
transgressão retórica e linguística com fins de confrontação. (GOMES, 1985,
p.361).
Gregório usa a “‘força regeneratriz’ do riso e a
linguagem dinâmica do mundo às avessas.”
(GOMES, 1985, p.368). O poeta
brasileiro é o melhor exemplo de um poeta enriquecido por essa herança (de
Rabelais, da “carnavalização literária”), trazendo para o interior da poesia
burlesca e satírica:
a voz rude do povo
(...). A Gregório podemos aplicar a bela frase com que Dámaso Alonso premiou
Quevedo, e dizer também que ele soube criar em sua poesia um ‘mundo inarmônico,
concentrado, soez, purulento, sempre forte, sempre entre Bosco e Goya.’, em
cujos limites nos deixou o mais vivo testemunho das ambivalências da sua época.
(GOMES, 1985, p.369).
Foi um “moralista às
avessas”, Gregório de Matos foi um
grande sobretudo
quando resolveu escrever no Brasil uma espécie de Evangelho poético (e urbano)
da zombaria, trocando as convenções da literatura gongorizante e culteranista
pela imersão plena e total na vida e no seu momento histórico. Entre o céu,
glorificado pelo ascetismo barroco, e a terra, cheia dos apelos do sensualismo
dos trópicos, fez a opção sem remorsos da terra, que causticou com a sua musa
impiedosa, tocado pela ideologia do riso. (GOMES, 1985, p.369).
Outro aspecto que podemos
abordar na obra do poeta baiano é o elemento lúdico de seus poemas. Em
conformidade aos estudos do teórico Affonso Ávila (1971), em O lúdico e as projeções do mundo barroco, pode-se
afirmar que poesia gregoriana também lúdica, ao fazer uso do jogo como forma de
expressão poética:
(...) de pontos de
vista, ângulos ou perspectivas que quebram a linearidade e a rigidez clássicas,
convidando-nos a uma relação visual mais rica de possibilidades furtivas, em
que se ampliam e excitam mais livremente as nossas disponibilidades para a
experiência dos sentidos e o gozo da inteligência. (ÁVILA, 1971, p.19-20).
É o que se denomina
“ludismo barroco”, pois dessa forma tem-se o impulso para o jogo lúdico e
poético na obra gregoriana. Uma espécie de “pacto lúdico”, no qual o jogo é um:
(...) processo de
criação e captação do estético (...), pois o impulso lúdico presente no ato criador (...), [que] promoverá (...) a
expansão de suas potencialidades, favorecendo, por conseguinte a expressão
dessas reservas criativas através de formas ampliadas e enriquecidas de
sentido. (ÁVILA, 1971, p.24). [grifos do
autor].
O “pacto lúdico” entre
artista e leitor, segundo Affonso Ávila (1971), é uma espécie de acordo tácito
entre aqueles, para se livrarem do dogmatismo e das normas sociais vigentes da
época, “Pois sempre que ele [artista]
se sinta acuado pelas forças da conjuntura ideológica e social, o artista
estará fatalmente tentado a uma rebelião
através do jogo.” (ÁVILA, 1971, p.29). [grifos
do autor].
Por isso tudo, a obra
satírica gregoriana é lúdica, além de adquirir um tom “sério-jocoso”, na busca
de denunciar os vícios da sociedade baiana e brasileira do século XVII,
provocando o “riso revigorante” do leitor. Porém, o poeta não busca dar
“soluções” para esses mesmos vícios sociais, sua preocupação é evidenciá-los
para ridicularizá-los. Conforme, João Carlos Teixeira Gomes (1985), o poeta
baiano é um “moralista às avessas”, para aquele crítico, contudo, Gregório de
Matos atacava “desafetos de carne-e-osso”, para ridicularizá-los, entretanto
essas duas visões da poesia gregoriana (denúncia de vícios sociais e ataques
individuais), não são excludentes, pelo contrário, são tensões harmônicas e
dissonantes de uma poética barroca. Vejamos o poema: “DEFINE A SUA CIDADE”,
como forma de conclusão do exposto:
“
Mote:
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.
1 Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem
feito:
por bem Digesto, e
Colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se
encerra,
há de dizer, que esta
terra
de dous ff se compõe.
2 Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de
perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
3 Provo a conjetura já
prontamente como um
brinco:
Bahia tem letras cinco
Que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém
sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.”
(MATOS, Gregório de. Crônica do viver
baiano seiscentista. 1999, Vol. I, p.38-39) [grifos do poeta].
O poema carrega um tom de sarcasmo e ironia
típico da sátira gregoriana, com o intuito de denunciar os vícios da sociedade
baiana do Seiscentos. Faz uso, por isso, mais uma vez, de palavrões, de
vocabulário chulo e de apelo sexual. A denúncia social é feita, porém, busca-se
como efeito o “riso sério-jocoso” do leitor, para assim satirizar a ordem
vigente e os vícios sociais da época e da cidade. O poema ainda reveste-se de
um caráter lúdico, pois a tessitura do mesmo foi elaborada a partir de um
“mote”, o que confirma os estudos de Affonso Ávila (1971), quanto ao “jogo
lúdico” e o “impulso lúdico”, que os poetas barrocos têm para escrever textos
marcados pelo “ludismo”, tão característico da estética barroca.
Assim, a máscara satírica
de Gregório de Matos configura-se, ainda mais, como uma das mais profícuas,
tanto em quantidade, quanto em qualidade, de poemas, da Literatura Brasileira;
no que se referem à poesia satírica, os poemas gregorianos são de alto valor estético.
”
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São
Paulo: Perspectiva, 1971. p.19-29.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi
Vieira. 7 ed. São Paulo: Editora Hucitec, São Paulo, 2010.
CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do barroco na formação da
literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. São Paulo: Iluminuras,
2011.
COUTINHO, Afrânio (Dir.).
A literatura no Brasil. Vol. II: Era
Barroca/Era Neoclássica. São Paulo: Global, 2001. p.12-36.
GOMES, João Carlos
Teixeira. [Gregório de Matos e a visão grotesca do mundo]. In: Gregório de Matos: o boca de brasa. (um estudo de plágio e criação
intertextual). Rio de Janeiro: Vozes, 1985. p.356-70.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a
Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da
Unicamp, 2004.
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
LIMA, Luiz Costa. Vida e mimesis. Rio de Janeiro: Editora
34, 1995.
MATOS, Gregório de. Crônica do viver baiano seiscentista. 2
vols. Rio de Janeiro: Record, 1999.
PRETI, Dino. A linguagem proibida: um estudo sobre a
linguagem erótica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983. p.59-75.
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