Na mira
da morte (Targets, 1968, Peter
Bogdanovich, EUA):
("O cinema e a reflexão sobre o 'horror'"):
(Crítica por Rafael Vespasiano):
“Não foram poucos os cineastas
que tiveram Roger Corman, produtor e diretor de filmes B norte-americano, uma
porta de entrada para o mundo do cinema: de Francis Ford Coppola a Martin
Scorsese - incluindo nomes como Monte Hellman, Jonathan Demme, James Cameron e
Joe Dante -, alguns dos grandes diretores da Nova Hollywood passaram pelas mãos
deste que até hoje se mantém como um dos mais influentes nomes da história do
cinema B mundial. Peter Bogdanovich, crítico de cinema reconhecido por suas
relevantes pesquisas e entrevistas publicadas com grandes artistas como Hithcock,
John Ford, Anthony Mann e Howard Hawks, também faz parte desta lista, e seu
primeiro filme, Na Mira da Morte. O
filme foi realizado a convite de Roger Corman, que disse a Bogdanovich que ele
poderia fazer o filme que quisesse, desde que atendesse as seguintes condições:
incluir 20 minutos de sequências de "The Terror" (1963), filme de
Corman estrelado por Boris Karloff; incluir sequências filmadas com Boris
Karloff durante dois dias, totalizando uma participação de 20 minutos (Karloff
devia esse período de filmagem a Corman); realizar 40 minutos extras do filme
com o restante do elenco, ao longo de 2 semanas. Karloff se impressionou tanto
com o roteiro do cineasta -, que teve a inestimável colaboração de Samuel
Fuller -, que fez Karloff ampliar sua participação de 20 para 30 minutos e
ainda recusou qualquer pagamento extra.
Em seu filme de estreia, Peter
Bogdanovich narra com maestria duas histórias que correm em paralelo: a de
Byron Orlok (Boris Karloff), veterano ator de filmes de terror que pretende
abandonar a carreira, e a de Bobby (Tim O'Kelly), um típico rapaz estadunidense
de classe média que, sem qualquer motivo aparente, começa a reunir um imenso
arsenal de armas de fogo. As duas histórias, no começo parecem sem conexão,
porém, encaminham-se para um encontro final. Bogdanovich filma as duas
histórias de maneira deliberadamente contrastante: na primeira, de Orlok, o
cineasta coloca o espectador dentro da ação através do uso do subjetivismo,
instaurando um ambiente humano e afetivo; na segunda, de Thompson, a câmera
objetiva estuda seus personagens com um olhar frio - a câmera objetiva só dá
lugar à subjetiva quando Thompson mira seus alvos, à distância, preservando a
frieza de sua história. Um filme metalinguístico do talentoso Bogdanovich, que
discute o cinema e a impossibilidade do terror no cinema frente a uma realidade
muito mais aterrorizante, que surge com a pós-modernidade dos anos 1960 do
século XX, em contraste com os filmes de terror do início do século XX.
O ator eternizado como
Frankestein, uma das lendas dos filmes de horror das primeiras décadas do
século XX, é a chave para o discurso central do filme. Logo nas imagens
iniciais, retiradas de Terror no Castelo,
filme de Roger Corman com atuação de Karloff, Bogdanovich apresenta pequenos
traços que de imediato ajudam a resgatar a imagem que se construiu ao longo dos
anos sobre a imagem cinematográfica do ator: um vilão à moda antiga, dos tempos
dos contos medievais atmosféricos e góticos que amedrontava através do olhar e
da insinuação gestual, e, das sombras para praticar o mal. As imagens, que são
apresentadas junto aos créditos iniciais, revelam-se dentro do filme de Bogdanovich
como uma projeção do último filme realizado pelo personagem fictício de
Karloff, um ator que decide se aposentar, pois passa a acreditar ter virado uma
caricatura saudosista de algo que um dia já funcionou como horror.
Bogdanovich, cuja base de cinema
mantém fortes laços com o clássico, constrói em um canto de cisne para Karloff.
E não apenas isso: nos ombros dessa figura cansada, o cineasta escora conceitos
aplicáveis não apenas ao cinema, ao ícone Karloff ou ao período artístico em
que esteve no auge. Karloff, que durante anos precisou apenas aparecer em cena
para meter o terror, foi transformado pelo tempo em uma imagem leve e inocente
demais para despertar o horror em pessoas que, diariamente, precisam encarar a
brutalidade e a crueldade com a qual às vezes se nutre, vive e idolatra o ser
humano.
Este é o confronto e o dilema do
roteiro do filme: o embate proposto por Bogdanovich ao unificar as duas
histórias paralelas a de um ator, que se prepara para participar da exibição de
seu último filme, e a do homem que é fascinado por armas de fogo e resolve um
dia, depois de montar um pretenso arsenal, sair descarregando bala em todo
mundo: um choque entre o velho e o novo, que mantém e renova, apresenta e reapresenta
a nova forma de horror que se instalava ao final da década de 1960, quando a
violência e o caos cresciam de maneira assustadora.
A mais profunda reflexão do filme
é perceber como um cineasta declaradamente apaixonado pelo cinema e eternamente
dedicado a esta paixão, se posiciona ao colocar frente a frente duas faces do
horror, a tradicional do mero cinema de terror ‘ingênuo’, e, o pós-moderno, a
realidade nua e crua, um horror violento e destruidor, que de ingênuo nada tem.
Indicando ao final de tudo aos espectadores, cinéfilos, que só uma coisa salva
neste mundo cada vez mais desumano: e é, sim, o próprio cinema -, o filme,
inclusive, é metalinguagem pura em vários momentos, característica típica dos
filmes de Bogdanovich. ”
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