domingo, 7 de maio de 2017

Antologia Simbolista e Decadente Brasileira-Parte 2-9: Eduardo Guimaraens

Seleção e pequenas notas introdutórias de Rafael Vespasiano:



"Eduardo Guimarens é um poeta extremamente marcado pelo decadentismo de tradição francesa, com intertextualidades com Mallarmé, Verlaine e Rimbaud. Sua maior obra é A divina quimera que mantém contato com a tradição de Dante em A divina comédia. Além de ter uma relação poética com Edgar Allan Poe e, portanto, com Baudelaire e As flores do mal, estes dois escritores e o livro citado por último revolucionaram as Letras Ocidentais no que se revela na organicidade seja de contos ou poemas, e, no caso de Charles Baudelaire em relação a um livro inteiro de poemas que passa a ser necessário ler poema a poema, um a um sem saltear, justamente pela organicidade e funcionalidade que os poetas passaram a dar a seus livros, ou seja uma organização formal, poética, funcional e temática até a suas obras. É o caso desta obra-prima da Literatura Brasileira A divina quimera, publicada em 1916. O poeta Eduardo Guimaraens assim como outros simbolistas da Literatura, associam sua poesia à uma musicalidade como estado d´alma, no caso do poeta em questão, uma alma doentia. Seus versos são de uma musicalidade sugestiva ímpar. Eduardo Guimaraens não procura vãs epifanias em seus poemas, mas o devaneio das almas; as profundezas das emoções, das mentes e dos espíritos decadentes do eu-lírico, que só têm um fim: o pó."





(Rafael Vespasiano).

EDUARDO GUIMARAENS:




A DIVINA QUIMERA:

PARTE I
2

Doçura de Estar Só...

Doçura de estar só quando a alma torce as mãos!
— Oh! doçura que tu, Silêncio, unicamente
sabes dar a quem sonha e sofre em ser o Ausente,
ao lento perpassar destes instantes vãos!

Doçura de estar só quando alguém pensa em nós!
De amar e de evocar, pelo esplendor secreto
e pálido de uma hora em que ao Seu lábio inquieto
floresce, como um lírio estranho, a Sua voz!

E os lustres de cristal! E as teclas de marfim!
E os candelabros que, olvidados, se apagaram
E a saudade, acordando as vozes que calaram!
Doçura de estar só quando finda o festim!

Doçura de estar só, calado e sem ninguém!
Dolência de um murmúrio em flor que a sombra exala,
sob o fulgor da noite aureolada de opala
que uma urna de astros de ouro ao seio azul sustém!

Doçura de estar sós Silêncio e solidão!
Ó fantasma que vens do sonho e do abandono,
dá-me que eu durma ao pé de ti do mesmo sono!
Fecha entre as tuas mãos as minhas mãos de irmão!


                                               (A Divina Quimera, 1916)



Pate II
1

Dante

Pelo divino horror de um desespero eterno
e pelo ardor febril a que a alma nos conduz,
florindo para o azul, irrompendo do inferno,
Dante evoca um abismo onde há lírios de luz.

Cada verso revela um fundo imenso de erma
tristeza em que uma voz alucinada clama:
e ora, inútil recorda a asa de uma águia enferma,
ora a ascensão brutal de uma língua de chama.

Dá-me, agora, o terror de uma visão que assombra.
Torvo, Ugolino sofre a sua fome atroz;
tem Virgílio a expressão sagrada de uma Sombra;
uiva um blasfemo! E a selva é lúgubre e feroz.

Lembra, após, o esplendor pesadelar de um sonho
magnífico e sangrento, em que anjos maus esvoaçam,
quando por mim, à flor do turbilhão tristonho,
enlaçados e nus, Paolo e Francesca passam...

Dante! — Quero-o, porém, mais doloroso e terno,
mais humano, a compor, torturado e feliz,
sob a angústia mortal do seu secreto inferno,
uma canção de amor em louvor de Beatriz!


Publicado no livro A divina quimera (1916).

Parte II
2

Chopin: Prelúdio, Nº 4

de Eduardo Guimaraens

Do fundo do salão vem-me o seu pranto sobre-humano,
como do fundo irreal de um desespero hoje olvidado:
dir-se-ia que estes sons têm um tom de ouro avioletado;
há um anjo a desfolhar lírios de sombra sobre o piano.

Doce prelúdio! Que ermo e doloroso desengano
fala, através do seu vago perfume de passado?
Sobre Chopin a noite abre o amplo manto constelado:
um delírio de amor anda por tudo, insone, insano!

Em cada nota solta há como um lânguido lamento.
– Oh, a doçura de sentir que o teu olhar, perdido,
sonha, recorda e sofre, ao doce ritmo vago e lento!

E o silêncio! E a paixão que abre em adeus as mãos absortas!
E o passado que volta e traz consigo, inesquecido,
um aroma secreto e vago e doce, a flores mortas!



In: GUIMARAENS, Eduardo. A divina quimera. Org. e pref. Mansueto Bernardi. Porto Alegre: Globo, 194


Parte II
3

Túmulo de Baudelaire

Eduardo Guimaraens (1892-1928)

Um anjo, que possui uma espada de chama,
hirto e pálido, à fronte um halo virginal,
guarda o Túmulo, junto ao mármore imortal,
a que o Poeta desceu, cego de luz e lama.

Outro, que às mãos desfralda o ardor de uma auriflama,
olha, cismando, o azul profundo como o mal;
e Lúcifer, enfim, magnífico e fatal,
tem à boca a revolta em que a blasfêmia clama.

Entre a aridez da terra e a solidão noturna,
fundo abismo, do espaço ao lúgubre esplendor,
fendem-se do Desejo as largas fauces de urna.

E as Danaides, de aspecto envelhecido e eterno,
tentam encher em vão esse tonel de horror!
Ora, lá dentro, o Céu! Uiva, lá dentro, o Inferno!




Parte II
5

DE PROFUNDIS CLAMAVI

Desse profundo horror, de explêndida memória,
ouve, Senhor, o brado unânime e maldito
que aos céus, vibrando, sobe! Ouve o sinistro grito
que é toda a angústia humana e toda a humana glória!

Ouve o que diz a boca exangue e merencória,
de amor gemendo! E o lábio ardente do precito
que em vão interrogou a sombra do infinito!
E o que sorveu, calado, a lágrima ilusória!

Ouve, Deus de Sinai que tens o raio ao seio!
Nós clamamos a ti pelos perdões supremos
pela suprema paz ao nosso eterno anseio!

E queremos saber por que nos torturamos!
E clamamos a ti do Éden em que sofremos!
E clamamos a ti do Inferno em que gozamos !

                   (A Divina Quimera, 1916)


Parte III

2

"Um piano
faz sofrer a noite lenta.


Que estranha melodia,
de doloroso desengano,
vem pungir a minha alma sonolenta,
pelo doce amargor nostálgico desta hora?

Dorme ao fim de que rua a tua casa triste
onde a sombra que desce, agora, existe
como um olvido, sob o azul da noite fria?

- Será Chopin ou serás tu quem chora?"


CANTOS DA TERRA NATAL

Aos Lustres

Suspensos, nos salões, dos tetos decorados,
que de arabescos orna o gesso alvinitente,
ó lustres de cristal, enganadoramente
ao mesmo tempo sois sonoros e calados.

Pesados, dais no entanto às pompas do ambiente,
onde há ricos painéis entre florões dourados,
a mais aérea graça; e o os olhos deslumbrados
sentem que os cega o vosso encanto reluzente.

Que o silêncio ao redor guarde a fragilidade
translúcida que sois: e ouçam-se quase a medo
os rumores quaisquer que em torno a voz se formem!

Toquem-vos docemente a sombra, a claridade...
Nem se turbe jamais, ó lustres, o segredo
das vibrações que em vós musicalmente dormem!


Publicado no Jornal da Manhã (Porto Alegre, 1908).

In: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1987. v.2, p.1058


ESTÂNCIAS DE UM PEREGRINO

Sobre o Cisne de Stéphane Mallarmé - Eduardo Guimaraens

Un gygne d´autrefois se souvient que c´est lui.
Stéph. Mallarmé


Um Sonho existe em nós como um cisne num lago
de água profunda e clara e em cujo fundo existe
outro cisne alvo e triste, e ainda mais alvo e triste
que a sua forma real de um tom dolente e vago.

Nada: e os gestos que tem, de carícia e de afago,
lembram da imagem tênue, onde a tristeza insiste
por ser mais alva, a graça inversa em que consiste
a dolente mudez de um espelho pressago.

Um cisne existe em nós como um sonho de calma,
plácido, um cisne branco e triste, longo e lasso
e puro, sobre a face oculta de nossa alma.

E a sua imagem lembra a imagem de um destino
de pureza e de amor que segue, passo a passo,
este sonho imortal como um cisne divino!



O Cisne e o Lago - Eduardo Guimaraens

Um cisne de suave e soberba plumagem,
à flor de um lago azul onde a manhã se espelha,
segue surpreso o cisne irreal que o semelha
ao fundo d'água, e feito à sua própria imagem.

Verdes, ao derredor, uma ou outra ramagem
refletidas. E na onda a luz do sol centelha.
Desde a rósea alvorada à véspera vermelha,
sente o cisne a enlevá-lo essa branca miragem.

Pende às vezes o colo esbelto longamente
para o cristal: e beija um fantasma que mente,
até que baixe a noite e as suas penas tisne.

Tremem os caniçais... os astros despontaram...
E fica o cisne só, como as almas que amaram

e para quem o amor foi a sombra de um cisne.




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