A
infância na poesia de Bandeira:
(Recursos
e aspectos poéticos)
(Por
Rafael Vespasiano Ferreira de Lima)
Manuel
Bandeira é um escritor de indiscutível qualidade estética e de fundamental
importância para a poesia brasileira. Bandeira é um dos maiores poetas
modernistas brasileiros, com participação indireta na Semana de Arte Moderna de
1922, já que teve seu poema Os Sapos
lido em sessão, pelo poeta Ronald de Carvalho, mas o escritor pernambucano não
se fez presente às sessões. Assim, Bandeira tem importância para a explosão
modernista no Brasil.
Algumas
considerações preliminares fazem-se necessárias para melhor entender o objeto
de estudo. O presente ensaio pretende abordar a poesia bandeiriana, de tom
emocional e confessional, mais especificamente poemas que têm como tema a
infância.
Bandeira
é um poeta modernista, mas ainda devedor das estéticas anteriores, em especial,
do Romantismo, pois sua poesia é marcada pelo tom confessional e emocional
típico dos românticos, porém sua poética traz muitas inovações modernistas.
Sendo assim, não se pode falar em simples neoromantismo, contudo, percebe-se um
poeta ainda marcado por características das escolas literárias anteriores.
O
crítico Luiz Costa Lima afiança que
Em
Manuel Bandeira, a emocionalidade é pouco ou quase nada reprimida. Palavras e
sentimentos confluem. Aquelas são policiadas, a ironia insinua-se entre as
confissões, mas, do ponto de vista da forma, são as emoções individuais que
ditam o comportamento da composição.[1]
Nessa
afirmação é importante perceber que a emocionalidade flue nos poemas
bandeirianos, mas é policiada pelo
recurso estilístico da ironia. E, a ironia é uma das caracterísitcas que dão
modernidade à obra de Bandeira, pois seus poemas, na grande maioria, são de tom
emotivos e confessionais, mas para não resvalar no sentimentalismo derramado
dos românticos, o poeta faz uso da ironia para represar os excessos
sentimentais.
Após
verificar-se a relevância do poeta, depois de apresentar-se a proposta do
ensaio e a modernidade de Bandeira, preliminares que o ensaísta achou
necessárias para justificar o objeto de estudo, passa-se, então, a análise.
O
tema da infância, na poesia de Manuel Bandeira, é uma luta subjetiva em
recuperar o tempo e o espaço passados. A infância é, ao mesmo tempo, destacada
como perdida e reconquistada, constituindo uma dinâmica lírica de perdas e
reencontros. A infância de Bandeira é (re)-construída, junto ao leitor, ao
mesmo tempo que o eu-lírico a procura e a desvela.
Um
poema emblemático do afirmado acima é Versos
de Natal que segue:
“Espelho,
amigo verdadeiro,
Tu
refletes as minhas rugas,
Os
meus cabelos brancos,
Os
meus olhos míopes e cansados,
Espelho,
amigo verdadeiro,
Mestre
do realismo exato e minucioso,
Obrigado,
obrigado!
Mas
se fosses mágico,
Penetrarias
até ao fundo desse homem triste,
Descobririas
o menino que sustenta esse homem,
O
menino que não quer morrer,
Que
não morrerá senão comigo,
O
menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa
ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.”[2]
Poema
que faz parte do livro Lira dos
Cinquent´anos, publicado em 1940. O poema é datado de 1939. Trata-se de um
poema curto, tem duas estrofes, de sete versos cada. O poema funciona como um
espelho, pois reflete dois opostos do eu.
O primeiro eu é apresentado na primeira estrofe, é um eu que vivencia a velhice, percebida pelos vocábulos rugas, cabelos brancos, olhos míopes e
cansados. No final da estrofe, o eu
agradece o espelho, amigo verdadeiro,
que o faz perceber sua realidade caduca.
Já a segunda estrofe começa com uma palavra
adversativa, pois nessa estrofe será revelado o outro eu, em uma imagem especularmente invertida, que revela o menino que
ainda existe nesse homem velho e triste, O
menino que não quer morrer. Nos dois últimos versos dessa estrofe, o menino
prevalece sobre o velho, já que a construção lírica valoriza aquele que Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás
da porta. O menino ganha importância sobre o eu da primeira estrofe. O diminutivo chinelinhos ainda confere maior importância ao eu da infância, pelo seu caráter afetivo e carinhoso, portanto, o eu valoriza sua infância.
A
estudiosa da obra bandeiriana Yudith Rosenbaum[3] afirma que a infância é,
para o poeta, o espaço da inocência, da ingenuidade, da simplicidade e da
plenitude. Sendo assim, a infância, em Bandeira, possui uma aura de magia e de
teor sagrado. “Ela é mais do que nunca um verdadeiro paraíso perdido que teima
em desaparecer.”[4].
Percebe-se a relevância de tais afirmações, se aplicá-las ao que foi analisado,
anteriormente, a respeito do poema Versos
de Natal.
Um
recurso muito usado por Bandeira, em seus poemas, para abordar a infância, é a
memória. Esta serve como evocação do que há de mais recôndito no espírito do
poeta e revive cantos biográficos escuros, porém nunca esquecidos. Estes têm um
aspecto mítico, como atesta um fragmento do Itinerário
de Pasárgada, escrito em 1954, “(...) Quando comparo esses quatro anos de
minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico
espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra
distante.”[5]
A
vida adulta de Bandeira, torna-se, assim, um aceno recorrente ao passado, à
infância, a esse passado que hoje está desaparecido na realidade, porém vívido
no imaginário do poeta e “reatualizado enquanto ausência que se materializa na
poesia.”[6]
Um
poema que pode ser considerado um resumo dessa vertente poética de Manuel
Bandeira, chama-se, sintomaticamente, Infância,
incluído no livro Belo, Belo, de 1948. É um poema longo, de 65 versos,
mas um poema-síntese dessa temática bandeiriana, qual seja: rememorar a
infância. Não analisar-se-á o poema em maiores detalhes, dado o limite proposto
do ensaio, porém, pode-se afirmar que a infância serve nesse poema, e em outros
de igual temática, como um instrumento para o poeta reconhecer-se na criança
que foi e reequilibrar-se no ato reconciliador da reminiscência. Episódios e
personagens serão relembrados no intuito de serem trazidos novamente ao
convívio do poeta.
Pode-se
abordar, agora, outro poema que serve para exemplificar o exposto, mas que
também trata de outro tema caro à obra bandeiriana, qual seja: a finitude da
vida. Trata-se do poema Profundamente (Libertinagem, 1930) que segue:
“Quando
ontem adormeci
Na
noite de São João
Havia
alegria e rumor
Estrondos
de bombas luzes de Bengala
Vozes
cantigas e risos
Ao
pé das fogueiras acesas.
No
meio da noite despertei
Não
ouvi mais vozes nem risos
Apenas
balões
Passavam
errantes
Silenciosamente
Apenas
de vez em quando
O
ruído de um bonde
Cortava
o silêncio
Como
um túnel.
Onde
estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E
riam
Ao
pé das fogueiras acesas?
-
Estavam todos dormindo
Estavam
todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando
eu tinha seis anos
Não
pude ver o fim da festa de São João
Porque
adormeci
Hoje
não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha
avó
Meu
avô
Totônio
Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde
estão todos eles?
-
Estão todos dormindo
Estão
todos deitados
Dormindo
Profundamente.”[7]
É um poema que não possui esquema métrico
definido e nem esquema rímico determinado. Para Davi Arrigucci Jr., Bandeira
adotou “(...) uma construção muito livre e irregular, desde logo ostensiva, o
poema, quando lido detidamente, vai mostrando uma série de similaridades e
equivalências na sua organização geral e em seus componentes (...)”[8].
Existem
dois blocos distintos de versos, separados pelo asterisco, e que se contrapoem
como “cenas semelhantes em tempos diferentes, aproximadas espacialmente em
confronto direto.”[9],
constituindo assim um paralelismo contrastivo.
Na
primeira estrofe, o eu adormece
enquanto ocorriam festejos de São João nas ruas, Quando ontem adormeci/Na noite de São João/Havia alegria e rumor. O
poema inicia-se com uma fórmula liminar típica da narrativa, o advérbio de
tempo quando, que acaba por exigir
uma complementação, a qual dá-se por meio de uma enumeração caótica das
sensações e impressões da cena festiva: “Estrondos
de bombas luzes de Bengala/Vozes cantigas e risos/Ao pé das fogueiras acesas.”
Na
segunda estrofe, o eu desperta e não há mais “mais vozes nem risos”, “Apenas balões/ Passavam
errantes/Silenciosamente”. Esse silêncio provoca no eu um
momento de reflexão que só é interrompido, às vezes, pelo “ruído
de um bonde”, que “cortava o silêncio”.
Nessa reflexão, o eu pergunta-se “Onde
estavam os que há pouco/Dançavam/Cantavam/E riam/Ao pé das fogueiras acesas?”.
Conclue, então, que ao fim dos festejos, todos foram dormir e, agora, “Estavam todos
deitados/Dormindo/Profundamente.” O dormir, nesse caso, tem sentido de
sono, de repouso noturno. Faz-se necessário o registro, pois essa construção
será retomada no poema mais à frente, mas com outra conotação, reforçando a
ideia de “paralelismo constrativo” citada acima.
No
segundo bloco de versos, o eu remota ao seu passado mais distante, “Quando eu tinha seis anos”. A partir
desse verso, inicia-se a lembrança do São João que o eu-lírico vivenciou aos
seis anos, não propriamente a rememoração dos fatos ocorridos, mas a
reminiscência de que “Não pude ver o fim
da festa de São João/Porque adormeci.” E, o eu de agora, ao perceber que “Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo.”,
dá-se conta que as pessoas enumeradas a seguir no poema estão todas mortas
e, ele é o vivente restante da família. Aqui foi usado o recurso clássico da
literatura, o Ubi sunt?, expressão
latina que significa algo em torno de “Onde estão os que aqui estavam antes?”. “Estão todos
deitados/Dormindo/Profundamente.” O dormir aqui tem significado de morte e
o advérbio profundamente reforça esse sentido, denotando silêncio sepulcral. Aqui,
verifica-se a a ideia do “paralelismo contrastivo” já referida.
Fez-se
essa análise que resvalou para o tema da finitude da vida, temática também relevante
na obra de Manuel Bandeira, mas que se fez necessária, pois, pelo exposto verifica-se
a importância do passado na vida adulta do eu, agora confundindo-se com o eu do
poeta. No poema analisado, fica evidente a relevância da infância na formação
do poeta. O eu de agora valoriza positivamente sua infância, chegando a
enumerar pessoas desconhecidas, comuns, mas que são relevantes em sua história
biográfica/pessoal, parentes e pessoas importantes de sua infância e em sua
formação como indivíduo.
E,
agora, abordar-se-á mais um recurso que surge como forma de expressão e
abordagem da infância, a memória involuntária típica do romance proustiano. Para
Rosenbaum:
O
que esta memória resgata não é a chamada experiência vivida – que pode ser
captada pela consicência e acaba sendo ‘estéril para a poesia’. O material
involuntário, e por isso poético, parece descansar nas malhas do inconsciente e
as reminiscências do passado trariam as marcas dessa inserção.[10]
Walter
Benjamin, citado por Sergio Paulo Rouanet[11], afirma que, a memória
involuntária é a forma pela qual o escritor reage à atrofia da experiência
moderna, anomalia esta que seria a falta de tempo do homem moderno de se
lembrar. Benjamin elege Proust como o romancista para reagir à essa anomalia
moderna.
Em
Proust,a imaginação operava sobre os tempos “passado” ou “futuro”, quase nunca
sobre o “presente”. Álvaro Lins, ao estudar a técnica do romance de Proust,
também fornece subsídios que servem para a elucidação da obra bandeiriana, pelo
viés que está sendo abordado neste ensaio. Álvaro Lins asservera que “tanto os
seres como as coisas só principiam também a existir de fato quando adquirem uma
‘existência individual’ na imaginação”[12]
Álvaro
Lins prossegue afirmando “(...) a realidade somente existe depois de recriada
pela memória, e porque o calendário dos fatos nem sempre coincide com o
calendário dos sentimentos.”[13] Segundo o mesmo crítico,
em Proust, as recordações são processadas e levantadas mediante dois processos:
um, o da memória involuntária, quando sonhava e elaborava; o outro, o da
memória voluntária, quando escrevia e compunha. “É como se ele houvesse de
lembrar-se de uma lembrança, estabelecendo no ato de escrever uma recordação de
outra recordação.”[14] Ou seja, uma memória que
cria e elabora, uma inteligência, que coordena e compõe.
A
poesia de Bandeira vê como o auge (a aurora) da vida do poeta, a sua infância,
um tempo mítico perdido. Manuel Bandeira recria sua infância como um mundo
morto, reproduzindo-a como um passado que se reconquista pela memória e pela
imaginação. Rosenbaum afirma:
Esta
vida anterior não aparece na obra apenas como instância biográfica e sim pela
recriação da memória. Não importa para o poeta a exatidão histórica, mas o
tecido mesmo da recordação. (...) A reconstituição desses destroços rememorados
são sinais da perda de uma felicidade possível, ou mesmo vivida em certos
momentos[15]
A
poesia torna-se uma síntese do que ficou inacabado, salvando-o do esquecimento
e da distância. “(...) É como ruína de um possível vivido que as lembranças
ascendem ao espaço poético e se incorporam à vida do adulto.”[16] Dessa forma, o poeta
desloca para as imagens, objetos ou seres – desprentensiosos (o enumerar das
pessoas da infância do poeta em Profundamente),
inocentes (a ave do poema Cotovia, Opus 10, 1952) ou inusitados – toda a
carga afetiva de um mundo anterior e fugidio.
Em
Elegia de Verão (Opus 10, 1952), são
as cigarras que trazem o som do tempo perdido, como o sabor de um bolo madeleine do romance de Marcel Proust. O
poema de Bandeira é, acima de tudo, um apelo bem humorado para a volta da
infância:
“O
sol é grande. Ó coisas
Todas
vãs, todas mudaves!
(Como
esse “mudaves”,
Que
hoje é “mudáveis”
E
já não rima com “aves”.)
O
sol é grande. Zinem as cigarras
Em
Laranjeiras.
Zinem
as cigarras: zino, zino, zino...
Como
se fossem as mesmas
Que
eu ouvi menino.
Ó
verões de antigamente!
Quando
o Largo do Boticário
Ainda
poderia ser tombado.
Carambolas
ácidas, quentes de mormaço;
Água
morna das caixas-d´água vermelhas de ferrugem;
Saibro
cintiliante...
O
sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis,
Não
sois as mesmas que eu ouvi menino.
Sois
outras, não me interessais...
Dêem-me
as cigarras que eu ouvi menino.”[17]
As
duas primeiras estrofes marcam o presente da enunciação. As cigarras zinem em
Laranjeiras. As coisas estão ocorrendo no presente do eu. Porém, o ruído das
cigarras de agora faz o eu-lírico remontar ao passado, à sua infância: “Zinem as cigarras: zino, zino, zino.../Como
se fossem as mesmas/Que eu ouvi menino.”
Na
estrofe seguinte, o eu rememora os verões de antigamente, numa verdadeira
elegia, em um clima de nostalgia e de saudosismo, que exaltam o verão e a
infância remota: “Ó verões de
antigamente!/Quando o Largo do Boticário/Ainda poderia ser tombado./Carambolas
ácidas, quentes de mormaço;/Água morna das caixas-d´água vermelhas de ferrugem;/
Saibro cintiliante...”.
Porém,
na penúltima estrofe, o eu apercebe-se do presente em que vive e que as
cigarras de agora não são as mesmas de outrora: “Não sois as mesmas que eu ouvi menino.”, e, por isso, não
interessa a ele: “Sois outras, não me
interessais...”, e, finaliza o poema, com um verso isolado, imperativo e
reinvidicatório: “Dêem-me as cigarras que
eu ouvi menino.”
A
perda das ilusões marca o abismo entre um eu que envelhece em um mundo de
contínuas transformações e o eu da infância ingênuo e puro. O poema apresenta,
na visão de Rosenbaum, um sujeito ‘inconformado’ com seu próprio crescimento.
“Entre as cigarras e o poeta é mais lógico afirmar que o sujeito mudou e não as
cigarras. (...) O adulto não é mais capaz de recuperar o zinir que a criança
ouvia. A grande transformação é do próprio sujeito.”[18]
Por
isso mesmo, mais uma vez a infância prevalece sobre a vida adulta do poeta,
aquela tem um valor mais positivo que a vida adulta, pois é marcada pela
ingenuidade, inocência e pureza, enquanto a fase adulta é caracterizada pela
velhice caduca.
Rosenbaum conclue que a poesia bandeiriana é,
marcadamente, melancólica e, tem, na experiência da ausência, uma enorme
energia criativa poética. Pois, por ela, o escritor representa e recria um
mundo e tempo perdidos, atualizando-os, via recordações e evocações – fatos,
cenas, personagens e sensações já findas. Por esse meio, Manuel Bandeira
encontra formas sadias de confrontar-se com suas perdas e para uma elaboração
mais do que libertadora do luto.
A
linguagem poética de Bandeira é a presentificação do ausente, no caso abordado
neste ensaio, a presentificação da infância passada e perdida, que é
reconstruída, poeticamente, com a recomposição e o preencher das lacunas e das
incompletudes surgidas com a passagem do tempo. Esta reconstrução poética da
infância é marcada por lembranças e esquecimentos típicos do processo
mnemônico, que é desenvolvido na construção lírica.
O
presente ensaio abordou a temática da infância na poesia de Manuel Bandeira. E
para isso teve que adentrar (ainda que de maneira introdutória) em alguns
recursos usados pelo poeta para desenvolver esse aspecto de sua poética. No
caso, do primeiro poema analisado, Versos
de Natal, o recurso estudado foi o da memória da infância, apresentada de
forma mais explícita.
No
segundo poema, Profundamente, apresentamos
a técnica do Ubi sunt?, ainda que a
grosso modo, introduziu-se também outro tema da poesia bandeiriana, a finitude
da vida, além, lógico, de mostrar-se a relevância da infância para o poeta.
No
terceiro e último poema analisado, Elegia
de Verão, foi apresentada a técnica proustiana da memória involuntária.
Além dos três poemas analisados, fez-se referência a dois outros poemas que
também têm como temática a infância, trata-se de Cotovia e Infância, dois poemas que poderiam ser estudados e
analisados mais detidamente, mas por exigências acadêmicas e de espaço não foi
possível, ficando para estudos e ensaios futuros.
A
poesia de Bandeira não se esgota na temática da memória da infância, existem
outros temas e aspectos, que podem ser estudados, porém, o presente ensaio
abordou esse viés da obra bandeiriana, por saber que é um dos mais
consistentes, criativos e originais de sua poética. Certo de não esgotar o
estudo e o tema, novas propostas e novas realizações acadêmicas poderão ocorrer
para aprofundar o tema ou ir em outras direções da poesia bandeiriana, uma
poesia moderna, original e universal.
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Estudos
dos livros A cinza das horas, Carnaval, O
ritmo dissoluto,
Manuel
Bandeira
Na
obra A cinza das horas, Bandeira
ainda está muito preso às tradições clássicas de métrica (preferência pelos
versos de sete sílabas e pelos alexandrinos). Ainda não ocorre o processo de
despersonalização em sua lírica, característica típica da poética moderna.
Preferência
por imagens crepusculares que espelham os estados d´alma do eu-lírico:
melancolia e solidão. Várias referências à Lua, como reflexo da melancolia e
solidão do “eu”.
A cinza das horas,
de Manuel Bandeira é um livro à parte de sua poética, esta analisada como um
todo.
No
livro, Carnaval, o poeta já aborda
mais os temas do cotidiano, em específico das festas carnavalescas. Figuras
típicas do carnaval aparecem nos poemas: Arlequim, Colombina e Pierrot.
O
processo de despersonalização (típico da lírica moderna) aparece nos poemas
numa recorrência maior, porém, em alguns poemas, prevalece os estado d´alma de
um “eu”-lírico.
Poemas
de conotação/tom sensual e erótica são constantes, até pelo título da obra.
Os
poemas, contudo, ainda, se prendem muito às tradições métricas clássicas, em
termos formais, o poeta é ainda conservador. Mas, o tema, Carnaval, é abordado
por um viés moderno, mais sensual e erótico, cotidiano.
Em
O ritmo dissoluto, ocorre um
rompimento brusco do poeta para com as tradições formais de métrica e rima. Os
poemas são, em sua maioria, marcados por versos livres e brancos. A
despersonalização é evidente e marcante.
Os
temas são assuntos do cotidiano (até de conotação de crítica social, vide
“Meninos carvoeiros”). O tema da infância aparece em “Balõezinhos” e em “O
menino doente”, sempre tratado, poeticamente, de forma corriqueira e que
ressalta o cotidiano dessa temática.
Têm-se
também poemas de tom religioso, porém este tema (religião/religiosidade) é
desconstruído pelo poeta (característica do modernismo), vide “Balada de Santa
Maria Egipcíaca”. Neste poema, o caráter virginal, típico de uma santa é confrontado
(desconstruído) pelo aspecto sensual da própria santa.
O
título da obra, O ritmo dissoluto, é
sintomático, da evolução da poética bandeiriana rumo à uma lírica moderna.
Ambas marcadas pela despersonalização e pelos versos brancos e livres.
Pode-se,
portanto, colocar à parte a primeira obra de Bandeira. Já que, A cinza das horas, é um livro ainda
muito preso às tradições clássicas de lirismo (no âmbito formal). Contudo, já
aparece o tema da rememoração da infância em poemas como “Cartas de meu avô”.
E, sem contar, as lembranças do eu-lírico em relação à sua irmã e à sua mãe.
As
outras duas obras, Carnaval e O ritmo
dissoluto, podem ser agrupadas, provisoriamente, num grupo da poesia
bandeiriana, em que já há predomínio dos temas do cotidiano; de poemas de certo
tom erótico e sensual; e de poemas marcados pela despersonalização,
característica da lírica moderna. Aquela já se faz presente e bastante
recorrente nos livros acima referidos de Manuel Bandeira.
LIBERTINAGEM
– MANUEL BANDEIRA
Os
poemas desse livro têm certo tom de sensualismo e lascívia. Eles são marcados
pela despersonalização, mas ainda há poemas enunciados por um eu-lírico.
Poemas, em sua maioria, de versos livres e brancos. Os poemas apresentam
aspectos de uma brasilidade, ou seja,
de características típicas do Brasil. Linguagem coloquial e temas do cotidiano.
Uso de diminutivos.
Poemas:
“Não sei dançar”; “Pensão familiar”; “Camelôs”; “Poética”; “Mangue”; “Belém do
Pará”; “Evocação do Recife”; “Profundamente”.
ESTRELA
DA MANHÃ – MANUEL BANDEIRA:
Nesse
livro, aparecem nos poemas, também aspectos de lascívia e sensualidade. Certo
tom humorístico. Temas do cotidiano. Aspectos de brasilidade. Linguagem
coloquial. Versos livres e brancos. Despersonalização.
Poemas:
“Cantiga”; “Boca de forno”; “Estrela da manhã”; “Balada das três mulheres do
sabonete Araxá”; “Trem de ferro”.
Lira
dos cinquent´anos – Manuel Bandeira:
Poemas
intimistas, marcados pelo “eu”. Poemas de tom solitário e de recordações.
Lembranças e rememorações. Outra temática que também aparece bastante nesse
livro é a lírico-amorosa e a de poemas em homenagem a outros poetas e artistas.
Lembranças
da vida. Certo balanço da vida do “eu”. Venturas e desventuras ao longo da
vida. Vida marcadamente: melancólica, solitária.
Poemas:
“O martelo”; “Versos de Natal”; “A estrela”; “Belo Belo”; “Testamento”;
“Pardalzinho”; “Peregrinação”; “Velha chácara”.
No
poema, “Pardalzinho”, o tema da infância se sobressai.
Já
no poema, “Velha Chácara”, o “eu” rememora a sua vida (50 anos?).
Podem-se
agrupar em um mesmo grupo, os dois livros, Libertinagem
e Estrela da manhã, pelo fato de apresentarem poemas marcados pela
sensualidade e pela lascívia; além de certa brasilidade que é ressaltada nos
poemas de ambos os livros. Sensualismo, lascívia, aspectos que, contudo, já
apareceram no segundo livro de Bandeira, Carnaval.
Já Lira dos cinquent´anos, fica à
parte, tendo como temática primordial a memória, as lembranças e rememorações,
uma poesia mais intimista do “eu-lírico”.
Porém
esses três livros, já apresentam o predomínio dos versos brancos e livres. E
apresenta em muitos poemas, o processo da despersonalização.
A cinza das horas, à
parte (preso, ainda, às tradições clássicas formais de lírica); Carnaval, O ritmo dissoluto e Libertinagem, num
grupo (despersonalização, versos livres e brancos; lascívia e sensualismo). E Estrela da manhã e Lira dos cinquent´anos, em
outro grupo, dado o tom intimista de ambos os livros e da já recorrência de
poemas que fazem uso do recurso mnemônico.
ESTRELA DA MANHÃ,
OPUS 10 – MANUEL BANDEIRA
Estrela da manhã é
uma obra que apresenta, de maneira geral, poemas de tom melancólico.
“Estrela
da manhã”: poema que dá título à obra é uma poesia que simboliza o desejo do
eu-poético em “viver a vida” em sua plenitude. Possível interpretação. Poema é
finalizado com certo tom esperançoso, porém sóbrio.
“A
filha do rei”: apresenta uma “des-romantização”, anti-lirismo do tema da
“mulher amada”, por meio do uso do prosaico poético, cotidiano.
“Contrição”:
o poema faz referência a uma voz, a voz da infância do eu, que “poderia”
mostrar ao mesmo “a vida boa”, a qual não veio com o passar do tempo. Possível
interpretação.
Opus 10 trata-se
de um livro, no qual aparecem muitos poemas que têm como característica o
rememorar, o lembrar de tempos mais alegres do eu-lírico, os quais foram
vividos, na maioria das vezes, no período da infância.
“Boi
morto”: melancolia apresentada pelo eu do presente; a imagem do “boi morto”
simboliza a melancolia atual. Lendo as memórias do poeta, o leitor toma
conhecimento que essa imagem do “boi morto” foi vivenciada na infância real do
escritor. A imagem tornou-se tão forte, que marcou o poeta até em sua produção
lírica, no futuro. Uma imagem que deixou o “menino Bandeira” atônito e o
eu-lírico, no poema em tela, também “atônito”; e, metaforicamente, é uma imagem
que expressa a melancolia do eu
“profundamente”, para usar termos
bandeirianos.
“Cotovia”:
a imagem da cotovia, no presente da enunciação, é o estopim deflagrador para o
eu-lírico rememorar “a aurora da minha vida” (infância), ligada aos tempos
vividos em “Recife”.
“Elegia
de Verão”: as cigarras “promovem” o processo mnemônico do eu. As cigarras que
zinem no presente da enunciação, levam o eu-poético a rememorar a infância e a
lembrar das cigarras que ouvia quando menino (“Largo do Boticário”). E, o eu
declara preferência pelas cigarras do passado, pois estas são correlacionadas
pelo eu-lírico, intuitivamente, com as “alegrias” vivenciadas nos verões do
tempo remoto, quando era menino, (na “aurora da vida”, para usar expressão do
mesmo poeta, a qual aparece no poema “Cotovia”, para simbolizar a infância).
“Natal
sem sinos”: o eu do passado viveu “um Natal com sinos”, com sons, que
metaforicamente representa a felicidade do eu, na infância. Como contraponto, o
eu do presente faz referência à vivência de “um Natal sem sinos”, vivido em
silêncio, conotando simbolicamente melancolia do “eu-adulto”.
Estrela da manhã
e Opus 10 formam de certa forma um
grupo homogêneo de livros que apresentam, de maneira geral, poemas que
expressam sentimentos melancólicos e saudosistas, com preferência pelo
rememorar da infância, como o tempo da “aurora da vida”, expressão bandeiriana.
Tudo isso pelo viés de uma poética que faz uso do cotidiano como forma de
demonstrar, poeticamente, aqueles sentimentos; um prosaísmo poético que acaba
por transparecer, por conseguinte nos poemas dessas obras. Aqueles dois livros
podem ser reunidos, dessa forma, em um grande grupo junto com Libertinagem, Lira dos cinquent´anos e Belo
Belo.
[1]
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira:
(Mário, Drummond e Cabral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. p.9.
[2] BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993.
[4] Idem, p.42.
[5] Itinerário de Pasárgada, em Manuel Bandeira Poesia completa e
prosa, vol. único, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985, p.35.
[7] BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993.
[8] ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de
Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.206.
[9] Idem,
ibdem.
[10] ROSENBAUM, Yudith. Manuel Bandeira: uma poesia da
ausência. São Paulo: Imago, 1993. p.47.
[11] ROUANET, Sergio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em
Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. Apud ROSENBAUM, Yudith, 1993. p.157.
[12] LINS, Álvaro. A técnica do romance em Marcel Proust. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968. p. 119.
[13] Idem, p.123-124.
[15] ROSENBAUM, Yudith. Manuel Bandeira: uma poesia da ausência.
São Paulo: Imago, 1993. p.158-159.
[17] BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993.
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