ÁLVARES
DE AZEVEDO (POÉTICA DO ESCRITOR MALDITO):
(POR
RAFAEL VESPASIANO FERREIRA DE LIMA)
ü Poética:
As poesias azevedianas
postulam, segundo Cilaine Alves (1998), princípios estéticos antinômicos. Na
Lira dos vinte anos, apresenta-se um conjunto poético, que forma um “sistema
estético por meio da justaposição de concepções duais e antagônicas.” (ALVES,
1998, p. 69). Ora o eu-lírico assume uma perspectiva idealista e confiante, ora
volta-se para a autonegação. O sentimento amoroso também dual: divide-se entre
volúpia erótica e a negação deliberada do ato sexual.
Além dessas ambiguidades, o tempo
apresenta-se na poesia de Álvares de Azevedo, da seguinte maneira: enquanto o
passado é visto com o sentimento de perda e nostalgia, já o presente é quase
sempre objeto de negações e o futuro é concebido como um feixe de expectativas.
Obra bem particular,
“individualidade poética de Álvares de Azevedo, unificando-a (obra) num projeto
próprio”. (ALVES, 1998, p. 70). Renega o ambiente cultural em que este se
desenvolve. Pode-se, segundo Alves (1998), dividir essa obra em dois momentos:
um inicial, em que a consciência poética, narcisista, alheia a qualquer contato
com a realidade que a cerca, procura fundamentar e regulamentar os poemas na
busca de unificação e ascensão da alma a reinos transcendentais; e um segundo
que – “presente na declaração do poeta segundo a qual os pressupostos de
natureza transcendental seriam “interessados” e “monótonos” por visar
unicamente à glória poética – desemboca na ruptura com o padrão inicial.”
(ALVES, 1998, p. 70).
·
Lírica Amorosa e Sentimentos
amargos/céticos; Dualidade dinâmica (“Binomia”, denominação atribuída pelo
próprio poeta à sua poética). Que se processa pela Ironia. A Ironia é utilizada
como exercício de reflexão artística e crítica, servindo para derrubar verdades
universais; e na busca do absoluto;
·
Poemas metalinguísticos: refletem sobre o
próprio fazer poético;
·
BINOMIA: GROTESCO E SUBLIME;
BAIXO E ALTO;
TRANSCENDÊNCIA E EMPIRIA;
BELO E DISFORME.
·
Critica a idealização indianista; o
pitoresco/cor local dos primeiros românticos brasileiros. (Instinto de nacionalidade
– Machado de Assis).
LIRA DOS VINTE ANOS
“São
os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do
sabiá não têm a doçura dos
seus
cânticos de amor.
É
uma lira, mas sem cordas; uma primavera, mas sem flores; uma coroa de folhas,
mas sem viço.
Cantos
espontâneos do coração, vibrações doridas da lira interna que agitava um sonho,
notas que o vento
levou
— como isso dou a lume essas harmonias.
São
as páginas despedaçadas de um livro não lido...
E
agora que despi a minha musa saudosa dos véus do mistério do meu amor e da
minha solidão, agora que ela
vai
seminua e tímida, por entre vós, derramar em vossas almas os últimos perfumes
de seu coração, ó meus amigos,
recebei-a
no peito e amai-a como o consolo, que foi, de uma alma esperançosa, que depunha
fé na poesia e no amor —
esses
dois raios luminosos do coração de Deus.” (AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2000. P. 120).
PRIMEIRA
PARTE:
Na primeira parte, o poeta ainda demonstra a certeza
“de que é possível alimentar eternamente a ilusão e os sonhos, cantando a
esperança de fundir, através do amor, a alma do sujeito num reino Absoluto”
(ALVES, 1998, p. 86).
Sonhando
“Hier,
la nuit d'été, que nous prêtait ses voiles,
Était digne de toi, tant elle avait d'étoiles!”
VICTOR
HUGO
“Na
praia deserta que a lua branqueia,
Que
mimo! que rosa! que filha de Deus!
Tão
pálida... ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco
nos lábios os hálitos meus!
Não
corras na areia,
Não
corras assim!
Donzela,
onde vais?
Tem
pena de mim!
A
praia é tão longa! e a onda bravia
As
roupas de gaza te molha de escuma...
De
noite, aos serenos, a areia é tão fria...
Tão
úmido o vento que os ares perfuma!
És
tão doentia...
Não
corras assim...
Donzela,
onde vais?
Tem
pena de mim!
A
brisa teus negros cabelos soltou,
O
orvalho da face te esfria o suor,
Teus
seios palpitam — a brisa os roçou,
Beijou-os,
suspira, desmaia de amor!
Teu
pé tropeçou...
Não
corras assim...
Donzela,
onde vais?
Tem
pena de mim!
E
o pálido mimo da minha paixão
Num
longo soluço tremeu e parou,
Sentou-se
na praia, sozinha no chão,
A
mão regelada no colo pousou!
Que
tens, coração
Que
tremes assim?
Cansaste,
donzela?
Tem
pena de mim!
Deitou-se
na areia que a vaga molhou.
Imóvel
e branca na praia dormia;
Mas
nem os seus olhos o sono fechou
E
nem o seu colo de neve tremia...
O
seio gelou?...
Não
durmas assim!
O
pálida fria,
Tem
pena de mim!
Dormia:
— na fronte que níveo suar...
Que
mão regelada no lânguido peito...
Não
era mais alvo seu leito do mar,
Não
era mais frio seu gélido leito!
Nem
um ressonar...
Não
durmas assim...
O
pálida fria,
Tem
pena de mim!
Aqui
no meu peito vem antes sonhar
Nos
longos suspiros do meu coração:
Eu
quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu
colo, essas faces, e a gélida mão...
Não
durmas no mar!
Não
durmas assim.
Estátua
sem vida,
Tem
pena de mim!
E
a vaga crescia seu corpo banhando,
As
cândidas formas movendo de leve!
E
eu vi-a suave nas águas boiando
Com
soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas
vagas sonhando
Não
durmas assim...
Donzela,
onde vais?
Tem
pena de mim!
E
a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava
tão branca no límpido véu...
Nem
mais transparente luzia o luar
No
ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas
águas do mar
Não
durmas assim...
Não
morras, donzela,
Espera
por mim!” (AZEVEDO, Álvares de. Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 123-124.).
ESTUDO:
Nesses momentos, a emoção prevalece. Sentimentalismo.
Amor idealizado, porém, com alguns tons eróticos.
Porém, em determinado momento de Lira dos vinte anos, aparece um eu crítico “com o intuito de
questionar a validade dessa postura poética. Exausto de perseguir um ideal
inapreensível, ou melhor, desapontado, com a banalização do código poético
sentimental, Álvares de Azevedo concebe o Prefácio de Lira dos vinte anos”. (ALVES, 1998, p. 87). A autoconsciência
crítica do narrador assume a postura de autoanálise, renegando a primeira parte
da obra, por ser, segundo, o narrador, monótona (“monodia amorosa”).
SEGUNDA
PARTE – PREFÁCIO*:
“Cuidado, leitor, ao
voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo
visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica,
verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio,
sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: — a
pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel
esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que
a unidade deste livro funda-se numa binomia: — duas almas que moram nas cavernas
de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira
medalha de duas faces.
(...)
O que acontece? Na exaustão causada pelo
sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma
que ama e canta, porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema
dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade
e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico, sem ser monótono.
Digam e creiam o que quiserem: — todo o vaporoso da visão abstrata não
interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
(...)
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo
cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de
fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia
amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o
poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o
Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan — Don Juan que começa como Cain pelo amor
e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não
lesses essas páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! assim é
tudo!... até prefácios!”
*AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. P. 190-191
Um Cadáver de Poeta*
“Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!
Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!”
L. UHLAND
I
“De tanta inspiração e tanta vida,
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? — uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
— Resta um poeta morto!
Morrer! E resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões! no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...
II
Morreu um trovador! morreu de fome...
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso;
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d’oiro:
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura...
Todos o viram e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa...
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta?... um pobre louco
Que leva os dias a sonhar?... insano
Amante de utopias e virtudes
E, num templo sem Deus, ainda crente?
A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doUdos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício? ...
E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d’Est — um soberano,
Por não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta: apenas isso...
Procure para amar as poetisas.
Se na França a princesa Margarida,
De Francisco primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo... é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda...
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio, o trovador, teve os amores
— Novela até bastante duvidosa —
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira...
Que não admira que a um poeta amasse!
Por isso adoro o libertino Horácio:
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita...
Só pedia dinheiro, no triclínio
Bebia vinho bom... e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória,
— E essa deram-lhe à farta! — algum bispado?
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?
Deixem-se de visões, queimem-se os versos:
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poema não val meia princesa.
Um poema, contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido, fumando...
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras...
Faublas tem mais leitores do que Homero.
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De algum Álbum da moda umas quadrinhas:
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo.
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
Nem há negá-lo: não há doce lira,
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...
.....................................................................
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poeta, silêncio! — é este o homem?
A feitura de Deus! a imagem dele!
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!”
(...)
*AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. (p.192-202).
-ESQUEMA:
·
PERSONAGENS SOLITÁRIAS, MARGINALIZADOS
SOCIALMENTE DEVIDO À CONDIÇÃO DE “TROVADORES”;
·
METALINGUAGEM;
·
SUSPEIÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO POÉTICA PARA A
SOCIEDADE;
·
SUSPEIÇÃO DO RECONHECIMENTO DO MÉRITO DE
SUA POÉTICA;
· ( CONFERIR): NO ÂMBITO DE UMA NAÇÃO EM FORMAÇÃO –
INSTINTO DE NACIONALIDADE (MACHADO DE ASSIS).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Cilaine. O
belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica. São Paulo:
EdUSP: Fapesp, 1998.
AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
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