domingo, 9 de abril de 2017

ÁLVARES DE AZEVEDO (POÉTICA DO ESCRITOR MALDITO)


ÁLVARES DE AZEVEDO (POÉTICA DO ESCRITOR MALDITO):

(POR RAFAEL VESPASIANO FERREIRA DE LIMA)


ü  Poética:

As poesias azevedianas postulam, segundo Cilaine Alves (1998), princípios estéticos antinômicos. Na Lira dos vinte anos, apresenta-se um conjunto poético, que forma um “sistema estético por meio da justaposição de concepções duais e antagônicas.” (ALVES, 1998, p. 69). Ora o eu-lírico assume uma perspectiva idealista e confiante, ora volta-se para a autonegação. O sentimento amoroso também dual: divide-se entre volúpia erótica e a negação deliberada do ato sexual.
  Além dessas ambiguidades, o tempo apresenta-se na poesia de Álvares de Azevedo, da seguinte maneira: enquanto o passado é visto com o sentimento de perda e nostalgia, já o presente é quase sempre objeto de negações e o futuro é concebido como um feixe de expectativas.
Obra bem particular, “individualidade poética de Álvares de Azevedo, unificando-a (obra) num projeto próprio”. (ALVES, 1998, p. 70). Renega o ambiente cultural em que este se desenvolve. Pode-se, segundo Alves (1998), dividir essa obra em dois momentos: um inicial, em que a consciência poética, narcisista, alheia a qualquer contato com a realidade que a cerca, procura fundamentar e regulamentar os poemas na busca de unificação e ascensão da alma a reinos transcendentais; e um segundo que – “presente na declaração do poeta segundo a qual os pressupostos de natureza transcendental seriam “interessados” e “monótonos” por visar unicamente à glória poética – desemboca na ruptura com o padrão inicial.” (ALVES, 1998, p. 70).






·         Lírica Amorosa e Sentimentos amargos/céticos; Dualidade dinâmica (“Binomia”, denominação atribuída pelo próprio poeta à sua poética). Que se processa pela Ironia. A Ironia é utilizada como exercício de reflexão artística e crítica, servindo para derrubar verdades universais; e na busca do absoluto;
·         Poemas metalinguísticos: refletem sobre o próprio fazer poético;
·         BINOMIA: GROTESCO E SUBLIME;
                   BAIXO E ALTO;
                                    TRANSCENDÊNCIA E EMPIRIA;
BELO E DISFORME.
·         Critica a idealização indianista; o pitoresco/cor local dos primeiros românticos brasileiros. (Instinto de nacionalidade – Machado de Assis).

LIRA DOS VINTE ANOS



“São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos
seus cânticos de amor.
É uma lira, mas sem cordas; uma primavera, mas sem flores; uma coroa de folhas, mas sem viço.
Cantos espontâneos do coração, vibrações doridas da lira interna que agitava um sonho, notas que o vento
levou — como isso dou a lume essas harmonias.
São as páginas despedaçadas de um livro não lido...
E agora que despi a minha musa saudosa dos véus do mistério do meu amor e da minha solidão, agora que ela
vai seminua e tímida, por entre vós, derramar em vossas almas os últimos perfumes de seu coração, ó meus amigos,
recebei-a no peito e amai-a como o consolo, que foi, de uma alma esperançosa, que depunha fé na poesia e no amor —
esses dois raios luminosos do coração de Deus.” (AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. P. 120).

PRIMEIRA PARTE:
Na primeira parte, o poeta ainda demonstra a certeza “de que é possível alimentar eternamente a ilusão e os sonhos, cantando a esperança de fundir, através do amor, a alma do sujeito num reino Absoluto” (ALVES, 1998, p. 86).

Sonhando

“Hier, la nuit d'été, que nous prêtait ses voiles,
Était digne de toi, tant elle avait d'étoiles!”
VICTOR HUGO


“Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa! que filha de Deus!
Tão pálida... ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma...
De noite, aos serenos, a areia é tão fria...
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia...
Não corras assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor,
Teus seios palpitam — a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou...
Não corras assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

E o pálido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou,
Sentou-se na praia, sozinha no chão,
A mão regelada no colo pousou!
Que tens, coração
Que tremes assim?
Cansaste, donzela?
Tem pena de mim!

Deitou-se na areia que a vaga molhou.
Imóvel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu colo de neve tremia...
O seio gelou?...
Não durmas assim!
O pálida fria,
Tem pena de mim!

Dormia: — na fronte que níveo suar...
Que mão regelada no lânguido peito...
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um ressonar...
Não durmas assim...
O pálida fria,
Tem pena de mim!

Aqui no meu peito vem antes sonhar
Nos longos suspiros do meu coração:
Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu colo, essas faces, e a gélida mão...
Não durmas no mar!
Não durmas assim.
Estátua sem vida,
Tem pena de mim!

E a vaga crescia seu corpo banhando,
As cândidas formas movendo de leve!
E eu vi-a suave nas águas boiando
Com soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim...
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu...
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim...
Não morras, donzela,
           Espera por mim!” (AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 123-124.).

ESTUDO:
Nesses momentos, a emoção prevalece. Sentimentalismo. Amor idealizado, porém, com alguns tons eróticos.




Porém, em determinado momento de Lira dos vinte anos, aparece um eu crítico “com o intuito de questionar a validade dessa postura poética. Exausto de perseguir um ideal inapreensível, ou melhor, desapontado, com a banalização do código poético sentimental, Álvares de Azevedo concebe o Prefácio de Lira dos vinte anos”. (ALVES, 1998, p. 87). A autoconsciência crítica do narrador assume a postura de autoanálise, renegando a primeira parte da obra, por ser, segundo, o narrador, monótona (“monodia amorosa”).

SEGUNDA PARTE – PREFÁCIO*:
“Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: — a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia: — duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
(...)
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico, sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem: — todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
(...)
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan — Don Juan que começa como Cain pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! assim é tudo!... até prefácios!”
*AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. P. 190-191

Um Cadáver de Poeta*
“Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!
Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!”
L. UHLAND

I
“De tanta inspiração e tanta vida,
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? — uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
— Resta um poeta morto!

Morrer! E resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões! no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!

Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!

Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...

II
Morreu um trovador! morreu de fome...
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso;
E o morto parecia adormecido.

Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d’oiro:
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura...

Todos o viram e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa...
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta?... um pobre louco
Que leva os dias a sonhar?... insano
Amante de utopias e virtudes
E, num templo sem Deus, ainda crente?

A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doUdos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício? ...
E que venham aí falar-me em Tasso!

Culpar Afonso d’Est — um soberano,
Por não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta: apenas isso...
Procure para amar as poetisas.
Se na França a princesa Margarida,
De Francisco primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo... é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda...
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio, o trovador, teve os amores
— Novela até bastante duvidosa —
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira...
Que não admira que a um poeta amasse!

Por isso adoro o libertino Horácio:
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita...
Só pedia dinheiro, no triclínio
Bebia vinho bom... e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.

E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória,
— E essa deram-lhe à farta! — algum bispado?
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?

Deixem-se de visões, queimem-se os versos:
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poema não val meia princesa.
Um poema, contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido, fumando...
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.

Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras...
Faublas tem mais leitores do que Homero.
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De algum Álbum da moda umas quadrinhas:
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo.
Desde que o mundo é mundo assim cogita.

Nem há negá-lo: não há doce lira,
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...
.....................................................................
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poeta, silêncio! — é este o homem?
A feitura de Deus! a imagem dele!
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!”
(...)
*AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. (p.192-202).


-ESQUEMA:
·         PERSONAGENS SOLITÁRIAS, MARGINALIZADOS SOCIALMENTE DEVIDO À CONDIÇÃO DE “TROVADORES”;
·         METALINGUAGEM;
·         SUSPEIÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO POÉTICA PARA A SOCIEDADE;
·         SUSPEIÇÃO DO RECONHECIMENTO DO MÉRITO DE SUA POÉTICA;
·        ( CONFERIR): NO ÂMBITO DE UMA NAÇÃO EM FORMAÇÃO – INSTINTO DE NACIONALIDADE (MACHADO DE ASSIS).














REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Cilaine. O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica. São Paulo: EdUSP: Fapesp, 1998.

AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

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