terça-feira, 11 de abril de 2017

(“Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”)


(“Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”):

(Por Rafael Vespasiano Ferreira de Lima):




"A obra Lira dos vinte anos é dividida em três partes: a Face Ariel (primeira e terceira partes) e a Face Caliban (segunda), como o próprio Álvares as chamou. Enquanto os poemas da Face Ariel exibem sentimentalismo extremo, amor platônico, melancolia, entre outros elementos, os de Caliban são demasiado mórbidos, sarcásticos e irônicos.
Intertextualidade com a obra A Tempestade, de Shakespeare. Próspero tem a seu serviço Caliban, um escravo em terra, homem adulto e disforme, e Ariel, o espírito servil e assexuado que pode se metamorfosear em ar, água ou fogo.
O belo e o disforme, o grotesco e o sublime, portanto, se configuram em Ariel (belo) e Caliban (disforme). Na poesia, Caliban representa a ironia e o sarcasmo do eu-lírico; já Ariel representa o sentimentalismo e o amor idealizado.
Binomia: eu-lírico dividido; dualidade dinâmica; rebeldia dos sentidos, que leva duma parte à idealização da mulher e, de outra, à erotização que a degrada. Sua poesia sarcástica e satânica é complemento dinâmico da lira sentimental e idealizada.
Exemplifiquemos com passagens de dois poemas, “Lembrança de morrer” e “O poeta moribundo”:
“Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela;
-Foi poeta, sonhou e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh´alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe o canto.” (melancolia)

E essa passagem:
“Poetas! amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!...
Façam dela uma corda e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!

Cantem esse verão que me alentava...
O aroma dos currais, o bezerrinho,
As aves que na sombra suspiravam,
E os sapos que cantavam no caminho!” (ironia, sarcasmo).

Ainda em “O Poeta moribundo”:
“Eu morro qual nas mãos da conzinheira
O marreco piando na agonia...
Como o cisne de outrora... que gemendo
Entre os hinos de amor se enternecia;” (irônico, sarcástico, não idealizado).

Novo = Velho (Estado d´alma = Melancolia, spleen). Tédio. Esta complexidade fez dele, para Candido (2012), a figura de maior relevo do ultra-romantismo brasileiro. “Penetrou, (...), no que poderia se chamar o individualismo dramático e consiste em sentir, permanentemente, a diversidade do espírito.” (CANDIDO, 2012, p. 495). Binomia/dualidade/antinomias.
Daí sua obra poética ser marcada pela discordância e pelo contraste, como contraponto a uma literatura homogênea e estática. Deu categoria poética ao prosaísmo cotidiano. A sua poesia gira de forma dialética (não sintética, mas dinâmica), desvelando os contrastes que constituem a vida.
O sonho, em Álvares de Azevedo, é tão importante quanto a realidade; “os mundos imaginários” são tão atuantes quanto o mundo concreto; “e a fantasia se torna experiência [grifo do autor] mais viva que a experiência, podendo causar tanto sofrimento quanto ela.” (CANDIDO, 2012, p. 496).

Influências literárias de Byron e Musset:

“Alma de fogo, coração de lavas,
Misterioso Bretão de ardentes sonhos,
Minha musa serás – poeta altivo
Das brumas de Albion, fronte acendida
Em túrbido ferver! – a ti portanto,
Errante trovador d´alma sombria,
Do meu poema os delirantes versos!”
(O Conde Lopo, III).





Boa parte dos poemas azevedianos fala de amores não realizados; o erótico de uns corresponde ao idealizado de outros (binomia). Álvares de Azevedo ao marcar, segundo Candido (2012), “de grotesco os amores tangíveis, o poeta se exime deles, recuando-os para o impossível, da mesma forma que fez com os demais por meio da idealização extremada.” (CANDIDO, 2012, p. 497-498).
Vejamos o seguinte poema:

É ELA! É ELA!

“É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!...
Eu a vi... minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas...
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...

Oh! De certo ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores!...
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores...

Trem de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!” (Ironia, erótico/sensual).

Característica desse poema e de outros de Álvares de Azevedo é que neles, a amada está a dormir, e neles o eu-lírico as contempla e deixa em paz. Outra característica da obra poética azevediana é uma sensação de evanescência geral, de passagem do consciente ao inconsciente; do definido ao indefinido; do concreto ao abstrato; do sólido ao vaporoso. Binomia/antinomias. Tal aspecto é notado pela seleção vocabular do poeta, como é o caso das névoas e vapores, que simbolizam aquele estado de evanescência:

“Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria
..............................................
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra.”
                                     (Na Minha Terra).

 “Nas tardes vaporentas se perfuma.”
                                          (A Itália).

“No cinéreo vapor o céu desbota.”
        (Crepúsculo nas Montanhas).

“E como orvalho que a manhã vapora.”
                                 (A Harmonia).

“No vapor da ilusão porque te orvalha
Pranto de amor as pálpebras divinas?
-Quando à Noite...
           Entre nuvens de amor ela dormia.”
                                               (Pálida, à luz da Lâmpada...)

“E meus lábios orvalha d´esperança!”
                                          (Lágrimas da Vida)
“Morno suor me banha o peito langue.”
                                       (Minha Amante).
Desfalecimento amoroso, languidez “que esfuma a visão interior e exterior, tendendo às imagens correspondentes de esvaecimento ou inconsistência.” (CANDIDO, 2012, p. 501):
“Pálida, à luz da lâmpada sombria.
*
Amoroso palor meu rosto inunda.”
(A.  T...).

A preferência pela ambiência noturna, a treva romântica, mais que uma questão de temporalidade, é um estado d´alma do eu-lírico/personagem. Melancolia. Noite marcada pelas visões e cenas fantásticas; vigílias do eu-lírico a contemplar a amada adormecida:

“... à noite no leito perfumado
Ou em que rola insone, no
... pobre leito meu desfeito ainda.”
                                                  (Ideias Íntimas).

Às vezes, esta recorrência (da amada a dormir) “corresponde ao sentimento noturno, à visão lutuosa e desesperada do amor, irmanado frequentemente à morte e, algumas vezes, à profanação.” (CANDIDO, 2012, p. 502). (necrofilia):

“Era uma defunta!... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. . —Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo. Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, "do cadáver sem cabeça e o homem sem coração" como a conta Brantôme? Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era uma forma puríssima.. Meus sonhos nunca me tinham evocado uma estatua tão perfeita. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso—cevei em perdição aquela vigília.” (Noite na Taverna, Solfieri).

“Era tão bela! a palidez sorria!
E a forma feminil tão alvacenta
No diáfano véu transparecia!
Pendeu o homem da morte macilento
A cabeça no peito – em vil desejo
Longo, mui longo profanou-lhe um beijo!”.
                                             (O Poema do Frade).



ANEXO-POEMAS




SPLEEN E CHARUTOS

IV


A Lagartixa

“A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.
Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.
Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores,
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.
Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.”

MEU SONHO
EU
“Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? — O remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? que mistério...
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
           O delírio que te há de matar!...”

LEMBRANÇA DE MORRER

No more! O never more!
SHELLEY

“Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro...
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro...
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia,
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — e dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
E de ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minhas tristezas te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos, — bem poucos! e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei!... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Ó tu, que à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se vivi... foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu! eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz! e escrevam nela:
— Foi poeta, sonhou e amou na vida. —
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protejei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando, à meia-noite, o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri as ramas...
           Deixai a lua pratear-me a lousa!”

CISMAR

“Fala-me, anjo de luz! és glorioso
À minha vista na janela à noite,
Como divino alado mensageiro
Ao ebrioso olhar dos froixos olhos
Do homem que se ajoelha para vê-lo,
Quando resvala em preguiçosas nuvens
Ou navega no seio do ar da noite.”
Romeu

“Ai! Quando de noite, sozinha à janela,
Co'a face na mão te vejo ao luar,
Por que, suspirando, tu sonhas donzela?
A noite vai bela,
E a vista desmaia
Ao longe na praia
Do mar!

Por quem essa lágrima orvalha-te os dedos,
Como água da chuva cheiroso jasmim?
Na cisma que anjinho te conta segredos?
Que pálidos medos?
Suave morena,
Acaso tens pena
De mim?

Donzela sombria, na brisa não sentes
A dor que um suspiro em meus lábios tremeu?
E a noite, que inspira no seio dos entes
Os sonhos ardentes,
Não diz-te que a voz
Que fala-te a sós
Sou eu?

Acorda! Não durmas da cisma no véu!
Amemos, vivamos, que amor é sonhar!
Um beijo, donzela! Não ouves? No céu
A brisa gemeu...
As vagas murmuram...
As folhas sussurram:
Amar!”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvares de Azevedo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

CANDIDO, Antonio. Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban. In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. P. 493-508.



Nenhum comentário:

Postar um comentário