(“Álvares de Azevedo, ou Ariel e
Caliban”):
(Por
Rafael Vespasiano Ferreira de Lima):
"A obra Lira dos vinte anos é dividida em três
partes: a Face Ariel (primeira e terceira partes) e a Face Caliban (segunda),
como o próprio Álvares as chamou. Enquanto os poemas da Face Ariel exibem
sentimentalismo extremo, amor platônico, melancolia, entre outros elementos, os
de Caliban são demasiado mórbidos, sarcásticos e irônicos.
Intertextualidade com a
obra A Tempestade, de Shakespeare. Próspero
tem a seu serviço Caliban, um escravo em terra, homem adulto e disforme, e
Ariel, o espírito servil e assexuado que pode se metamorfosear em ar, água ou
fogo.
O belo e o disforme, o
grotesco e o sublime, portanto, se configuram em Ariel (belo) e Caliban
(disforme). Na poesia, Caliban representa a ironia e o sarcasmo do eu-lírico;
já Ariel representa o sentimentalismo e o amor idealizado.
Binomia: eu-lírico
dividido; dualidade dinâmica; rebeldia dos sentidos, que leva duma parte à
idealização da mulher e, de outra, à erotização que a degrada. Sua poesia
sarcástica e satânica é complemento dinâmico da lira sentimental e idealizada.
Exemplifiquemos com
passagens de dois poemas, “Lembrança de morrer” e “O poeta moribundo”:
“Descansem o meu leito
solitário
Na floresta dos homens
esquecida,
À sombra de uma cruz, e
escrevam nela;
-Foi poeta, sonhou e amou
na vida.
Sombras do vale, noites
da montanha,
Que minh´alma cantou e
amava tanto,
Protegei o meu corpo
abandonado,
E no silêncio
derramai-lhe o canto.” (melancolia)
E essa passagem:
“Poetas! amanhã ao meu
cadáver
Minha tripa cortai mais
sonorosa!...
Façam dela uma corda e
cantem nela
Os amores da vida
esperançosa!
Cantem esse verão que me
alentava...
O aroma dos currais, o
bezerrinho,
As aves que na sombra
suspiravam,
E os sapos que cantavam
no caminho!” (ironia, sarcasmo).
Ainda em “O Poeta
moribundo”:
“Eu morro qual nas mãos
da conzinheira
O marreco piando na
agonia...
Como o cisne de
outrora... que gemendo
Entre os hinos de amor se
enternecia;” (irônico, sarcástico, não idealizado).
Novo = Velho (Estado
d´alma = Melancolia, spleen). Tédio.
Esta complexidade fez dele, para Candido (2012), a figura de maior relevo do
ultra-romantismo brasileiro. “Penetrou, (...), no que poderia se chamar o
individualismo dramático e consiste em sentir, permanentemente, a diversidade
do espírito.” (CANDIDO, 2012, p. 495). Binomia/dualidade/antinomias.
Daí sua obra poética ser
marcada pela discordância e pelo contraste, como contraponto a uma literatura
homogênea e estática. Deu categoria poética ao prosaísmo cotidiano. A sua
poesia gira de forma dialética (não sintética, mas dinâmica), desvelando os contrastes
que constituem a vida.
O sonho, em Álvares de
Azevedo, é tão importante quanto a realidade; “os mundos imaginários” são tão
atuantes quanto o mundo concreto; “e a fantasia se torna experiência [grifo do autor] mais viva que a experiência, podendo causar
tanto sofrimento quanto ela.” (CANDIDO, 2012, p. 496).
Influências literárias de
Byron e Musset:
“Alma de fogo, coração de
lavas,
Misterioso Bretão de
ardentes sonhos,
Minha musa serás – poeta
altivo
Das brumas de Albion,
fronte acendida
Em túrbido ferver! – a ti
portanto,
Errante trovador d´alma
sombria,
Do meu poema os
delirantes versos!”
(O
Conde Lopo, III).
Boa parte dos poemas
azevedianos fala de amores não realizados; o erótico de uns corresponde ao
idealizado de outros (binomia). Álvares de Azevedo ao marcar, segundo Candido
(2012), “de grotesco os amores tangíveis, o poeta se exime deles, recuando-os
para o impossível, da mesma forma que fez com os demais por meio da idealização
extremada.” (CANDIDO, 2012, p. 497-498).
Vejamos o seguinte poema:
É ELA! É ELA!
“É ela! é ela! — murmurei
tremendo,
E o eco ao longe murmurou
— é ela!...
Eu a vi... minha fada
aérea e pura,
A minha lavadeira na
janela!
Dessas águas-furtadas
onde eu moro
Eu a vejo estendendo no
telhado
Os vestidos de chita, as
saias brancas...
Eu a vejo e suspiro
enamorado!
Esta noite eu ousei mais
atrevido
Nas telhas que estalavam
nos meus passos
Ir espiar seu venturoso
sono,
Vê-la mais bela de Morfeu
nos braços!
Como dormia! que profundo
sono!...
Tinha na mão o ferro do
engomado...
Como roncava maviosa e
pura!
Quase caí na rua
desmaiado!
Afastei a janela, entrei
medroso:
Palpitava-lhe o seio
adormecido...
Fui beijá-la... roubei do
seio dela
Um bilhete que estava ali
metido...
Oh! De certo ... (pensei)
é doce página
Onde a alma derramou
gentis amores!...
São versos dela... que
amanhã decerto
Ela me enviará cheios de
flores...
Trem de febre! Venturosa
folha!
Quem pousasse contigo
neste seio!
Como Otelo beijando a sua
esposa,
Eu beijei-a a tremer de
devaneio...
É ela! é ela! — repeti
tremendo,
Mas cantou nesse instante
uma coruja...
Abri cioso a página
secreta...
Oh! meu Deus! era um rol
de roupa suja!
Mas se Werther morreu por
ver Carlota
Dando pão com manteiga às
criancinhas,
Se achou-a assim mais
bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as
camisinhas!
É ela! é ela! meu amor,
minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o
céu revela...
É ela! é ela! — murmurei
tremendo,
E o eco ao longe suspirou
— é ela!” (Ironia, erótico/sensual).
Característica desse
poema e de outros de Álvares de Azevedo é que neles, a amada está a dormir, e
neles o eu-lírico as contempla e deixa em paz. Outra característica da obra
poética azevediana é uma sensação de evanescência geral, de passagem do
consciente ao inconsciente; do definido ao indefinido; do concreto ao abstrato;
do sólido ao vaporoso. Binomia/antinomias. Tal aspecto é notado pela seleção
vocabular do poeta, como é o caso das névoas e vapores, que simbolizam aquele
estado de evanescência:
“Quando
o gênio da noite vaporosa
Pela
encosta bravia
Na
laranjeira em flor toda orvalhosa
De
aroma se inebria
..............................................
E
o céu azul e o manto nebuloso
Do
céu de minha terra.”
(Na Minha
Terra).
“Nas tardes vaporentas se perfuma.”
(A
Itália).
“No
cinéreo vapor o céu desbota.”
(Crepúsculo nas Montanhas).
“E
como orvalho que a manhã vapora.”
(A Harmonia).
“No
vapor da ilusão porque te orvalha
Pranto
de amor as pálpebras divinas?
-Quando
à Noite...
Entre nuvens de amor ela dormia.”
(Pálida, à luz da Lâmpada...)
“E
meus lábios orvalha d´esperança!”
(Lágrimas da Vida)
“Morno
suor me banha o peito langue.”
(Minha
Amante).
Desfalecimento
amoroso, languidez “que esfuma a visão interior e exterior, tendendo às imagens
correspondentes de esvaecimento ou inconsistência.” (CANDIDO, 2012, p. 501):
“Pálida,
à luz da lâmpada sombria.
*
Amoroso
palor meu rosto inunda.”
(A. T...).
A preferência pela
ambiência noturna, a treva romântica, mais que uma questão de temporalidade, é
um estado d´alma do eu-lírico/personagem. Melancolia. Noite marcada pelas
visões e cenas fantásticas; vigílias do eu-lírico a contemplar a amada
adormecida:
“... à noite no
leito perfumado
Ou em que rola
insone, no
... pobre leito
meu desfeito ainda.”
(Ideias Íntimas).
Às vezes, esta
recorrência (da amada a dormir) “corresponde ao sentimento noturno, à visão
lutuosa e desesperada do amor, irmanado frequentemente à morte e, algumas
vezes, à profanação.” (CANDIDO, 2012, p. 502). (necrofilia):
“Era uma defunta!... e aqueles traços todos me
lembraram uma idéia perdida. . —Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da
igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços
para fora do caixão. Pesava como chumbo. Sabeis a historia de Maria Stuart
degolada e o algoz, "do cadáver sem cabeça e o homem sem coração"
como a conta Brantôme? Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo.
Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário,
despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era uma forma
puríssima.. Meus sonhos nunca me tinham evocado uma estatua tão perfeita. Era mesmo
uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de
âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso—cevei em perdição
aquela vigília.” (Noite na Taverna, Solfieri).
“Era tão bela! a palidez sorria!
E a forma feminil tão alvacenta
No diáfano véu transparecia!
Pendeu o homem da morte macilento
A cabeça no peito – em vil desejo
Longo, mui longo profanou-lhe um beijo!”.
(O
Poema do Frade).
ANEXO-POEMAS
SPLEEN E CHARUTOS
IV
A
Lagartixa
“A
lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo
verão o corpo espicha:
O clarão
de teus olhos me dá vida,
Tu és o
sol e eu sou a lagartixa.
Amo-te
como o vinho e como o sono,
Tu és meu
copo e amoroso leito...
Mas teu
néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro
não há como teu peito.
Posso
agora viver: para coroas
Não
preciso no prado colher flores,
Engrinaldo
melhor a minha fronte
Nas rosas
mais gentis de teus amores.
Vale todo
um harém a minha bela,
Em
fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao
sol de seus olhos namorados,
Como ao
sol de verão a lagartixa.”
MEU SONHO
EU
“Cavaleiro
das armas escuras,
Onde
vais pelas trevas impuras
Com
a espada sanguenta na mão?
Por
que brilham teus olhos ardentes
E
gemidos nos lábios frementes
Vertem
fogo do teu coração?
Cavaleiro,
quem és? — O remorso?
Do
corcel te debruças no dorso...
E
galopas do vale através...
Oh!
da estrada acordando as poeiras
Não
escutas gritar as caveiras
E
morder-te o fantasma nos pés?
Onde
vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro
das armas escuras,
Macilento
qual morto na tumba?...
Tu
escutas... Na longa montanha
Um
tropel teu galope acompanha?
E
um clamor de vingança retumba?
Cavaleiro,
quem és? que mistério...
Quem
te força da morte no império
Pela
noite assombrada a vagar?
O
FANTASMA
Sou
o sonho de tua esperança,
Tua
febre que nunca descansa,
O
delírio que te há de matar!...”
LEMBRANÇA DE MORRER
No
more! O never more!
SHELLEY
“Quando
em meu peito rebentar-se a fibra,
Que
o espírito enlaça à dor vivente,
Não
derramem por mim nem uma lágrima
Em
pálpebra demente.
E
nem desfolhem na matéria impura
A
flor do vale que adormece ao vento:
Não
quero que uma nota de alegria
Se
cale por meu triste passamento.
Eu
deixo a vida como deixa o tédio
Do
deserto o poento caminheiro...
Como
as horas de um longo pesadelo
Que
se desfaz ao dobre de um sineiro...
Como
o desterro de minh’alma errante,
Onde
fogo insensato a consumia,
Só
levo uma saudade — é desses tempos
Que
amorosa ilusão embelecia.
Só
levo uma saudade — e dessas sombras
Que
eu sentia velar nas noites minhas...
E
de ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que
por minhas tristezas te definhas!
De
meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos,
— bem poucos! e que não zombavam
Quando,
em noites de febre endoudecido,
Minhas
pálidas crenças duvidavam.
Se
uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se
um suspiro nos seios treme ainda,
É
pela virgem que sonhei!... que nunca
Aos
lábios me encostou a face linda!
Ó
tu, que à mocidade sonhadora
Do
pálido poeta deste flores...
Se
vivi... foi por ti! e de esperança
De
na vida gozar de teus amores.
Beijarei
a verdade santa e nua,
Verei
cristalizar-se o sonho amigo...
Ó
minha virgem dos errantes sonhos,
Filha
do céu! eu vou amar contigo!
Descansem
o meu leito solitário
Na
floresta dos homens esquecida,
À
sombra de uma cruz! e escrevam nela:
—
Foi poeta, sonhou e amou na vida. —
Sombras
do vale, noites da montanha,
Que
minh’alma cantou e amava tanto,
Protejei
o meu corpo abandonado,
E
no silêncio derramai-lhe um canto!
Mas
quando preludia ave d’aurora
E
quando, à meia-noite, o céu repousa,
Arvoredos
do bosque, abri as ramas...
Deixai
a lua pratear-me a lousa!”
CISMAR
“Fala-me,
anjo de luz! és glorioso
À
minha vista na janela à noite,
Como
divino alado mensageiro
Ao
ebrioso olhar dos froixos olhos
Do
homem que se ajoelha para vê-lo,
Quando
resvala em preguiçosas nuvens
Ou
navega no seio do ar da noite.”
Romeu
“Ai!
Quando de noite, sozinha à janela,
Co'a
face na mão te vejo ao luar,
Por
que, suspirando, tu sonhas donzela?
A
noite vai bela,
E
a vista desmaia
Ao
longe na praia
Do
mar!
Por
quem essa lágrima orvalha-te os dedos,
Como
água da chuva cheiroso jasmim?
Na
cisma que anjinho te conta segredos?
Que
pálidos medos?
Suave
morena,
Acaso
tens pena
De
mim?
Donzela
sombria, na brisa não sentes
A
dor que um suspiro em meus lábios tremeu?
E
a noite, que inspira no seio dos entes
Os
sonhos ardentes,
Não
diz-te que a voz
Que
fala-te a sós
Sou
eu?
Acorda!
Não durmas da cisma no véu!
Amemos,
vivamos, que amor é sonhar!
Um
beijo, donzela! Não ouves? No céu
A
brisa gemeu...
As
vagas murmuram...
As
folhas sussurram:
Amar!”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Álvares de Azevedo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2000.
CANDIDO, Antonio. Álvares de Azevedo, ou
Ariel e Caliban. In: Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. P. 493-508.
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