sábado, 29 de abril de 2017

"A visão geopoética e mitopoética d´Os sertões, de Euclides da Cunha"

"A visão geopoética e mitopoética d´Os sertões, de Euclides da Cunha"


Ensaio Por Rafael Vespasiano.



"Neste ensaio é apresentada uma visão mitopoética da obra euclidiana, Os sertões. Já que Euclides da Cunha não está (tão somente) relatando um fato histórico, qual seja a Guerra de Canudos deflagrada no sertão baiano, mas o que o escritor propõe é um consórcio entre ciência e arte, conforme os estudos relevantes do Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009).



Tal consórcio é demonstrado não somente nas meras relações entre ciência e arte perceptíveis na obra, porém ele é apresentado também na miscelânea dos gêneros literários, pois n´Os sertões, os gêneros são múltiplos, “o livro”, segundo o estudioso Berthold Zilly, “reúne as três formas básicas da literatura – a epopeia, o drama e a lírica (...) enfatizando principalmente os traços de epopeia e tragédia.” (ZILLY, 1998, p. 15).
Essa afirmação vai de encontro à visão mitopoética proposta pela própria obra euclidiana, ou segundo o crítico Ronaldes de Melo e Souza, Os sertões possui um caráter geopoético, pois “Geopoética significa poética da terra.” (SOUZA, 2009, p. 7). A visão geopoética é justamente “o estatuto calculado do vigor da inspiração artística e do rigor científico da reflexão, que decorre do projeto euclidiano do consórcio da ciência e da arte (...)”. (SOUZA, 2009, p. 7).
A visão mitopoética ou geopoética só é possível, justamente, pelo consórcio entre a ciência e a arte, que transparece na obra de Euclides da Cunha. “A poeticidade preconizada pela mundividência euclidiana não se restringe ao domínio disciplinar da estética, mas se distingue no amplo diálogo interdisciplinar com os discursos da filosofia e da ciência. (...) seu dialogismo se caracteriza como interdiscursivo.” (SOUZA, 2009, p. 7).
É essa visão mitopoética (geopoética) que singulariza a obra euclidiana, pois Euclides da Cunha “não foi o primeiro a escrever um livro sobre Canudos” (ZILLY, 1998, p. 14). E nem o último, porém sua originalidade advém da abordagem múltipla de discursos, de gêneros literários, o que perfaz uma obra originalíssima e de elevada criatividade poética. Não caiu como muitos caíram à época em relatar a Campanha de Canudos, pelo viés das teorias deterministas e evolucionistas “sobre as interações entre raça e civilização”. (ZILLY, 1998, p. 14).
“(...) Trata-se de um livro-síntese de temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias, quase uma enciclopédia do sertão, (...), obra polissêmica, por isso mesmo sugestiva, instigadora da imaginação do leitor. (...)” (ZILLY, 1998, p. 15). O poder de sugestão da obra é tamanho que o autor ao escolher o título da mesma, já opta pelo plural, justamente, para sugestionar ao leitor a completar as lacunas deixadas no decorrer do texto, pelo uso recorrente de reticências.
Os sertões são, portanto, uma obra plural de sentidos, de ideologias, de gêneros e de discursos. O trecho seguinte da própria obra demonstra o exposto quando se pensa em relação ao caráter multifacetado de discursos:
Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. (...) realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas; (...) o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se, lentamente, a América. (CUNHA, 2009, p. 93).

Os discursos que ora se apresentam são não só o geológico, de âmbito científico, mas também o discurso religioso, pois o trecho remete geopoeticamente ao Gênesis Bíblico. Num caráter metamórfico, a terra retratada não se restringe ao sertão baiano, mas a toda Terra, ou mitopoeticamente a todo o Cosmos, a toda a Vida em seu eterno devir poético e de metamorfose constante.
No trecho mais acima, extraído da primeira parte da obra Os sertões, denominada A Terra, segundo a especialista euclidiana Walnice Nogueira Galvão (1995), Euclides da Cunha mostra a formação geológica da Terra “como um processo candente e até incandescente, quer dizer, os vulcões estão soltar larva, há milhões de anos atrás (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24). Ou seja, ainda de acordo com a mesma estudiosa, “só Deus poderia ter visto os Andes que saltam para cima.” (GALVÃO, 1995, p. 24).   
Reitera-se, portanto, o que fora asseverado anteriormente: o escritor Euclides da Cunha não se refere (tão somente) à formação geológica do sertão baiano, onde ocorreu a Guerra de Canudos, mas a um processo em maior escala relativo à formação da Terra, do Cosmos. Este que está em constante metamorfose e, esse devir é, sobretudo, poético. Portanto, a Literatura é a forma de arte mais que adequada para retratar tais aspectos, ressaltando uma vez mais que n´Os sertões, ocorre então, naturalmente, o consórcio entre ciência e arte.
Como afirma a estudiosa Walnice Nogueira Galvão: “(...) nada é gratuito no livro.” (GALVÃO, 1995, p. 24) Ela constata isso ao perceber que a divisão da obra em três partes, a saber: A Terra, O Homem e A Luta, é fruto de um plano arquitetônico do escritor de prefigurar já na primeira e na segunda parte, a luta que se desenrola na terceira parte, pois: “Isso [plano arquitetônico] constitui um esquema preparatório. (...) Da luta que vai aparecer lá no fim. Ele [Euclides da Cunha] já está colocando tudo que existe na natureza e na sociedade como uma perpétua luta entre elementos que se degladiam (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24-25).    
Na segunda parte, Euclides da Cunha “volta-se (...) para a análise do homem que resultaria daquela [natureza]. O tema central da segunda parte de Os sertões, ‘O Homem’, é a formação antropológica do brasileiro, resultante da miscigenação de três raças.” (SANTANA, 1998, p. 126). O sertanejo é, para Euclides da Cunha, o resultado daquela “miscigenação”, e o primeiro “é, antes de tudo, um forte.” (CUNHA, 2009, p. 207).
“Fez-se forte, esperto, resignado e prático.” (CUNHA, 2009, p. 212), o sertanejo possui essas características, em virtude das condições naturais do sertão brasileiro. Já que “É natural que o seja.”, pois “Viver é adaptar-se. Ela [natureza] talhou-o à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...” (CUNHA, 2009, p. 215).
E, o que se verifica também é que “a natureza é sempre uma aliada dos sertanejos, defendendo-os e amparando-os, e um inimigo dos soldados, que se apavoram diante do desconhecido.” (SANTANA, 1998, p. 126). Já que a luta prefigurada é, de certa forma, entre o forasteiro, representado pelos soldados republicanos, vindos do litoral, do sul do Brasil, dito “civilizado”, que quer trazer para o sertão, para o norte, supostamente “atrasado”, a República, a qual seria a “modernidade” política e provedora da paz e responsável pelo (re)-estabelecimento da “ordem e progresso” da civilização brasileira, do Brasil.
Porém, os sertanejos viam de forma diferente, pois em nenhum momento foram consultados a respeito da Proclamação da República, pior que isso eles se sentiam humilhados e até furtados pelos impostos cobrados por ela. Assim, surge a figura de Antônio Conselheiro, que aparece pela primeira vez na obra euclidiana através de uma “associação a uma ‘anticlinal extraordinária (...) sublevada das camadas mais profundas da nossa estratificação étnica’”. (SANTANA, 1998, p. 127).
Conselheiro aparece como um líder messiânico, sebastianista, como o próprio Euclides da Cunha propõe n’Os sertões, símbolo de um gritante atavismo, um ser deslocado no tempo, mas é explicável o seu aparecimento, dadas as condições do meio sertanejo brasileiro e seus aspectos sociais e religiosos. “Antônio Conselheiro, como a dobra, teria se originado das forças internas à sociedade sertaneja, dela se destacando apenas em função do rebaixamento do meio que o cercava, e se destinou à história como poderia ter seguido para o hospício.” (SANTANA, 1998, p. 127).
Cita-se trecho d’Os sertões para exemplificar o exposto acima:
Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram. (...) O fator sociológico (...) de sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns. (CUNHA, 2009, p. 256-257).

Tal trecho reforça o asseverado mais acima, em relação à figura atávica de Conselheiro. E, no estudo de José Carlos Barreto de Santana (1998), este sustenta com propriedade que a metáfora usada por Euclides da Cunha para ressaltar o atavismo de Antônio Conselheiro, “anticlinal extraordinária”, pode ser denominada de “metáfora geológica”.
E, assim, mais uma vez reforça-se o caráter mitopoético (geopoético) da obra euclidiana. Pois o autor não reduz sua visão meramente à pessoa de Conselheiro, no aspecto psicológico, mais se soma a essa perspectiva, o caráter social, religioso, e até, metaforicamente, geológico. Então, dessa forma ressalta-se o proposto neste ensaio: o caráter mitopoético da obra de Euclides da Cunha é reflexo do consórcio entre arte e ciência, originando uma geopoética, na acepção teórica de Ronaldes de Melo e Souza (2009).
Na comunhão geopoética entre terra, natureza (flora) e sertanejos, “as caatingas atuam como personagens que se aliam aos sertanejos no combate cerrado contra os soldados do governo. Diuturnamente treinadas pela terra para suportar o embate das vicissitudes adversas (...)”. (SOUZA, 2009, p. 42). As caatingas participam como verdadeiras aliadas dos sertanejos contra os forasteiros:
Árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante... (...) Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. Esta impõe-se, tenaz e inflexível. (...) As plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda. (CUNHA, 2009, p. 116-117).

 Dado esse tom geopoético é que a caatinga revela-se aliada dos sertanejos e tornam-se “falanges vegetais” contra os soldados da República. “A falange dos vegetais atua em consonância com o magistério telúrico. A própria terra se mobiliza na luta contra os invasores (...)” (SOUZA, 2009, p. 42). A metáfora “batalha surda” proposta por Euclides da Cunha já prefigura a luta entre canudenses e republicanos, sendo que os primeiros em comunhão com a caatinga. Esta está em consórcio com seus irmãos sertanejos ante os forasteiros da República.  
Mitopoeticamente, portanto, é demonstrada e evidenciada a união entre canudenses e a caatinga na “batalha surda” contra os soldados. Nesse consórcio mitopoético, ocorre um diálogo entre o gênero narrativo e o gênero dramático, de acordo com o Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009). E, que já foi apresentado no início deste ensaio. Pois, é, justamente, esse diálogo entre gêneros literários, entre discursos, e a relação entre ciência e arte, que se confirma o caráter mitopoético (geopoético) da obra euclidiana.
 Para Zilly (1998), a cena mais impactante “é a do ‘complemento do assédio’, no dia 24 de setembro de 1897. Narrada por meio de metáforas teatrais. (...) Trata-se, portanto, de um drama não apenas metafórico, mas de certa forma real, que expressa exemplarmente a tendência euclidiana de apresentar a história como peça de teatro.” (ZILLY, 1998, p. 23). O que também é proposto pelo teórico Ronaldes de Melo e Souza (2009).
A tal cena é apresentada como “ato de tragédia”: “Ante a vitória iminente, a guerra apresenta-se aos soldados sob aspectos lúdicos. Metade da tropa transforma-se em público e passa a torcer pela vitória da outra metade, vendo a guerra quase como divertimento.” (ZILLY, 1998, p. 25).
Os acontecimentos são narrados “de forma rápida, dramática, rumo a um clímax” (ZILLY, 1998, p. 25), mas são interrompidos e, assim, frustra-se a expectativa do leitor (espectador) que já estava a preparar-se para o desfecho:
Porque a ação se delongava. (...) Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide repentino. (...) Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. (...) Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam. (...) A insurreição estava morta. (CUNHA, 2009, p. 716-717).

A derrota dos canudenses era, contudo, inevitável, mas o narrador a apresenta à conta-gotas. E, dramaticamente, percebe-se vitória dos soldados, perceptível pelos “brados e vivas”, típicos do teatro. Os soldados não conseguem perceber o quanto trágico é esse massacre de patrícios, que não é em nenhum momento a vitória da República sobre insurgentes imperialistas; porém, trata-se da derrota do que Euclides da Cunha denominou de “cerne de uma nacionalidade”, é o fim da raça sertaneja em sua maior autenticidade. Euclides nos oferece além da visão dos vencedores, que já fora divulgada em outras publicações da época, ele nos apresenta em seu livro, de forma originalíssima, também a visão dos vencidos.



Para Berthold Zilly, “o narrador e com ele, os letrados do Brasil e, com eles, os do mundo inteiro assumem, também a perspectiva de espectadores. (...) O que está se desenrolando diante de seus olhos [dos soldados] e dos nossos, (...), é um fato real que, por sua vez, é um ato de tragédia.” (ZILLY, 1998, p. 26-27). Dessa forma, o “narrador sincero”, assim denominado pelo próprio especialista euclidiano Zilly (1998), ou o “historiador irônico”, denominação teórica do crítico Ronaldes de Melo e Souza (2009), apresenta a visão dos vencidos da Guerra de Canudos e, não tão somente a dos vencedores, largamente apresentada até o momento da publicação da obra Os sertões.
Em suma, Os sertões “é uma obra ímpar na cultura brasileira.” (SANTANA, 1998, p. 130). Visto o diálogo entre vários discursos, entre várias áreas do conhecimento humano. E, pelo seu caráter dialógico entre os mais diferentes gêneros literários: ora é marcado pelo épico, ora pelo lírico, ora pelo dramático, ora pelos três ao mesmo tempo. Constituindo-se, assim, em uma obra literária híbrida.
E, por fim, deve-se ressaltar o tom mitopoético característico da obra euclidiana, na qual é percebido o consórcio entre ciência e arte. E, mitopoeticamente, essa comunhão se dá pela “visão geopoética de Euclides, a forma deveniente da natureza sugere ao poeta da ciência e da arte a forma mobilizada no ritmo de transe. A isomorfia geopoética da forma da natureza e da forma da arte consorciada com a ciência constitui o traço específico do estilo narrativo euclidiano.” (SOUZA, 2009, p. 129).
   Para narrar o eterno metamorfosear da natureza telúrica e sua relação com o ser humano e, para abranger toda a complexidade do devir poético da Mãe-Terra, o autor Euclides da Cunha faz uso artístico da poética da terra, ou geopoética. Mitopoeticamente, o escritor encontrou um meio de apresentar o consórcio entre ciência e arte, no âmbito literário, esse processo chama-se mitopoética, ou geopoética."





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: (campanha de canudos). Edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Os Sertões: uma análise literária. In: MENEZES, E. Diatahy B. de & ARRUDA, João (Orgs.). Canudos: as falas e os olhares. Fortaleza: Edições UFCE, 1995, p. 23-30.
SANTANA, José Carlos Barreto de. Geologia e metáforas geológicas em Os sertões. In: História, Ciências, Saúde. – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998, volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 117-131.
SOUZA, Ronaldes de Melo e Souza. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998, volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 13-37.



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