"A visão geopoética e mitopoética d´Os sertões, de Euclides da Cunha"
Ensaio Por Rafael Vespasiano.
"Neste ensaio é
apresentada uma visão mitopoética da obra euclidiana, Os sertões. Já que Euclides da Cunha não está (tão somente)
relatando um fato histórico, qual seja a Guerra de Canudos deflagrada no sertão
baiano, mas o que o escritor propõe é um consórcio entre ciência e arte,
conforme os estudos relevantes do Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009).
Tal consórcio é
demonstrado não somente nas meras relações entre ciência e arte perceptíveis na
obra, porém ele é apresentado também na miscelânea dos gêneros literários, pois
n´Os sertões, os gêneros são
múltiplos, “o livro”, segundo o estudioso Berthold Zilly, “reúne as três formas
básicas da literatura – a epopeia, o drama e a lírica (...) enfatizando
principalmente os traços de epopeia e tragédia.” (ZILLY, 1998, p. 15).
Essa afirmação vai de
encontro à visão mitopoética proposta pela própria obra euclidiana, ou segundo
o crítico Ronaldes de Melo e Souza, Os
sertões possui um caráter geopoético, pois “Geopoética significa poética da
terra.” (SOUZA, 2009, p. 7). A visão geopoética é justamente “o estatuto
calculado do vigor da inspiração artística e do rigor científico da reflexão,
que decorre do projeto euclidiano do consórcio da ciência e da arte (...)”.
(SOUZA, 2009, p. 7).
A visão mitopoética ou
geopoética só é possível, justamente, pelo consórcio entre a ciência e a arte,
que transparece na obra de Euclides da Cunha. “A poeticidade preconizada pela
mundividência euclidiana não se restringe ao domínio disciplinar da estética,
mas se distingue no amplo diálogo interdisciplinar com os discursos da
filosofia e da ciência. (...) seu dialogismo se caracteriza como
interdiscursivo.” (SOUZA, 2009, p. 7).
É essa visão mitopoética
(geopoética) que singulariza a obra euclidiana, pois Euclides da Cunha “não foi
o primeiro a escrever um livro sobre Canudos” (ZILLY, 1998, p. 14). E nem o
último, porém sua originalidade advém da abordagem múltipla de discursos, de
gêneros literários, o que perfaz uma obra originalíssima e de elevada
criatividade poética. Não caiu como muitos caíram à época em relatar a Campanha
de Canudos, pelo viés das teorias deterministas e evolucionistas “sobre as
interações entre raça e civilização”. (ZILLY, 1998, p. 14).
“(...) Trata-se de um
livro-síntese de temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias,
quase uma enciclopédia do sertão, (...), obra polissêmica, por isso mesmo
sugestiva, instigadora da imaginação do leitor. (...)” (ZILLY, 1998, p. 15). O
poder de sugestão da obra é tamanho que o autor ao escolher o título da mesma,
já opta pelo plural, justamente, para sugestionar ao leitor a completar as
lacunas deixadas no decorrer do texto, pelo uso recorrente de reticências.
Os
sertões são, portanto, uma obra plural de sentidos, de
ideologias, de gêneros e de discursos. O trecho seguinte da própria obra
demonstra o exposto quando se pensa em relação ao caráter multifacetado de
discursos:
Porque se operava
lentamente uma sublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte
arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um
eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia.
(...) realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras
afloram nas águas; (...) o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios;
ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se;
arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se, lentamente, a
América. (CUNHA, 2009, p. 93).
Os discursos que ora se
apresentam são não só o geológico, de âmbito científico, mas também o discurso
religioso, pois o trecho remete geopoeticamente ao Gênesis Bíblico. Num caráter
metamórfico, a terra retratada não se restringe ao sertão baiano, mas a toda Terra,
ou mitopoeticamente a todo o Cosmos, a toda a Vida em seu eterno devir poético
e de metamorfose constante.
No trecho mais acima,
extraído da primeira parte da obra Os
sertões, denominada A Terra,
segundo a especialista euclidiana Walnice Nogueira Galvão (1995), Euclides da
Cunha mostra a formação geológica da Terra “como um processo candente e até
incandescente, quer dizer, os vulcões estão soltar larva, há milhões de anos
atrás (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24).
Ou seja, ainda de acordo com a mesma estudiosa, “só Deus poderia ter visto os
Andes que saltam para cima.” (GALVÃO, 1995, p. 24).
Reitera-se, portanto, o
que fora asseverado anteriormente: o escritor Euclides da Cunha não se refere
(tão somente) à formação geológica do sertão baiano, onde ocorreu a Guerra de
Canudos, mas a um processo em maior escala relativo à formação da Terra, do
Cosmos. Este que está em constante metamorfose e, esse devir é, sobretudo, poético.
Portanto, a Literatura é a forma de arte mais que adequada para retratar tais
aspectos, ressaltando uma vez mais que n´Os
sertões, ocorre então, naturalmente, o consórcio entre ciência e arte.
Como afirma a estudiosa
Walnice Nogueira Galvão: “(...) nada é gratuito no livro.” (GALVÃO, 1995, p.
24) Ela constata isso ao perceber que a divisão da obra em três partes, a
saber: A Terra, O Homem e A Luta, é fruto de um plano arquitetônico do escritor
de prefigurar já na primeira e na segunda parte, a luta que se desenrola na
terceira parte, pois: “Isso [plano
arquitetônico] constitui um esquema preparatório. (...) Da luta que vai
aparecer lá no fim. Ele [Euclides da
Cunha] já está colocando tudo que existe na natureza e na sociedade como
uma perpétua luta entre elementos que se degladiam (sic).” (GALVÃO, 1995, p. 24-25).
Na segunda parte,
Euclides da Cunha “volta-se (...) para a análise do homem que resultaria
daquela [natureza]. O tema central da
segunda parte de Os sertões, ‘O
Homem’, é a formação antropológica do brasileiro, resultante da miscigenação de
três raças.” (SANTANA, 1998, p. 126). O sertanejo é, para Euclides da Cunha, o
resultado daquela “miscigenação”, e o primeiro “é, antes de tudo, um forte.”
(CUNHA, 2009, p. 207).
“Fez-se forte, esperto,
resignado e prático.” (CUNHA, 2009, p. 212), o sertanejo possui essas
características, em virtude das condições naturais do sertão brasileiro. Já que
“É natural que o seja.”, pois “Viver é adaptar-se. Ela [natureza] talhou-o à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...”
(CUNHA, 2009, p. 215).
E, o que se verifica
também é que “a natureza é sempre uma aliada dos sertanejos, defendendo-os e
amparando-os, e um inimigo dos soldados, que se apavoram diante do
desconhecido.” (SANTANA, 1998, p. 126). Já que a luta prefigurada é, de certa
forma, entre o forasteiro, representado pelos soldados republicanos, vindos do
litoral, do sul do Brasil, dito “civilizado”, que quer trazer para o sertão,
para o norte, supostamente “atrasado”, a República, a qual seria a
“modernidade” política e provedora da paz e responsável pelo
(re)-estabelecimento da “ordem e progresso” da civilização brasileira, do
Brasil.
Porém, os sertanejos viam
de forma diferente, pois em nenhum momento foram consultados a respeito da
Proclamação da República, pior que isso eles se sentiam humilhados e até
furtados pelos impostos cobrados por ela. Assim, surge a figura de Antônio
Conselheiro, que aparece pela primeira vez na obra euclidiana através de uma
“associação a uma ‘anticlinal extraordinária (...) sublevada das camadas mais
profundas da nossa estratificação étnica’”. (SANTANA, 1998, p. 127).
Conselheiro aparece como
um líder messiânico, sebastianista, como o próprio Euclides da Cunha propõe n’Os sertões, símbolo de um gritante
atavismo, um ser deslocado no tempo, mas é explicável o seu aparecimento, dadas
as condições do meio sertanejo brasileiro e seus aspectos sociais e religiosos.
“Antônio Conselheiro, como a dobra, teria se originado das forças internas à
sociedade sertaneja, dela se destacando apenas em função do rebaixamento do
meio que o cercava, e se destinou à história como poderia ter seguido para o
hospício.” (SANTANA, 1998, p. 127).
Cita-se trecho d’Os sertões para exemplificar o exposto
acima:
Recalcado pela
disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na
revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a
primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas
todas que em torno se congregavam, se normalizaram. (...) O fator sociológico
(...) de sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem
natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente
propício de erros e superstições comuns. (CUNHA, 2009, p. 256-257).
Tal trecho reforça o
asseverado mais acima, em relação à figura atávica de Conselheiro. E, no estudo
de José Carlos Barreto de Santana (1998), este sustenta com propriedade que a
metáfora usada por Euclides da Cunha para ressaltar o atavismo de Antônio
Conselheiro, “anticlinal extraordinária”, pode ser denominada de “metáfora
geológica”.
E, assim, mais uma vez
reforça-se o caráter mitopoético (geopoético) da obra euclidiana. Pois o autor
não reduz sua visão meramente à pessoa de Conselheiro, no aspecto psicológico,
mais se soma a essa perspectiva, o caráter social, religioso, e até,
metaforicamente, geológico. Então, dessa forma ressalta-se o proposto neste
ensaio: o caráter mitopoético da obra de Euclides da Cunha é reflexo do
consórcio entre arte e ciência, originando uma geopoética, na acepção teórica de
Ronaldes de Melo e Souza (2009).
Na comunhão geopoética
entre terra, natureza (flora) e sertanejos, “as caatingas atuam como
personagens que se aliam aos sertanejos no combate cerrado contra os soldados
do governo. Diuturnamente treinadas pela terra para suportar o embate das
vicissitudes adversas (...)”. (SOUZA, 2009, p. 42). As caatingas participam
como verdadeiras aliadas dos sertanejos contra os forasteiros:
Árvores sem
folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando
rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar
imenso, de tortura, da flora agonizante... (...) Transmudam-se, e em lenta
metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados
pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. Esta impõe-se,
tenaz e inflexível. (...) As plantas mais robustas trazem no aspecto
anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda. (CUNHA, 2009,
p. 116-117).
Dado esse tom geopoético é que a caatinga revela-se
aliada dos sertanejos e tornam-se “falanges vegetais” contra os soldados da
República. “A falange dos vegetais atua em consonância com o magistério
telúrico. A própria terra se mobiliza na luta contra os invasores (...)”
(SOUZA, 2009, p. 42). A metáfora “batalha surda” proposta por Euclides da Cunha
já prefigura a luta entre canudenses e republicanos, sendo que os primeiros em
comunhão com a caatinga. Esta está em consórcio com seus irmãos sertanejos ante
os forasteiros da República.
Mitopoeticamente,
portanto, é demonstrada e evidenciada a união entre canudenses e a caatinga na
“batalha surda” contra os soldados. Nesse consórcio mitopoético, ocorre um
diálogo entre o gênero narrativo e o gênero dramático, de acordo com o
Professor Ronaldes de Melo e Souza (2009). E, que já foi apresentado no início
deste ensaio. Pois, é, justamente, esse diálogo entre gêneros literários, entre
discursos, e a relação entre ciência e arte, que se confirma o caráter
mitopoético (geopoético) da obra euclidiana.
Para Zilly (1998), a cena mais impactante “é a
do ‘complemento do assédio’, no dia 24 de setembro de 1897. Narrada por meio de
metáforas teatrais. (...) Trata-se, portanto, de um drama não apenas
metafórico, mas de certa forma real, que expressa exemplarmente a tendência
euclidiana de apresentar a história como peça de teatro.” (ZILLY, 1998, p. 23).
O que também é proposto pelo teórico Ronaldes de Melo e Souza (2009).
A tal cena é apresentada
como “ato de tragédia”: “Ante a vitória iminente, a guerra apresenta-se aos
soldados sob aspectos lúdicos. Metade da tropa transforma-se em público e passa
a torcer pela vitória da outra metade, vendo a guerra quase como divertimento.”
(ZILLY, 1998, p. 25).
Os acontecimentos são
narrados “de forma rápida, dramática, rumo a um clímax” (ZILLY, 1998, p. 25),
mas são interrompidos e, assim, frustra-se a expectativa do leitor (espectador)
que já estava a preparar-se para o desfecho:
Porque a ação se
delongava. (...) Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão
de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide
repentino. (...) Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas.
(...) Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam.
(...) A insurreição estava morta. (CUNHA, 2009, p. 716-717).
A derrota dos canudenses
era, contudo, inevitável, mas o narrador a apresenta à conta-gotas. E,
dramaticamente, percebe-se vitória dos soldados, perceptível pelos “brados e
vivas”, típicos do teatro. Os soldados não conseguem perceber o quanto trágico
é esse massacre de patrícios, que não é em nenhum momento a vitória da
República sobre insurgentes imperialistas; porém, trata-se da derrota do que
Euclides da Cunha denominou de “cerne de uma nacionalidade”, é o fim da raça
sertaneja em sua maior autenticidade. Euclides nos oferece além da visão dos
vencedores, que já fora divulgada em outras publicações da época, ele nos
apresenta em seu livro, de forma originalíssima, também a visão dos vencidos.
Para Berthold Zilly, “o
narrador e com ele, os letrados do Brasil e, com eles, os do mundo inteiro
assumem, também a perspectiva de espectadores. (...) O que está se desenrolando
diante de seus olhos [dos soldados] e
dos nossos, (...), é um fato real que, por sua vez, é um ato de tragédia.”
(ZILLY, 1998, p. 26-27). Dessa forma, o “narrador sincero”, assim denominado
pelo próprio especialista euclidiano Zilly (1998), ou o “historiador irônico”,
denominação teórica do crítico Ronaldes de Melo e Souza (2009), apresenta a
visão dos vencidos da Guerra de Canudos e, não tão somente a dos vencedores,
largamente apresentada até o momento da publicação da obra Os sertões.
Em suma, Os sertões “é uma obra ímpar na cultura
brasileira.” (SANTANA, 1998, p. 130). Visto o diálogo entre vários discursos, entre
várias áreas do conhecimento humano. E, pelo seu caráter dialógico entre os
mais diferentes gêneros literários: ora é marcado pelo épico, ora pelo lírico,
ora pelo dramático, ora pelos três ao mesmo tempo. Constituindo-se, assim, em
uma obra literária híbrida.
E, por fim, deve-se
ressaltar o tom mitopoético característico da obra euclidiana, na qual é
percebido o consórcio entre ciência e arte. E, mitopoeticamente, essa comunhão
se dá pela “visão geopoética de Euclides, a forma deveniente da natureza sugere
ao poeta da ciência e da arte a forma mobilizada no ritmo de transe. A
isomorfia geopoética da forma da natureza e da forma da arte consorciada com a
ciência constitui o traço específico do estilo narrativo euclidiano.” (SOUZA,
2009, p. 129).
Para
narrar o eterno metamorfosear da natureza telúrica e sua relação com o ser
humano e, para abranger toda a complexidade do devir poético da Mãe-Terra, o
autor Euclides da Cunha faz uso artístico da poética da terra, ou geopoética.
Mitopoeticamente, o escritor encontrou um meio de apresentar o consórcio entre
ciência e arte, no âmbito literário, esse processo chama-se mitopoética, ou
geopoética."
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: (campanha de canudos). Edição,
prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.
GALVÃO, Walnice Nogueira.
Os Sertões: uma análise literária. In:
MENEZES, E. Diatahy B. de & ARRUDA, João (Orgs.). Canudos: as falas e os olhares. Fortaleza: Edições UFCE, 1995, p.
23-30.
SANTANA, José Carlos
Barreto de. Geologia e metáforas
geológicas em Os sertões. In: História,
Ciências, Saúde. – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998,
volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 117-131.
SOUZA, Ronaldes de Melo e
Souza. A geopoética de Euclides da Cunha.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A
história encenada em Os sertões. In: História,
Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998,
volume V (Suplemento), Julho 1998, p. 13-37.
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