quinta-feira, 3 de março de 2016

(“O NATIMORTO”, LOURENÇO MUTARELLI): (“A UNIDADE E CISÃO DO NARRADOR-PERSONAGEM D´O NATIMORTO”)

(“O NATIMORTO, UM MUSICAL SILENCIOSO”, LOURENÇO MUTARELLI)

(“A UNIDADE E CISÃO DO NARRADOR-PERSONAGEM D´O NATIMORTO”):

(CRÍTICA POR RAFAEL VESPASIANO)







"O AGENTE - É QUE, QUANDO EU ERA ADOLESCENTE, EU FIZ MINHA PRIMEIRA VIAGEM AO EXTERIOR. QUANDO VOLTEI, MINHA TIA HAVIA SOFRIDO UM DERRAME. E ELA NÃO SE LEMBRAVA DE MIM.
A VOZ - BOM, MAS SE FOSSE ASSIM, COMO VOCÊ DIZ, NINGUÉM MAIS SE LEMBRARIA DE VOCÊ, NEM SEUS AMIGOS, NEM SEUS PARENTES.
(...)
O AGENTE - É QUE, QUANDO OS REVEJO, ELES SE LEMBRAM; EU SÓ DEIXO DE EXISTIR DURANTE A MINHA AUSÊNCIA."



“Lourenço Mutarelli é um escritor que se notabiliza pelo desconcerto que provoca no leitor, basta citar um dos seus romances mais famosos, O cheiro do ralo. Em O natimorto, o autor vai além e transtorna todos os limites de uma leitura “agradável e tranquila” de sua obra, seu romance é inquietante e provocante. O livro é híbrido, característica sintomática da literatura pós-moderna, mistura-se gêneros romance e teatro. Como exemplo parecido de tal artifício tem-se o livro de Sérgio Sant´Anna, "Um romance de geração".

Um narrador-personagem, à beira, da desintegração como ente, que passa do uno para um ser cindido, o que já se concretiza e se efetiva na linguagem do próprio texto, por meio do uso de figuras de linguagem, como os paradoxos e as antíteses. Pode-se falar até em romance “neobarroco”, pois, durante a leitura d´O natimorto, aparecem vários pares de dualidade dinâmica, opostos complementares, dos quais nos fala F. Schlegel, a ironia da parábase, esta teoria que surge no Romantismo Alemão, mas nos ajuda a entender a obra pós-moderna de Mutarelli, já que o estilo Barroco seiscentista, era marcado pela contradição e pela cisão do ser, de um eu-lírico dividido, por exemplo entre o sagrado e o profano; e, no Romantismo Alemão, como também no Francês, tinha-se o belo e o disforme, "o grotesco e o sublime", teorizado pelo francês Victor Hugo, em seu prefácio ao Crowell,  o que corrobora o exposto até aqui sobre a obra de Lourenço Mutarelli. 

Já que a narrativa d´o agente, narrador-personagem, do romance em tela, é marcada por vários opostos que se complementam e não existiram um sem o outro, tal deus não existe sem o diabo, ou o bem não se configura sem a presença do mal. O neobarroquismo do livro está, justamente, neste processo dual dinâmico, que ressalta a cisão e a desestruturação do ente, principalmente, no seu isolamento e nos seus devaneios, que promovem o desgaste de sua personalidade e caráter, influindo para que o narrador-personagem passe a viver um tormento psicológico ininterrupto. 

Há vários pares duais e contraditórios que compõem e decompõem a personagem, além do citado acima, tem-se: o bem-mal, belo-grotesco, uno-decomposto, inocente (puro)-malvado (esperto), etc. O romance de Lourenço Mutarelli é uma metáfora da vida, o próprio título já sugere, que o protagonista nasce para morrer, como todos os seres humanos. A vida pede a morte e vice-versa. O protagonista no caos de sua vida com várias desilusões e aspectos negativos que marcaram toda sua vida, toda sua existência, marcada sempre pela queda, outro par dual dinâmico, ascensão-queda, pois o nascimento, de certa forma, é o surgir para o mundo (ascensão), mas a sua existência foi marcada por erros, maldades, um caráter e uma personalidade duvidosa e corrompida, com distúrbios e desvios, transtornos, que levam o narrador-personagem à queda irreversível do seu ser -, a sua aniquilação e nulificação, que até certo ponto remete ao niilismo de Nietzsche -, no caso do texto do escritor brasileiro, a própria morte do narrador-personagem, se dá num ato metafórico e alegórico de antropofagia canibalesca em abismo, o que remete ao termo que dá título ao livro, natimorto

Uma queda que poderia se dá como uma catábase, uma descida aos infernos, para depois ascender e, caracterizar uma epifania do eu, conforme também as teorias do poeta-filósofo F. Schlegel ressaltam. Porém, isso não ocorre, mas sim uma maior desestabilização do seu eu, que caiu, cindiu sua personalidade, cada vez mais confusa e desintegrada. Que, ao final do romance, o ente não tem possibilidade de redenção ou recuperar sua unidade (ou tem?), pois o final é em aberto, contudo percebe-se sua autodestruição antropofágica canibalesca, ressaltando um ser desintegrado, desestruturado, cindido e dividido, prestes a mais uma queda, a queda final. No fim, o narrador-personagem só tem a certeza, que nos é dada pelo título do romance, nasceu para morrer, como se não tivesse vivido, o Natimorto. 

Mas, pode-se interpretar o desfecho do livro com um viés mais esperançoso e redentor, de retorno ao caos original, ao nascimento até mítico, ao ressurgimento do ser em um novo nascimento, de caráter mítico-arquetípico. Esta linha de pensamento é possível, porém, a primeira interpretação e que foi desenvolvida na minha crítica, tenho a impressão é mais plausível, e, a que prefiro, pois se afina mais com minha linha de pensamento e com os meus estudos teóricos."


  "É NOITE/QUANDO ACORDO,/SUPONHO,/NUNCA ABRO AS CORTINAS./NADA SEI/SOBRE O MUNDO/LÁ FORA./SURPREENDO-ME/COM MEU OBSCURO/MUNDO/INTERIOR./DESEJO/DE MORTE." 




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